Bolívia: refletir mais que comemorar
Dia 6 de agosto a Bolívia celebra 200 anos de independência política em meio a um golpe brando, em que as elites antipovo cooptaram, isto é, tomaram de assalto, o presidente democraticamente eleito, que revelou ser mais um traidor das conquistas protagonizadas pelas camadas populares lideradas pelos povos originários, que constituem mais de 70% da população boliviana.
A propósito do transcurso, dia 6 de agosto próximo, do Bicentenário da Independência da Bolívia, reproduzo o meu texto, com as devidas atualizações, sobre o Estado Plurinacional que superou com altivez e dignidade os maiores desafios de sua história, até ser surpreendido pela tibieza e debilidade do atual dignitário, Luis Lucho Arce Catacora, eleito por ter sido o candidato de Evo Morales Ayma em 2021, mas que no decurso dos dias acabou sendo cooptado pelas forças adversárias, tal qual o atual presidente da Câmara de Senadores, o senador Andrónico Rodríguez, candidato à presidência do Estado Plurinacional que se apresenta como "legalista", afrontando as forças leais ao ex-presidente e fundador e líder do Processo de Mudança Democrático e Cultural, e que teve a legenda MAS-IPSP tomada pelos atuais ocupantes do governo, que se declaram e agem com aleivosia e até perversidade.
“¡VOLVERÉ Y SERÉ MILLONES!”
[“VOLTAREI E SEREI AOS MILHÕES!”]
A consigna de Túpac Katari, quando de sua condenação a esquartejamento pelos colonizadores espanhóis, se transformou em grito libertário dos povos originários de toda a América. A Bolívia, depois do chamado Processo de Mudança Democrático e Cultural, se transformou em referência para os povos que lutam por emancipação e soberania popular.
Diferente do Brasil, a Bolívia tem pelo menos quatro troncos linguísticos originários, a despeito de sua extensão territorial ser bem pequena em relação aos países latino-americanos com maior projeção no concerto das nações. Além do tronco Tupi-Guarani, há Quéchua, Aymara e Uru (este dos mais antigos do subcontinente sul-americano). Nem mesmo a ‘bem sucedida’ política colonial das ‘reduções populacionais indígenas’ foi capaz de acabar com o predomínio étnico ‘pré-colombiano’ no coração da América do Sul.
Não nos esqueçamos que, com o atual Peru, a Bolívia conforma o território-sede do emblemático Império Incaico (erroneamente chamado de Inca, que era o nome atribuído aos soberanos daquele império). Como se tratava de populações sedentárias (portanto, diferentemente dos Tupi-Guarani, que eram nômades), as populações originárias dentro das proximidades da sede do império milenar gozavam de maiores atributos, pois sobre elas pairavam deveres e direitos por se incumbirem do abastecimento de alimentos, vestuários, materiais de construção e inclusive armas, além de gozarem da confiança das classes dominantes instaladas nas cidades-sede do Império.
Isso tornou o então Alto Peru indomável, do ponto de vista colonial. O território do hoje Estado Plurinacional da Bolívia foi palco dos pioneiros e mais intensos movimentos de resistência ao invasor europeu, desde o início da colonização. Líderes como Túpac Katari (na verdade dois homônimos), Túpac Amaru e as Mártires de La Coronilla (na data em que se celebra do Dia das Mães na Bolívia, 27 de maio), para citar alguns, têm a sua memória reverenciada até hoje. As mulheres, aliás, têm um papel relevante não só no enfrentamento ao jugo colonial, mas na conquista emancipatória dos Libertadores da América, a começar por Simón Bolívar: Bartolina Sisa Vargas, líder libertária de Charcas, ao lado de Túpac Katari, seu Companheiro de Vida e de luta; Juana Azurduy Bermúdez de Padilla, líder independista do Alto Peru ao lado do Companheiro Manuel Ascencio Padilla, que chegou a ser galgada ao posto de tenente-coronel do exército libertador e postumamente a patente de generala na Argentina; María Barzola, mártir mineira das revoltas dos trabalhadores mineiros na Mina de Catavi em 1942 (dez anos antes da insurreição popular que abriu caminho para as conquistas pós-1952), e Domitila Barrios de Chungara, líder operária que enfrentou as 'barzolas' (agentes femininas que usavam a memória de María Barzola para reprimir trabalhadoras e trabalhadores mineiros ao longo dos governos do MNR) e, sobretudo, na ditadura de Hugo Banzer Suárez não só liderou o movimento operário como toda a sociedade civil boliviana pelo resgate das liberdades democráticas e esteve protagonizando na Tribuna da Conferência Mundial da Mulher, de 1975, no México, quando a Jornalista Moema Viezer colheu seu depoimento e escreveu o livro emblemático “Se me deixam falar”.
