‘¿CUÁL
ES TU GRANDEZA?’
Cinquenta anos depois do envio
do telegrama em que comunicava o suposto falecimento do nosso saudoso Irmão ‘Chichi’
durante o sangrento golpe militar de Banzer, o ‘Tío Yoco’ se eterniza, não sem
antes ver a Bolívia democratizada.
“Mis pésames. Chichi falleció. Yoco.” Esse era o
lacônico teor do telegrama recebido por nossos Pais em um dia de semana de
agosto de 1971, durante a eclosão do sangrento golpe militar protagonizado por
dois coronéis fascistas -
Andrés Selich e Hugo Banzer -,
fantoches do Colégio Interamericano de Washington, em que haviam sido
adestrados na doutrina da segurança nacional, durante a guerra fria.
Carinhosamente chamado por nós de ‘Tío Yoco’,
Irmão mais novo de nossa saudosa Mãe, o Professor José Tamim Hany Ascimani fora
incumbido por nossa saudosa Avó materna, Guadalupe Ascimani Vda. de Hany, de
escrever aos nossos Pais para comunicar o trágico desenlace de nosso saudoso
Irmão mais velho, Mohamed Schabib Hany, chamado na intimidade de ‘Chichi’. Na
mesma hora, nossa Mãe e nosso Irmão Muslim, hoje médico aposentado no México,
pegaram o primeiro trem de passageiros rumo a Santa Cruz de la Sierra para
providenciar o traslado do corpo, que supostamente estaria nos escombros
daquilo que um dia fora o Restaurante Universitário da UMSA (Universidad Mayor
de San Andrés), em La Paz.
Por meio de Amigos e parentes residentes em La Paz,
o mesmo ‘Tío Yoco’ constatou o erro cometido pelas fontes, em meio aos tiros e
bombardeios aéreos sobre o chamado ‘monobloco’ (prédio original) da UMSA, durante
a realização do massacre que precedeu à vitória dos golpistas sanguinários,
capitaneados por dois facínoras chamados Andrés Selich e Hugo Banzer, coronéis
do Exército boliviano, serviçais do Colégio Interamericano de Washington. O
golpe militar visava derrubar o general esquerdista Juan José Torres, que um
ano antes fora apoiado pelos movimentos populares durante o malogrado golpe do
general Rogelio Miranda, que ficou por apenas quatro horas no Palacio Quemado,
sede de governo. Os mesmos movimentos populares que o apoiaram um ano antes
eram os que faziam o cerco de proteção ao Presidente Torres ante as investidas
sanguinárias dos golpistas, que tinham em Santa Cruz o epicentro do levante
golpista. E era lá onde se encontrava ‘Chichi’, como dirigente estudantil, com líderes
operários, camponeses, indígenas, intelectuais e religiosos, razão pela qual
estivera a salvo dos bombardeios no RU da UMSA.
Decorridos 50 anos do envio desse histórico telegrama,
guardado durante muitos anos por nossos Pais, eis que o protagonista José Tamim
encerra sua jornada de oito décadas, mesmo dia em que o emblemático ator,
dramaturgo e ativista cultural Sérgio Mamberti também se eternizou, para
consternação da cultura universal. Seja o Professor José Hany ou simplesmente ‘Tío
Yoco’, mais por seu caráter que pela formação teológica (foi seminarista
católico, Professor de Filosofia e Ensino Religioso por décadas a fio,
inclusive depois de ter sido sócio em uma escola tradicional de Cochabamba,
para onde a Família de nossos Avós se mudaram quando nossa Mãe ainda era
solteira).
No dia 3 de setembro de 2021, era de nosso Primo
Luis Antonio Mejía Hany a lacônica mensagem, por WhatsApp: “A las 9h50m de esta
mañana Tío Yoco falleció. ¡Que en paz descanse!” Eternizara-se um incansável
peregrino, um idealista inesgotável. E como num filme, voltei décadas atrás,
quando me descobri na casa de nossa Avó Guadalupe, a eterna ‘Abuelita’, tamanho
o afeto que lhe devotamos, e que se eternizou, aos 73 anos, depois de ter
resistido a um câncer no fígado, no fatídico 1980, ano em que o general
narcotraficante Luis García Meza implantou a sanguinária ditadura da cocaína.
