sábado, 23 de julho de 2022

PÉSSIMO EXEMPLO

Péssimo exemplo

Como é possível posar de moralista quando se é exemplo de amoral, e como ser patriota quando o povo está entregue à própria sorte, a soberania nacional aos abutres do mercado e o Estado Democrático de Direito aos ‘viúvos’ da ditadura de 1964?

Desde antes de 2019 o detentor do mais cobiçado cargo da República tem feito uma série de atos nada recomendáveis a um dignitário. A liturgia do cargo, isto é, o protocolo é de extremo rigor, podendo chegar à deposição do cargo por inobservância de questões aparentemente irrelevantes. Como a que levou ao impeachment fraudulento de Dilma Rousseff, por supostas ‘pedaladas fiscais’, uma figura jurídica heterodoxa, própria da invencionice golpista do centrão, o mesmo que hoje dá apoio ao atual inquilino do Planalto.

Quando se pensa na República é imprescindível nos remetermos ao tempo em que Pedro de Alcântara (o futuro Pedro I do Brasil e Pedro IV de Portugal) era príncipe herdeiro por conta do retorno de D. João VI a Portugal. O próprio rei de Portugal havia deixado um conselheiro influente, de sua confiança, chamado José Bonifácio de Andrada e Silva, que tinha um irmão tão ardiloso quanto ele, Antônio Carlos de Andrada e Silva (a quem é atribuída a nefasta consigna das elites brasileiras, “façamos a revolução antes que o povo a faça”, que parece uma sina para este país-continente).

E que é, mesmo, o ‘patriarca da Independência’? Precisamente o conselheiro deixado por João VI para orientar o príncipe herdeiro, supostamente de sua maior confiança. Só que não. Representante das oligarquias brasileiras, feitas à base das mordomias e benesses dos membros da corte portuguesa no Brasil, José Bonifácio (e Antônio Carlos por trás) se incumbiu de realizar a ruptura dos elos entre a metrópole e a colônia. Assim -- sem qualquer pudor ou comedimento --, a 7 de setembro de 1822, o jovem aspirante a imperador era induzido a celebrar a cobiçada emancipação das exuberantes e generosas terras colonizadas pelos lusitanos desde o século XVI.

À luz dos ensinamentos do positivismo, aquela corrente de pensamento fundada pelo filósofo francês August Comte, o Império do Brasil foi constituído como um regime monárquico absolutista. Até por influência de José Bonifácio, o jovem monarca Pedro I fazia questão de exercer o chamado Poder Moderador, ele pessoalmente. Resultado: a primeira Constituição brasileira levou anos para ser outorgada (sim, outorgada; porque o imperador foi quem impôs a sua íntegra, de modo que promulgada somente a Carta Constitucional de 1945 é que seria, a refletir os anseios da população).

Não demorou muito para que os brasileiros organizassem o Partido Brasileiro, contra os membros do Partido Português, além de uma série de movimentos ‘nativistas’ (na verdade, movimentos emancipadores), contrários à hegemonia dos ex-colonizadores num país recém-independizado. O pior é que a repressão aos nacionalistas era tão severa quanto a dos funestos tempos da colonização, como quando a Conjuração Mineira foi desbaratada e seus dirigentes severamente punidos, tendo Joaquim José da Silva Xavier enforcado, esquartejado e partes de seu corpo salgadas e expostas em diferentes locais de Vila Rica, local do movimento contra os abusos dos membros da corte.

Até Cuiabá participou das rebeliões contra os abusos do Império recém-implantado, com os mesmos vícios, aliás, do antigo regime. Acontece que a família real e a ex-metrópole eram as mesmas, tanto é que Pedro I abdicou em favor de seu filho ainda criança, que pouco tempo depois, antes de completar os seis anos, foi entronizado como Pedro II, e ponto final. Nem a escravidão havia sido abolida até então, e muito menos os privilégios conferidos aos portugueses, que se impunham contra os súditos brasileiros sem qualquer temor ou discrição.

A sorte, mera sorte, é que, ao contrário de Pedro I, o segundo e último imperador era um homem de ciências e de letras, dentro do figurino positivista. Tão logo assumiu sua condição de príncipe regente, ainda menor de idade, foi logo criando o Colégio Pedro II e, na edícula do palácio imperial, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cujos estatutos, elaborados pelo próprio imperador, davam total poder ao monarca, que também era responsável por financiar o que deveria ter sido a primeira Universidade brasileira (até porque ela somente apareceu quase um século depois, nos anos 1920). Ao contrário dos países vizinhos, todos eles Repúblicas, como uma cláusula pétrea constava do documento constitutivo do IHGB que o Brasil era um país monárquico, católico, branco e de valores solidamente positivistas.

No entanto, só depois da conflagração da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai é que as forças armadas foram profissionalizadas, as fronteiras demarcadas e o Estado propriamente nacional passou a ser concretizado com a emissão de documentos como o de reservista. Como a Igreja e o Estado somente iriam ser separados depois da Revolução de 1930 (aquela que entregou o poder a Getúlio Vargas), eram as paróquias espalhadas pelo território nacional as que se encarregavam de emitir a certidão de batismo, de casamento e de óbito. Somente com Getúlio, ainda que sendo ditador, é que foram instituídos documentos de caráter nacional, como a Carteira de Trabalho e o Cadastro de Identificação de Contribuintes (CIC, depois CPF), 100 anos depois de proclamada a Independência do Brasil.

Em resumo, apesar de estarmos comemorando este ano -- daqui a menos de dois meses, em 7 de setembro de 2022 --, o Bicentenário da Independência, tivemos somente 50 anos de vida democrática (entre 1945 e 1964, e entre 1985 e 2016), ainda assim, com algumas turbulências, como as que precederam o suicídio de Getúlio em 1954, o golpe de 1964 contra João Goulart e os tumultos desestabilizadores contra Dilma entre 2013 e 2016 e a obsessiva perseguição lavajatista de Moro e Dallagnol contra Lula para impedir a sua virtual eleição em 2018. A rigor, nem 50 anos de vida plenamente democrática em 200 anos de vida independente.

De que maneira, então, poderíamos esperar de um quase desertor da caserna um gesto republicano, quando nem como parlamentar, em seus mais de 28 anos de parasitismo congressual, conseguiu inspirar seus pares a uma cruzada cívica? Pelo contrário, houve, sim, o protagonismo de vários atos em que obscenidades foram vociferadas em meio a ofensas nada republicanas. A história é um dos melhores instrumentos de análise e de avaliação da qualidade da democracia de qualquer país, sobretudo à luz dos valores civilizatórios, republicanos e democráticos.

Que neste ano da celebração do Bicentenário da Soberania Brasileira o povo expresse sua vontade soberana nas urnas e que a esperança renasça em todos os corações. Feliz Nova República, em consonância com os anseios da maioria do Povo, como a Democracia preconiza e consigna. Parabéns, Povo Brasileiro, laborioso, acolhedor e hospitaleiro!

Ahmad Schabib Hany

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