O ano de 1975, do Sesquicentenário da Independência da Bolívia, não foi emblemático apenas pela Conferência Mundial da Mulher, em que Domitila de Chungara fez sua voz ecoar em todo o planeta ante a opressão do até então alardeado “amigo” Hugo Banzer Suárez. Nesse ano Banzer destruíra, com apoio explícito do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (World Bank), a estrutura sindical operária com base nos trabalhadores mineiros (a emblemática COB), mediante o empréstimo de 6OO milhões de dólares para o plantio de algodão [também emprestado para o Paraguai do sanguinário Alfredo Stroesner], mas que o corrupto governo de Banzer o trocou pelo branco da cocaína, que passou a ter a sua produção em escala industrial, denunciado pelo Jornalista René Bascopé Aspiazu (diretor do semanário opositor “Aquí”), morto em circunstâncias nunca esclarecidas durante uma das tentativas de golpe militar ocorridas entre 1979 e 1981 em que foram executados o Senador Marcelo Quiroga Santa Cruz, o Jornalista e agente de pastoral ex-Padre Luis Espinal e vários líderes sindicais históricos.
Segregacionista em decorrência da apartação etnocultural e classista colonial, o caráter de exclusão do país que chega a seu Bicentenário de Independência é tão estruturante que, 2O anos depois do Processo de Mudança Democrático e Cultural sob a liderança do Movimento Ao Socialismo de Evo Morales apresenta perigosa exaustão na véspera da celebração da data magna e da realização de eleições presidenciais. Não por acaso, desde a proclamação da República da Bolívia -- nome em homenagem ao Libertador Simón Bolívar -- em 1825, a minoria branca sempre encontrou dificuldade de impor sua vontade, ainda que usasse uma força descomunal e mantivesse os povos originários em regime de ‘pongaje’ (a escravidão espanhola das populações nativas) até a Revolução de 9 de Abril de 1952, que promoveu a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, leis sociais e trabalhistas, introduziu o voto do analfabeto, além de um conjunto de reformas sociais clamadas pelas maiorias bolivianas.
Como na proclamação da independência e da República da Bolívia, em 1825, os ‘índios’ nunca passaram de reles figurantes, massa de manobra, das oligarquias bolivianas, assim também ocorreu, depois de uma fugaz lua de mel, durante o efêmero regime pós-1952. Victor Paz Estenssoro, Hernán Siles Zuazo e Victor de novo (e não o lendário líder da Central Operária Boliviana, a COB, Juan Lechín Oquendo, como havia sido acordado, por serem os líderes da Revolução Nacionalista de 1952) passaram a adiar as transformações clamadas pela população, sobretudo pelos setores operários, campesinos e ‘indígenas’. Isso corroeu a base popular e propiciou a inserção da Bolívia no mapa da América Latina golpista, entre novembro de 1964 (quando o general René Barrientos Ortuño, vice de Paz Estenssoro, deu o golpe e instalou a ditadura que, a serviço da CIA, executou em Valle Grande o líder guerrilheiro Ernesto Che Guevara, em 1967) e outubro de 1982 (quando o general institucionalista David Padilla Arancibia transmitiu o cargo ao Presidente Hernán Siles Zuazo, da Unidad Democrática Popular, UDP, eleito em 1980, mas impedido de ser empossado por causa do golpe sangrento comandado pelo general narcotraficante Luis García Meza Tejada e, por incompetente, respaldado pelo igualmente sanguinário Coronel Luis Arce Gómez, tal qual García Meza, ligado à quadrilha da qual a ex-presidenta golpista Jeanine Áñez Chávez também faz parte (sediada no norte da Bolívia, com base em Trinidad, departamento do Beni).