As mais antigas lembranças que tenho na memória do
‘Tío Yoco’ são das férias de 1966, um ano depois da eternização do ‘Abuelito’,
o Avô materno José Al Hany, que também foi atormentado por um câncer no
intestino que o impediu de chegar aos 80 anos. Tudo ainda lembrava o nosso Avô
José, inclusive os equipamentos de dentista guardados na despensa da casa, uma ‘broca’
de pedal, do tempo em que a eletricidade ainda não era tão comum, em especial
na Amazônia boliviana, onde trabalhou desde que chegou à Bolívia, na segunda
década do século XX.
Embora nunca tivesse perguntado ao ‘Tío Yoco’,
sempre me deu a impressão do fato de ser homônimo do Vovô acabou pesando sobre
ele a responsabilidade de ser o ‘homem da casa’, muito comum nas famílias do
início do século XX. Lembro-me que nossa saudosa Mãe se dirigia a ele por ‘Viejo’,
mesmo ele sendo 10 anos mais novo que ela e, inclusive, caçula dos homens
(antes dele vinham três Tios, dois deles casados e residentes na Argentina).
Creio que por essa responsabilidade ele tivesse deixado a vida religiosa
(afinal, passara bons anos no seminário, para ser sacerdote católico, razão
pela qual se manteve celibatário até o final da Vida).
O ano de 1966 não me sai da memória por ter sido o
ano da celebração do ‘bachillerato’ de nossos dois Irmãos mais velhos -
Mohamed e Muslim -,
quando ‘Chichi’ ganhou o anel de honra ao mérito por ter sido o melhor aluno da
escola em três anos sucessivos (mas Muslim também fora, pois estava com ele,
logo a seguir, com as menções honrosas típicas daquele tempo). O colégio tinha
um nome emblemático: Colegio Nacional Daniel Sánchez Bustamante, tradicional e ‘fiscal’
(isto é, público). Na festa de ‘formatura’, o diretor do colégio fez questão de
ir até a mesa de nossa Família, em que estavam, além de nossa Mãe, o ‘Tío Yoco’
e os dois Irmãos, muito cumprimentados pelos Professores, colegas e suas
Famílias.
Dias depois (acredito que tenha sido no dia
seguinte), Mohamed e Muslim tiveram que ir até um dos quartéis do Exército para
fazer o que era chamado de ‘serviço pré-militar’ (espécie de prova de tiro, durante
quatro meses), antes de ingressar na Universidade, segundo as leis bolivianas
da época. Era o ‘Tío Yoco’ um dos responsáveis por nossos Irmãos perante as
Forças Armadas, tal como ocorreu comigo quanto tive que me alistar no serviço
militar, já no fim dos anos 1970, ditadura Banzer. Graças ao Amigo do ‘Tío Yoco’
pude cumprir com as minhas obrigações na fronteira, sem problemas.
Creio que tenha sido esse mesmo Amigo do ‘Tío Yoco’
quem tenha resolvido todas as pendências com o ‘Chichi’ em 1971, que, a
despeito de seu nome ter constado de uma lista de ‘inimigos’ do regime
banzerista, pôde usar passaporte especial assim que obteve os documentos
emitidos pela UMSA para a transferência de seus papéis, o que lhe permitiu vir
estudar no Brasil. O fato de o ‘Tío Yoco’ ter frequentado o seminário católico
representou abertura de portas em diversas instituições, e sempre o fez para os
outros, nunca pensou em aquinhoar vantagens para si.
No início da década de 1970, enquanto a Bolívia
estava sob a ditadura de Banzer, ele foi para a Áustria, oportunidade em que se
capacitou na área de Serviço Social, vinculado à fundação católica austríaca
conhecida na América Latina por Gota de Leche. Ao retornar para a Bolívia, em
fins dos anos 1970, ele coordenou durante muitos anos os trabalhos da Gota de
Leche em Cochabamba, até aceitar a proposta de fazer parte de uma sociedade
educacional na mesma cidade, para a qual se dedicou por mais de uma década ao
ensino de Filosofia e Ensino Religioso.
