Data
vênia, Doutor Ulysses!
12 de outubro de 1992. Depois de liderar o impeachment do fascistoide que, com trapaças, venceu as primeiras eleições pós-1964, verme que se dizia caçador de marajás (ou seria maracujás?), o Doutor Ulysses da Silveira Guimarães desaparece no mar ao sofrer um acidente fatal com Dona Mora, sua eterna Companheira; o grande Severo Fagundes Gomes, democrata a toda prova; Dona Henriqueta, Companheira do ex-senador, e o piloto Jorge Comemorato, cujos corpos foram resgatados do mar.
Passaram-se 31 anos do acidente que curiosa e inexplicavelmente surrupiou a existência protetora do Estado Democrático de Direito em 1992 do Deputado Ulysses da Silveira Guimarães, depois de ter liderado a mobilização popular pelo impeachment da segunda maior farsa (a primeira foi Jânio, e a terceira o inominável, e agora inelegível). Estadista por excelência, e por isso odiado pelas elites canhestras deste país-continente, o Doutor Ulysses, ou Senhor Democracia, foi o responsável pela transição inabalável para instalar a Democracia plena no Brasil, sob todo tipo de pressão e difamações.
Nós, que tivemos a sorte de tê-lo bem próximo de nós em 1982 (eleição do Doutor Wilson Barbosa Martins para governador), 1983 (campanha das Diretas-Já), 1984 (campanha no Colégio Eleitoral Tancredo Presidente) e 1989 (campanha presidencial Ulysses Presidente, em sua vinda a Corumbá no primeiro-turno), podemos dizer que se tratava de um homem sincero e totalmente despido de ambições pessoais. O projeto de construir a Democracia a qualquer custo, assegurar a Soberania Popular e Nacional e romper com a dependência com o FMI (Fundo Monetário Internacional) era sua maior obsessão.
Quando se comemoram os 35 anos da Constituição Federal, a Constituição Cidadã, neste 5 de outubro de 2023, temos que fazer a devida homenagem à honrada memória do Doutor Ulysses Guimarães, cuja ausência do panorama político nacional tem prejudicado muito a garantia da defesa dos interesses maiores da população brasileira, como no caso das perversidades promovidas pelos ratos do baixo clero que também atendem pelo apelido de centrão, além das hordas de hienas famintas constituídas de fascistas declarados e que haverão de responder pelos crimes de lesa-humanidade tão logo chegar a sua hora.
O texto a seguir, postado em 2018, é uma modesta homenagem ao grande brasileiro que nos ensinou tanto em tão pouco tempo. Esta homenagem ocorre três dias depois da eternização de outro grande brasileiro, Dom Mauro Morelli, Arcebispo de Nova Iguaçu e São João de Meriti (Baixada Fluminense), ex-presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), por meio do qual deu suporte institucional à Campanha Contra a Fome, como foi conhecida popularmente a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida (ou, simplesmente, Ação da Cidadania) no Governo Itamar Franco, com a bela participação do Sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, inspirador e grande mobilizador da campanha em todo o Brasil, eternizado no mesmo período de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, todos eles de saudosa memória.
DATA VÊNIA, DOUTOR ULYSSES!
Ainda que o presidente nanico da mais alta corte da Justiça brasileira tenha apequenado o Estado Democrático de Direito e, mais uma vez, permitido que a Constituição Federal de 1988 fosse mais uma vez estuprada, reverberam em nossas consciências os brados do maior democrata que esta nação testemunhou, no exato momento em que a Constituição Cidadã era promulgada, e cuja síntese é esta: “A sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram...”
Perdoe-os, Doutor Ulysses. Eles não sabem o que fazem... Os dois últimos presidentes do STF preferiram estar ao lado dos facínoras que mataram Rubem Paiva, não há dúvida. Mas temos ainda brasileiros da magnitude de Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Apenas, mas temos. Porque não se apequenam. Porque não têm medo da farda. Não têm medo do coturno. Não têm medo de tanques. Como o povo brasileiro, que, quando se cansar de toda essa farsa, não temerá cercos, cercas, baionetas, cassetetes, bombas de efeito moral ou balas de borracha, e até as reais.