A UDP -- formada pelo Movimiento Nacionalista Revolucionario de Izquierda (MNR-I), de Hernán Siles Zuazo, candidato a presidente; Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), de Jaime Paz Zamora, candidato a vice-presidente; Partido Comunista de Bolivia (PCB) e uma dissidência do Partido Demócrata Cristiano (PDC) --, impôs uma vitória acachapante sobre os candidatos da direita (entre eles, Victor Paz Estenssoro, do Movimiento Nacionalista Revolucionario, MNR, que adotara uma agenda conservadora, e o general sanguinário Hugo Banzer Suárez, da Acción Democrática Nacionalista, ADN, legenda que ele criou para se eleger) e sobre um emblemático combatente da esquerda socialista, brilhante senador que criou e presidiu o “Juicio del Siglo”, reunindo provas de crime de lesa-pátria e lesa-humanidade de Hugo Banzer, e que foi assassinado durante o golpe de García Meza, Marcelo Quiroga Santa Cruz, do Partido Socialista Uno, o PS-1. Mas o governo da UDP não honrou seus compromissos constitutivos, por não ter um projeto de Estado e por uma disputa protagonizada pelo MIR, do vice-presidente Paz Zamora, que, em vez de manter um governo de unidade, optou pela saída oportunista, de romper com o Presidente Siles Zuazo, retirando todos os seus ministros do governo e indo para a oposição, sem, obviamente, renunciar à vice-presidência.
Mesmo na esquerda, haviam diversos líderes declarados de ‘esquerda’ nascidos nos lares abastados das oligarquias, como Jaime Paz Zamora, primo de Victor Paz Estenssoro e de Oscar Zamora Medinacelli, do PCML, Partido Comunista Marxista-Leninista, de linha maoísta; embora ‘natural’, Hernán Siles Zuazo, de mãe chilena, era filho de um ex-presidente, Hernando Siles, e irmão de pai do ex-vice-presidente Luis Siles Salinas, filho ‘legítimo’ desse dirigente liberal que chegara à presidência da República; Gonzalo Sánchez de Lozada, o ‘Goni’, primeiro ministro das Finanças de Victor Paz Estenssoro e depois Presidente da República com o voto de dissidentes da esquerda no Congresso Nacional, também era descendente das oligarquias mineradoras da Bolívia, e que havia morado nos Estados Unidos quando da Revolução Nacionalista de 1952. Carlos D. Mesa Gisbert, igualmente, membro da nova oligarquia boliviana, com perfil intelectual por conta do ofício dos pais, os arquitetos e historiadores José de Mesa e Teresa Gisbert de Mesa, docentes e pesquisadores da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz.
O fato é que o proletariado urbano e rural (operários e campesinos) e povos indígenas, à exceção de momentos pontuais, nunca estiveram representados em todos os governos republicanos. Daí por que a Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia de 2009 passou a estabelecer critérios definidos, como a expressão ‘direitos comunitários’, para designar novos paradigmas consignados no novo arcabouço jurídico conquistado no processo de refundação da Bolívia, agora como Estado Plurinacional. A polarização política do país, aliás, é resposta das elites brancas contra as transformações conquistadas por amplas camadas sociais bolivianas -- a imensa maioria de mais de 70% --, que só agora passaram a ter voz e vez.
É fundamental observarmos que os povos originários sempre foram ‘bucha de canhão’ em todas as guerras em que a Bolívia se envolveu, sob governos ‘liberais’ -- na tentativa de as elites reduzirem a população nativa e pela aguçada consciência coletiva, nesse caso patriótica, para enfrentar ‘o inimigo da pátria’ --, em que perdeu uma porção territorial maior que as atuais dimensões de seu território: Conflito do Sul (com a Argentina), em 1860, em que o Brasil pressionou a república platina a devolver parte do território boliviano; Guerra do Pacífico, em 1879, perdeu seu litoral, o deserto de Atacama e duas cidades portuárias (Calama e Antofagasta); Conflito do Acre, de 1904, em que perdeu o território do atual estado brasileiro que leva esse nome; Guerra com o Peru, 1909, em que a Bolívia perdeu parte da região amazônica que havia conseguido manter do Conflito do Acre com o Brasil; Guerra do Chaco, uma guerra fratricida que, além de empobrecer e dizimar milhares de pessoas humildes, destruiu e endividou sobremaneira os dois países mais pobres da América do Sul, insuflados por dois países vizinhos (Brasil e Argentina) e duas petroleiras transnacionais (Standard Oil e Shell). [https://es.wikipedia.org/wiki/Historia_territorial_de_Bolivia]
Em que pese a truculência dos ‘vice-reis’ que de alguma forma obtiveram destaque por terem conseguido explorar e oprimir contundentemente as populações nativas, a cultura ‘pré-colombiana’ não foi de todo extinta. Entre as várias manifestações antropológicas que sobreviveram, ainda que miscigenadas às culturas espanholas, está a identificação e conservação dos pisos ecológicos, além da manutenção da estrutura social originária que permitiu a perenização das comunidades praticamente originais, o ayllu ou aillu [PORTUGAL, Ana Raquel. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 208 p. ISBN 978-85-7983-000-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>].