Em dezembro de 1983, minha derradeira viagem a
Cochabamba e La Paz, em companhia de nossa saudosa Mãe, tive o prazer de passar
a Noite de Natal e o Revéllion de 1984 na casa dos Tios. Nessa ocasião, a Vida
me permitiu um diálogo muito informal com esse Tio, que sabiamente me inquiriu:
“Qual é a sua grandeza?” Era seu lado de Professor de Filosofia que o fez
enveredar por esse caminho, e se tratou de uma oportunidade ímpar para eu, com
quase 25 anos, começar a dar uma guinada na própria Vida. Não por acaso, sempre
que eu quis questionar certas pessoas usei essa sábia indagação metafísica para
aprofundar debates nessa perspectiva. Jamais esqueci. Um de seus maiores
legados, pelo que lhe agradeço.
Em fins da década de 1980, quando vendeu a parte
dele na sociedade educacional, deu início a outra fase da Vida: dedicar-se à
venda de ativos financeiros da Bolívia, que se encontrava em franco processo de
desmonte pelas políticas neoliberais. Curiosamente, seus contemporâneos de ‘esquerda’
(tipo tucanos no Brasil) eram os que promoviam uma verdadeira privataria no
país, o que viria a causar sérios problemas econômicos e sociais, e lhe causava
verdadeiros dramas de consciência. Provavelmente esse tivesse sido um dos
fatores determinantes para que não alçasse voo nessa atividade, embora tivesse
trânsito e prestígio em todos os países árabes industrializados.
Em 1995, quando o ‘Tío Yoco’ retornara de uma de
suas viagens ao Oriente Médio, à procura de investidores na Bolívia, fiz
questão apresentá-lo a um Amigo honesto e muito inteligente que tinha sido alto
executivo da antiga Urucum Mineração e que denunciara as irregularidades na
transferência de ações da Metamat S/A para a então CVRD, hoje Vale, cujo nome
não vem ao caso. O Amigo, muito sincero, lhe disse que seu trabalho era muito
arriscado, pois nas leis de muitos países árabes essa atividade era passível de
sanção penal, razão pela qual não poderia assessorá-lo nessas empreitadas. Com
a crise causada pelas medidas econômicas de Gonzalo Sánchez de Losada, o Goni,
a situação da Bolívia ficou insustentável, quando a crise política culminou com
a renúncia de Goni e depois de seu vice, Carlos Mesa. Lamentavelmente, não
compreendeu o sentido inovador do Processo Cultural de Revolução Democrática
implementado por Evo Morales e o MAS, ainda que reconhecesse a inconsistência
dos falsos democratas como Carlos Mesa.
Foi quando ele preferiu se estabelecer no Líbano e
centrar foco no Oriente Médio. De lá retornou muito doente e desanimado alguns
anos depois. Nosso encontro derradeiro foi em Corumbá, quando ‘Tío Yoco’ e a
saudosa ‘Nena’, das caçulas das Irmãs de nossa Mãe, vieram para meu casamento
com Solange, em 2005. Ele e ‘Nena’ nos deram a honra de comer um peixe conosco
nas primeiras semanas de casado. Desde então, somente pela internet mantínhamos
contato. A saúde se debilitara nos últimos anos e a eternização de seu último
Irmão, o ‘Tío Cuyé’ (Miguel Safwat Hany Ascimani), um genial arquiteto que
dedicara sua Vida a restaurar monumentos históricos pela Bolívia e a lecionar
História da Arte no curso de Arquitetura da UMSS (Universidad Mayor de San
Simón), há dois anos, precipitou a precarização de seu quadro clínico. Nas duas
semanas derradeiras de sua Vida, a saúde ficou muito instável, mas não quis ser
internado, tendo-se eternizado em casa.
Com missa de corpo presente, o ‘Tío Yoco’ se
despediu de toda a Família, Amigos e ex-alunos do Colegio Seis de Junio, de Cochabamba.
Recebeu homenagens dos familiares, Amigos, ex-colegas, contemporâneos e
ex-alunos. A discrição e perseverança com que agiu em toda a sua Vida marcou
sua passagem por entre nós, sempre com uma generosa utopia nem sempre explicada.
Seu legado em meio a uma luz enigmática permanecerá entre nós.
‘¡Hasta
siempre, querido Tío Yoco!’ Que sua inquietude inesgotável,
que o tornou jovem desde sempre, abra horizontes generosos entre as novas
gerações, obviamente no contexto dos novos tempos.
Ahmad
Schabib Hany
Um comentário:
Schabib Hany: de tão animado, no seu casamento, o noivo parecia que era esse seu tio. Guardo aquela alegria contagiante dele. Grande abraço.
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