segunda-feira, 6 de setembro de 2021

‘¿CUÁL ES TU GRANDEZA?’



‘¿CUÁL ES TU GRANDEZA?’

Cinquenta anos depois do envio do telegrama em que comunicava o suposto falecimento do nosso saudoso Irmão ‘Chichi’ durante o sangrento golpe militar de Banzer, o ‘Tío Yoco’ se eterniza, não sem antes ver a Bolívia democratizada.

“Mis pésames. Chichi falleció. Yoco.” Esse era o lacônico teor do telegrama recebido por nossos Pais em um dia de semana de agosto de 1971, durante a eclosão do sangrento golpe militar protagonizado por dois coronéis fascistas - Andrés Selich e Hugo Banzer -, fantoches do Colégio Interamericano de Washington, em que haviam sido adestrados na doutrina da segurança nacional, durante a guerra fria.

Carinhosamente chamado por nós de ‘Tío Yoco’, Irmão mais novo de nossa saudosa Mãe, o Professor José Tamim Hany Ascimani fora incumbido por nossa saudosa Avó materna, Guadalupe Ascimani Vda. de Hany, de escrever aos nossos Pais para comunicar o trágico desenlace de nosso saudoso Irmão mais velho, Mohamed Schabib Hany, chamado na intimidade de ‘Chichi’. Na mesma hora, nossa Mãe e nosso Irmão Muslim, hoje médico aposentado no México, pegaram o primeiro trem de passageiros rumo a Santa Cruz de la Sierra para providenciar o traslado do corpo, que supostamente estaria nos escombros daquilo que um dia fora o Restaurante Universitário da UMSA (Universidad Mayor de San Andrés), em La Paz.

Por meio de Amigos e parentes residentes em La Paz, o mesmo ‘Tío Yoco’ constatou o erro cometido pelas fontes, em meio aos tiros e bombardeios aéreos sobre o chamado ‘monobloco’ (prédio original) da UMSA, durante a realização do massacre que precedeu à vitória dos golpistas sanguinários, capitaneados por dois facínoras chamados Andrés Selich e Hugo Banzer, coronéis do Exército boliviano, serviçais do Colégio Interamericano de Washington. O golpe militar visava derrubar o general esquerdista Juan José Torres, que um ano antes fora apoiado pelos movimentos populares durante o malogrado golpe do general Rogelio Miranda, que ficou por apenas quatro horas no Palacio Quemado, sede de governo. Os mesmos movimentos populares que o apoiaram um ano antes eram os que faziam o cerco de proteção ao Presidente Torres ante as investidas sanguinárias dos golpistas, que tinham em Santa Cruz o epicentro do levante golpista. E era lá onde se encontrava ‘Chichi’, como dirigente estudantil, com líderes operários, camponeses, indígenas, intelectuais e religiosos, razão pela qual estivera a salvo dos bombardeios no RU da UMSA.

Decorridos 50 anos do envio desse histórico telegrama, guardado durante muitos anos por nossos Pais, eis que o protagonista José Tamim encerra sua jornada de oito décadas, mesmo dia em que o emblemático ator, dramaturgo e ativista cultural Sérgio Mamberti também se eternizou, para consternação da cultura universal. Seja o Professor José Hany ou simplesmente ‘Tío Yoco’, mais por seu caráter que pela formação teológica (foi seminarista católico, Professor de Filosofia e Ensino Religioso por décadas a fio, inclusive depois de ter sido sócio em uma escola tradicional de Cochabamba, para onde a Família de nossos Avós se mudaram quando nossa Mãe ainda era solteira).

No dia 3 de setembro de 2021, era de nosso Primo Luis Antonio Mejía Hany a lacônica mensagem, por WhatsApp: “A las 9h50m de esta mañana Tío Yoco falleció. ¡Que en paz descanse!” Eternizara-se um incansável peregrino, um idealista inesgotável. E como num filme, voltei décadas atrás, quando me descobri na casa de nossa Avó Guadalupe, a eterna ‘Abuelita’, tamanho o afeto que lhe devotamos, e que se eternizou, aos 73 anos, depois de ter resistido a um câncer no fígado, no fatídico 1980, ano em que o general narcotraficante Luis García Meza implantou a sanguinária ditadura da cocaína.