O Doutor Ulysses, aquele mesmo senhor que ousou ser anticandidato em 1973, em pleno período sombrio da ditadura de Emílio Garrastazu Médici, tendo como mote uma estrofe de Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”. O mesmo que, em 1989, com a lealdade que lhe era peculiar, apoiou o candidato metalúrgico contra o caçador de maracujás, digo, marajás (mas onde estão os marajás neste país cujas elites padecem de complexo de vira-latas?), depois de ter sido vítima da deslealdade daqueles que se locupletaram da democracia recém-conquistada. Pois é, mesmo humilhado por uma inexpressiva votação em sua última eleição parlamentar, em 1990, teve a altivez de encabeçar o movimento dos caras pintadas e apoiar o necessário processo de impeachment contra Collor, a segunda grande farsa (a primeira havia sido Jânio, e a terceira é Bolsonaro).
Se fizermos memória e relembrarmos as ironias do mequetrefe pena de aluguel, sabujo de última da famiglia proprietária da maior máquina de propaganda cuja concessão deveria ter sido cassada pelos desserviços cometidos contra a nação, Alexandre Garcia, quando o nomeou de “tetrapresidente” com o único afã de desmoralizá-lo, eis que o veterano político jamais caíra nas graças desses meliantes serviçais do império. E qual não foi a satisfação com que cobriram o (sic) “desaparecimento” de seu corpo nas águas do Oceano Atlântico, em 12 de outubro de 1992, dias depois do impeachment de Collor, o candidato daquela família nefasta?
Pois bem, para o(a)s pouco(a)s que leem nestes tempos de analfabetismo cerebral (não mais funcional, pois são os/as portadores/as de “diplomas” os/as que mais têm dificuldade de depreender o que têm diante de si), deixo a íntegra do pronunciamento de Ulysses Guimarães no ato solene de promulgação da Constituição Federal de 1988, como um réquiem para nossa finada Democracia, pelos que deveriam protegê-la, preservá-la e fazer valer. Mas, como dizia Millôr Fernandes, naqueles anos de chumbo e gemidos: “‘Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.’ Mas que tinha os dois jaz a sete palmos.”
“Senhoras e senhores Constituintes, minhas senhoras e meus senhores! Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, cinco de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão, e é só cidadão quem ganha suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa, num país de trinta milhões, quatrocentos e trinta e um mil analfabetos, afrontosos vinte e cinco por cento da população, cabe advertir: a cidadania começa com o analfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição, como vigia espera a aurora.”
“A nação nos mandou executar um serviço: nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim; divergir, sim; descumprir, jamais; afrontá-la, nunca! Traidor da Constituição é traidor da Pátria! Conhecemos o caminho maldito: rasgar a própria Constituição, trancar as portas do Parlamento, cercear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, para o exílio, para o cemitério.”
“Quando, após anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do homem, da liberdade, da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura -- ódio e nojo! --, amaldiçoamos a tirania, onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina! Foi a audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram elaboradas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, do longo trajeto das subcomissões à redação final.”
“A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria, salões... Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar...”
“Como caramujo, guardará para sempre nas costas o bramido das ondas de sofrimento, esperança, reivindicações de onde proveio. Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres, teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos de que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. Tem significado de diagnóstico, a constituição terá largado o exercício da democracia em representativa além de participativa -- é o clarim da soberania popular indireta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o campo das necessidades sociais.”
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é um superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos, do presidente da república ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam! Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.”
“Não é a Constituição perfeita: se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser reformada, remendada, até por maioria mais acessível, dentro de cinco anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora: será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados...”
“É caminhando que se abrem os caminhos! Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros, ignorados da miséria! A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: "Desobedecer El-Rey para servir a El-Rey." O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros.”
“O Estado prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia libertou e repatriou. A sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram... Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já e pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar! A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança... Que a promulgação seja o nosso grito: mudar para vencer! Muda, Brasil!...”
Data vênia, Doutor Ulysses!
Ahmad
Schabib Hany
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