Se observarmos a atual composição étnica da Bolívia, tal qual uma colcha racial de retalhos, entenderemos por que o Processo de Mudança Democrático e Cultural promovido pelo MAS de Evo Morales foi bem sucedido: a grande maioria da população passou a ser protagonista, ainda que as instituições ainda sejam frágeis por causa da conduta traiçoeira da ‘classe’ média, que se aliou às elites brancas para dar o golpe em novembro de 2019. Embora as estatísticas oficiais sempre reconhecessem que a Bolívia é um país de maioria indígena, somente agora é que há mecanismos institucionais de assegurar essa representatividade e, sobretudo, um protagonismo inédito na vida política boliviana pós-2009, quando da refundação do Estado boliviano.
Segundo o Mapa Étnico da Bolívia, são mais de 100 Nações Originárias desses pelo menos quatro troncos linguísticos. O Oriente boliviano é constituído pelos departamentos de Santa Cruz (capital Santa Cruz de la Sierra), Beni (capital Trinidad) e Pando (capital Cobija); nesta porção o tronco linguístico originário é o Tupi-Guarani. A porção Andina é constituída pelos departamentos de La Paz (capital La Paz, que é também a sede do governo nacional), Oruro (capital Oruro), Potosí (capital Potosí) e Cochabamba (capital Cochabamba); os troncos linguísticos originários são o Quéchua, Aymara e Uru. A porção Sul é formada pelos departamentos de Chuquisaca (capital Sucre, que é também a capital da Bolívia) e Tarija (capital Tarija); os troncos linguísticos originários são Quéchua e Aimara, diluído pela presença acentuada de descendentes de europeus.
Ao contrário da história oficial boliviana, são os Quéchua -- descendentes dos Incas --, Aimara e Uru os grandes protagonistas da resistência à colonização, espoliação e toda opressão e exploração desenvolvida pelo colonizador europeu. Tupac Katari é o mártir mais eloquente de todo o processo de violência usurpadora espanhola. É dele a lendária manifestação quando de sua condenação à morte, muito parecida à de Tiradentes (por esquartejamento), e que virou refrão durante a campanha pela eleição do candidato do MAS, indicado por Evo Morales: “¡Volveré y seré millones!” [“Voltarei e serei aos milhões!”]
Em síntese, esta é a Bolívia, para muitos incompreensível e misteriosa, mas, na verdade, vítima da cobiça dos europeus e estadunidenses, obviamente, com a ajuda de muitos bolivianos vira-latas, que por menos de trinta moedas vendem sua pátria com o único afã de obter alguma vantagem efêmera. Aliás, não muito diferente do que ocorre com o Brasil, Chile, Peru, Argentina, Equador, Venezuela, Colômbia etc.
Contudo, enquanto no Brasil o Estado Democrático de Direito tenta se manter, mesmo como equilibrista ante as investidas do Centrão e da extrema direita, na Bolívia o Estado Plurinacional parece ter chegado a uma perigosa exaustão por conta da capitulação, ou melhor, claudicação sob cooptação do atual presidente Luis ‘Lucho’ Arce Catacora. Está evidente a traição cometida por ele e os principais integrantes de seu governo que não mais se declara plurinacional, mas ‘nacional’, embora tenha sido rifado aos interesses antinacionais mediante uma tácita aliança com dirigentes políticos reconhecidamente contrários às conquistas populares de 2005, como Manfred Reyes Villa, Jorge ‘Tuto’ Quiroga Ramírez e Samuel Doria Medina, atuais candidatos à presidência do Estado Plurinacional da Bolívia, além dos ex-presidentes Gonzalo Goni Sánchez de Lozada, Carlos D. Gisbert de Mesa e Jaime Paz Zamora, entre outros.
Ahmad Schabib Hany
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