As mais antigas lembranças que tenho na memória do ‘Tío Yoco’ são das férias de 1966, um ano depois da eternização do ‘Abuelito’, o Avô materno José Al Hany, que também foi atormentado por um câncer no intestino que o impediu de chegar aos 80 anos. Tudo ainda lembrava o nosso Avô José, inclusive os equipamentos de dentista guardados na despensa da casa, uma ‘broca’ de pedal, do tempo em que a eletricidade ainda não era tão comum, em especial na Amazônia boliviana, onde trabalhou desde que chegou à Bolívia, na segunda década do século XX.

Embora nunca tivesse perguntado ao ‘Tío Yoco’, sempre me deu a impressão do fato de ser homônimo do Vovô acabou pesando sobre ele a responsabilidade de ser o ‘homem da casa’, muito comum nas famílias do início do século XX. Lembro-me que nossa saudosa Mãe se dirigia a ele por ‘Viejo’, mesmo ele sendo 10 anos mais novo que ela e, inclusive, caçula dos homens (antes dele vinham três Tios, dois deles casados e residentes na Argentina). Creio que por essa responsabilidade ele tivesse deixado a vida religiosa (afinal, passara bons anos no seminário, para ser sacerdote católico, razão pela qual se manteve celibatário até o final da Vida).

O ano de 1966 não me sai da memória por ter sido o ano da celebração do ‘bachillerato’ de nossos dois Irmãos mais velhos - Mohamed e Muslim -, quando ‘Chichi’ ganhou o anel de honra ao mérito por ter sido o melhor aluno da escola em três anos sucessivos (mas Muslim também fora, pois estava com ele, logo a seguir, com as menções honrosas típicas daquele tempo). O colégio tinha um nome emblemático: Colegio Nacional Daniel Sánchez Bustamante, tradicional e ‘fiscal’ (isto é, público). Na festa de ‘formatura’, o diretor do colégio fez questão de ir até a mesa de nossa Família, em que estavam, além de nossa Mãe, o ‘Tío Yoco’ e os dois Irmãos, muito cumprimentados pelos Professores, colegas e suas Famílias.

Dias depois (acredito que tenha sido no dia seguinte), Mohamed e Muslim tiveram que ir até um dos quartéis do Exército para fazer o que era chamado de ‘serviço pré-militar’ (espécie de prova de tiro, durante quatro meses), antes de ingressar na Universidade, segundo as leis bolivianas da época. Era o ‘Tío Yoco’ um dos responsáveis por nossos Irmãos perante as Forças Armadas, tal como ocorreu comigo quanto tive que me alistar no serviço militar, já no fim dos anos 1970, ditadura Banzer. Graças ao Amigo do ‘Tío Yoco’ pude cumprir com as minhas obrigações na fronteira, sem problemas.

Creio que tenha sido esse mesmo Amigo do ‘Tío Yoco’ quem tenha resolvido todas as pendências com o ‘Chichi’ em 1971, que, a despeito de seu nome ter constado de uma lista de ‘inimigos’ do regime banzerista, pôde usar passaporte especial assim que obteve os documentos emitidos pela UMSA para a transferência de seus papéis, o que lhe permitiu vir estudar no Brasil. O fato de o ‘Tío Yoco’ ter frequentado o seminário católico representou abertura de portas em diversas instituições, e sempre o fez para os outros, nunca pensou em aquinhoar vantagens para si.

No início da década de 1970, enquanto a Bolívia estava sob a ditadura de Banzer, ele foi para a Áustria, oportunidade em que se capacitou na área de Serviço Social, vinculado à fundação católica austríaca conhecida na América Latina por Gota de Leche. Ao retornar para a Bolívia, em fins dos anos 1970, ele coordenou durante muitos anos os trabalhos da Gota de Leche em Cochabamba, até aceitar a proposta de fazer parte de uma sociedade educacional na mesma cidade, para a qual se dedicou por mais de uma década ao ensino de Filosofia e Ensino Religioso.

