Péssimo exemplo
Como é possível posar de moralista quando se é
exemplo de amoral, e como ser patriota quando o povo está entregue à própria
sorte, a soberania nacional aos abutres do mercado e o Estado Democrático de
Direito aos ‘viúvos’ da ditadura de 1964?
Desde antes de 2019 o detentor do mais cobiçado
cargo da República tem feito uma série de atos nada recomendáveis a um
dignitário. A liturgia do cargo, isto é, o protocolo é de extremo rigor,
podendo chegar à deposição do cargo por inobservância de questões aparentemente
irrelevantes. Como a que levou ao impeachment fraudulento de Dilma Rousseff,
por supostas ‘pedaladas fiscais’, uma figura jurídica heterodoxa, própria da
invencionice golpista do centrão, o mesmo que hoje dá apoio ao atual inquilino
do Planalto.
Quando se pensa na República é imprescindível nos
remetermos ao tempo em que Pedro de Alcântara (o futuro Pedro I do Brasil e
Pedro IV de Portugal) era príncipe herdeiro por conta do retorno de D. João VI
a Portugal. O próprio rei de Portugal havia deixado um conselheiro influente,
de sua confiança, chamado José Bonifácio de Andrada e Silva, que tinha um irmão
tão ardiloso quanto ele, Antônio Carlos de Andrada e Silva (a quem é atribuída
a nefasta consigna das elites brasileiras, “façamos a revolução antes que o
povo a faça”, que parece uma sina para este país-continente).
E que é, mesmo, o ‘patriarca da Independência’?
Precisamente o conselheiro deixado por João VI para orientar o príncipe
herdeiro, supostamente de sua maior confiança. Só que não. Representante das
oligarquias brasileiras, feitas à base das mordomias e benesses dos membros da
corte portuguesa no Brasil, José Bonifácio (e Antônio Carlos por trás) se
incumbiu de realizar a ruptura dos elos entre a metrópole e a colônia. Assim --
sem qualquer pudor ou comedimento --, a 7 de setembro de 1822, o jovem
aspirante a imperador era induzido a celebrar a cobiçada emancipação das
exuberantes e generosas terras colonizadas pelos lusitanos desde o século XVI.
À luz dos ensinamentos do positivismo, aquela
corrente de pensamento fundada pelo filósofo francês August Comte, o Império do
Brasil foi constituído como um regime monárquico absolutista. Até por
influência de José Bonifácio, o jovem monarca Pedro I fazia questão de exercer
o chamado Poder Moderador, ele pessoalmente. Resultado: a primeira Constituição
brasileira levou anos para ser outorgada (sim, outorgada; porque o imperador
foi quem impôs a sua íntegra, de modo que promulgada somente a Carta
Constitucional de 1945 é que seria, a refletir os anseios da população).
Não demorou muito para que os brasileiros
organizassem o Partido Brasileiro, contra os membros do Partido Português, além
de uma série de movimentos ‘nativistas’ (na verdade, movimentos emancipadores),
contrários à hegemonia dos ex-colonizadores num país recém-independizado. O pior
é que a repressão aos nacionalistas era tão severa quanto a dos funestos tempos
da colonização, como quando a Conjuração Mineira foi desbaratada e seus
dirigentes severamente punidos, tendo Joaquim José da Silva Xavier enforcado,
esquartejado e partes de seu corpo salgadas e expostas em diferentes locais de
Vila Rica, local do movimento contra os abusos dos membros da corte.
Até Cuiabá participou das rebeliões contra os
abusos do Império recém-implantado, com os mesmos vícios, aliás, do antigo
regime. Acontece que a família real e a ex-metrópole eram as mesmas, tanto é
que Pedro I abdicou em favor de seu filho ainda criança, que pouco tempo
depois, antes de completar os seis anos, foi entronizado como Pedro II, e ponto
final. Nem a escravidão havia sido abolida até então, e muito menos os
privilégios conferidos aos portugueses, que se impunham contra os súditos
brasileiros sem qualquer temor ou discrição.
A sorte, mera sorte, é que, ao contrário de Pedro
I, o segundo e último imperador era um homem de ciências e de letras, dentro do
figurino positivista. Tão logo assumiu sua condição de príncipe regente, ainda
menor de idade, foi logo criando o Colégio Pedro II e, na edícula do palácio
imperial, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cujos
estatutos, elaborados pelo próprio imperador, davam total poder ao monarca, que
também era responsável por financiar o que deveria ter sido a primeira
Universidade brasileira (até porque ela somente apareceu quase um século
depois, nos anos 1920). Ao contrário dos países vizinhos, todos eles
Repúblicas, como uma cláusula pétrea constava do documento constitutivo do IHGB
que o Brasil era um país monárquico, católico, branco e de valores solidamente
positivistas.
No entanto, só depois da conflagração da Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai é que as forças armadas foram
profissionalizadas, as fronteiras demarcadas e o Estado propriamente nacional
passou a ser concretizado com a emissão de documentos como o de reservista.
Como a Igreja e o Estado somente iriam ser separados depois da Revolução de
1930 (aquela que entregou o poder a Getúlio Vargas), eram as paróquias
espalhadas pelo território nacional as que se encarregavam de emitir a certidão
de batismo, de casamento e de óbito. Somente com Getúlio, ainda que sendo
ditador, é que foram instituídos documentos de caráter nacional, como a
Carteira de Trabalho e o Cadastro de Identificação de Contribuintes (CIC,
depois CPF), 100 anos depois de proclamada a Independência do Brasil.
Em resumo, apesar de estarmos comemorando este ano
-- daqui a menos de dois meses, em 7 de setembro de 2022 --, o Bicentenário da
Independência, tivemos somente 50 anos de vida democrática (entre 1945 e 1964,
e entre 1985 e 2016), ainda assim, com algumas turbulências, como as que
precederam o suicídio de Getúlio em 1954, o golpe de 1964 contra João Goulart e
os tumultos desestabilizadores contra Dilma entre 2013 e 2016 e a obsessiva
perseguição lavajatista de Moro e Dallagnol contra Lula para impedir a sua
virtual eleição em 2018. A rigor, nem 50 anos de vida plenamente democrática em
200 anos de vida independente.
De que maneira, então, poderíamos esperar de um
quase desertor da caserna um gesto republicano, quando nem como parlamentar, em
seus mais de 28 anos de parasitismo congressual, conseguiu inspirar seus pares
a uma cruzada cívica? Pelo contrário, houve, sim, o protagonismo de vários atos
em que obscenidades foram vociferadas em meio a ofensas nada republicanas. A
história é um dos melhores instrumentos de análise e de avaliação da qualidade
da democracia de qualquer país, sobretudo à luz dos valores civilizatórios,
republicanos e democráticos.
Que neste ano da celebração do Bicentenário da
Soberania Brasileira o povo expresse sua vontade soberana nas urnas e que a
esperança renasça em todos os corações. Feliz Nova República, em consonância
com os anseios da maioria do Povo, como a Democracia preconiza e consigna.
Parabéns, Povo Brasileiro, laborioso, acolhedor e hospitaleiro!
Ahmad Schabib Hany
Nenhum comentário:
Postar um comentário