Em dezembro de 1983, minha derradeira viagem a Cochabamba e La Paz, em companhia de nossa saudosa Mãe, tive o prazer de passar a Noite de Natal e o Revéllion de 1984 na casa dos Tios. Nessa ocasião, a Vida me permitiu um diálogo muito informal com esse Tio, que sabiamente me inquiriu: “Qual é a sua grandeza?” Era seu lado de Professor de Filosofia que o fez enveredar por esse caminho, e se tratou de uma oportunidade ímpar para eu, com quase 25 anos, começar a dar uma guinada na própria Vida. Não por acaso, sempre que eu quis questionar certas pessoas usei essa sábia indagação metafísica para aprofundar debates nessa perspectiva. Jamais esqueci. Um de seus maiores legados, pelo que lhe agradeço.

Em fins da década de 1980, quando vendeu a parte dele na sociedade educacional, deu início a outra fase da Vida: dedicar-se à venda de ativos financeiros da Bolívia, que se encontrava em franco processo de desmonte pelas políticas neoliberais. Curiosamente, seus contemporâneos de ‘esquerda’ (tipo tucanos no Brasil) eram os que promoviam uma verdadeira privataria no país, o que viria a causar sérios problemas econômicos e sociais, e lhe causava verdadeiros dramas de consciência. Provavelmente esse tivesse sido um dos fatores determinantes para que não alçasse voo nessa atividade, embora tivesse trânsito e prestígio em todos os países árabes industrializados.

Em 1995, quando o ‘Tío Yoco’ retornara de uma de suas viagens ao Oriente Médio, à procura de investidores na Bolívia, fiz questão apresentá-lo a um Amigo honesto e muito inteligente que tinha sido alto executivo da antiga Urucum Mineração e que denunciara as irregularidades na transferência de ações da Metamat S/A para a então CVRD, hoje Vale, cujo nome não vem ao caso. O Amigo, muito sincero, lhe disse que seu trabalho era muito arriscado, pois nas leis de muitos países árabes essa atividade era passível de sanção penal, razão pela qual não poderia assessorá-lo nessas empreitadas. Com a crise causada pelas medidas econômicas de Gonzalo Sánchez de Losada, o Goni, a situação da Bolívia ficou insustentável, quando a crise política culminou com a renúncia de Goni e depois de seu vice, Carlos Mesa. Lamentavelmente, não compreendeu o sentido inovador do Processo Cultural de Revolução Democrática implementado por Evo Morales e o MAS, ainda que reconhecesse a inconsistência dos falsos democratas como Carlos Mesa.

Foi quando ele preferiu se estabelecer no Líbano e centrar foco no Oriente Médio. De lá retornou muito doente e desanimado alguns anos depois. Nosso encontro derradeiro foi em Corumbá, quando ‘Tío Yoco’ e a saudosa ‘Nena’, das caçulas das Irmãs de nossa Mãe, vieram para meu casamento com Solange, em 2005. Ele e ‘Nena’ nos deram a honra de comer um peixe conosco nas primeiras semanas de casado. Desde então, somente pela internet mantínhamos contato. A saúde se debilitara nos últimos anos e a eternização de seu último Irmão, o ‘Tío Cuyé’ (Miguel Safwat Hany Ascimani), um genial arquiteto que dedicara sua Vida a restaurar monumentos históricos pela Bolívia e a lecionar História da Arte no curso de Arquitetura da UMSS (Universidad Mayor de San Simón), há dois anos, precipitou a precarização de seu quadro clínico. Nas duas semanas derradeiras de sua Vida, a saúde ficou muito instável, mas não quis ser internado, tendo-se eternizado em casa.

Com missa de corpo presente, o ‘Tío Yoco’ se despediu de toda a Família, Amigos e ex-alunos do Colegio Seis de Junio, de Cochabamba. Recebeu homenagens dos familiares, Amigos, ex-colegas, contemporâneos e ex-alunos. A discrição e perseverança com que agiu em toda a sua Vida marcou sua passagem por entre nós, sempre com uma generosa utopia nem sempre explicada. Seu legado em meio a uma luz enigmática permanecerá entre nós.

‘¡Hasta siempre, querido Tío Yoco!’ Que sua inquietude inesgotável, que o tornou jovem desde sempre, abra horizontes generosos entre as novas gerações, obviamente no contexto dos novos tempos.

Ahmad Schabib Hany

Um comentário:

LUIZ TAQUES disse...

Schabib Hany: de tão animado, no seu casamento, o noivo parecia que era esse seu tio. Guardo aquela alegria contagiante dele. Grande abraço.