GRATOS, HELÔ E DONA EUNICE!
O reconhecimento de uma manifestação
cultural popular como o banho de São João pelo IPHAN como patrimônio cultural
imaterial nacional confirma que a maior riqueza desta terra exuberante são seu
povo e sua vida (seu modo de ser e de viver, conviver, devotar, festar, falar,
amar, acolher, compartilhar, trabalhar, lutar e se relacionar com o próximo e
com o exuberante ambiente de seu entorno, o majestoso Pantanal).
Devemos isso, sobretudo, às pessoas que,
sem qualquer outro interesse, como uma razão de ser, dedicaram suas Vidas a
esse generoso e sincero objetivo, entre elas as saudosas Heloísa Urt e Dona Eunice
Ajala Rocha, sempre presentes, dignas de nossa sincera gratidão.
Parabéns a Corumbá e Ladário pela
conquista de um reconhecimento emblemático como o do banho de São João nas
águas do Rio Paraguai. É a vitória da Vida e da História neste momento lúgubre,
sombrio, que tanto nos aflige.
Com a devida vênia aos religiosos de
todas as denominações, mas parece que São João Batista recorreu a Nossa Senhora
da Candelária para ‘alumiar’ as mentes e corações de todos e, em meio ao breu e
às cinzas espalhadas de nosso querido, mas maltratado, Pantanal, nos chamar à
razão para cuidarmos do maior patrimônio que temos: o povo e sua vida, seu
jeito de ser, de viver, conviver, devotar (de devoção, por favor, mas também de
votar, por que não?), festar, amar, acolher, compartilhar, trabalhar, lutar e
se relacionar com o próximo e com o exuberante ambiente de seu entorno, o
Pantanal.
Com todo o respeito merecido pelo
esforço de todas as pessoas envolvidas nesta etapa conclusiva -
os atuais e ex-gestores, técnicos e conselheiros da Cultura e do Patrimônio
Histórico de Corumbá, Ladário, Mato Grosso do Sul e do IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico, Artístico Nacional) -, mas aqui cabe um reconhecimento
público especial a duas grandes cidadãs que não mais estão entre nós, “pantaneiras
da gema”: a querida Professora Heloísa Helena da Costa Urt e sua incansável e
generosa obsessão de valorizar a cultura popular (e ter tomado a iniciativa
corajosa em 2010, ao dar o pontapé inicial desta longa e exitosa tramitação) e a
igualmente querida Professora Eunice Ajala Rocha, cujo amor pelo povo e sua
cultura a tornou pioneira nas pesquisas sobre os cururueiros, a viola de cocho
e os festejos de São João no contexto da cultura popular pantaneira.
Cacerense de ‘chapa e cruz’, a
Professora Eunice Ajala, viúva do sempre lembrado Vereador Edu Rocha, apesar da
dor pela tragédia pessoal (afinal, seu Companheiro fora covardemente assassinado
quando se encontrava em plena ascensão política, em fins da década de 1950),
sempre amou o povo que a acolheu e à sua família. Tanto que, ainda acadêmica do
curso de História, cativou os Professores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa
Corrêa com seus projetos sobre a cultura popular do Pantanal, que eles passaram
a orientá-la em suas pesquisas. Não demorou muito, Dona Eunice fez o mestrado
em São Paulo sob a coorientação da Professora Lúcia Salsa e do Professor Valmir
Corrêa.
Em 1983, coube ao então Vereador Valmir
Corrêa, eleito pelo PMDB, indicar a pessoa que viria a ser a titular da
Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Corumbá na gestão do médico Fadah
Scaff Gattass, indicado pelo Doutor Wilson Barbosa Martins e nomeado pelo
general João Figueiredo (o Professor Valmir foi titular dessa pasta, por pouco
tempo, na gestão do empresário Armando Anache como prefeito nomeado). Foi a
oportunidade de a Professora Eunice poder demonstrar seus conhecimentos e
retribuir o carinho que o povo lhe deu duas décadas antes, quando implementou
uma série de políticas para a Cultura e para a Educação em Corumbá.
Com a Professora Eunice, deu-se início aos
estudos para o processo de tombamento do Casario do Porto de Corumbá e de seu
entorno, do qual o Vereador Valmir foi autor como lei municipal. Em sua gestão,
a Educação e a Cultura foram responsáveis por uma série de inovações, como a
adoção do espanhol como opção de língua estrangeira, a difusão da arte dos
cururueiros e da construção da viola de cocho, do banho de São João e dos
primeiros estudos sobre a contribuição dos afrodescendentes escravizados na
construção da Corumbá do pós-guerra de 1867 (com base em pesquisas que ela
mesma havia desenvolvido na então Universidade Estadual de Mato Grosso).
Helô Urt, palestino-pantaneira com um
coração do tamanho de seu amor pelas grandes causas, cuja passagem pela Cultura
revolucionou os rumos de nossa terra. Assim que assumiu a Casa de Cultura,
sucedendo o igualmente querido Augusto César Proença na coordenação do ILA no
primeiro mandato do Governador Zeca, Helô sacudiu o imponente casarão e o
transformou em usina de ideias-piloto em três frentes: cultura, cidadania e
ambiente, dentro de uma estratégia interdisciplinar. Mais tarde, quando foi
nomeada presidente da Fundação de Cultura do Pantanal de Corumbá, ela
implementou essa estratégia, construindo uma série de parcerias com ONGs e
movimentos populares.
Não por acaso, o ILA então sediou uma
série de eventos, projetos e programas pioneiros, como atividades alusivas ao
Dia Mundial da Água; Dia Mundial da Saúde; Dia da Terra; Dia da Consciência
Negra; curso de fabricação de viola de cocho e de formação de violeiros; cursos
de formação e empoderamento de mulheres para artesanato em taboa e para a
cidadania (em parceria com o Projeto Mulheres de Fibras, da UFMS, coordenado
pela Professora Wadia Schabib Hanny); cursos de qualificação do controle social
para a formação de conselheiros não governamentais de diversas políticas públicas;
curso popular para o monitoramento e conservação da arborização urbana de
Corumbá (em parceria com as Professoras Wadia e Iria Hiromi Ishii, da UFMS),
entre tantos outros.
Aliás, a gênese da iniciativa para o
tombamento da viola de cocho, com o devido resgate do querido e saudoso
Agripino Magalhães Soares e seus companheiros violeiros, inclusive de Ladário
(e os contatos com o de Cáceres, em Mato Grosso), partiu dela, irrequieta e
ousada, como sempre foi. E a mesma sacada teve quando pensou no banho de São
João como patrimônio cultural imaterial nacional, pouco antes de se eternizar,
em 2011. Para ela, Corumbá e Ladário eram uma usina criadora de tudo, fruto de
muita miscigenação e do cosmopolitismo desde antes da entrada no século XX.
Felizmente encontrou eco em grandes mulheres como a Socióloga Wanessa Pereira
Rodrigues, gestora da Cultura de Ladário, que em 2013 incluiu a cidade-irmã nos
processos do IPHAN.
O banho de São João é a primeira manifestação
cultural de Mato Grosso do Sul como Patrimônio Cultural Imaterial Nacional tombada
pelo IPHAN. E, a bem da verdade, foi assim quando do tombamento, quase 40 anos
atrás, do Casario do Porto de Corumbá como Patrimônio Histórico e Arquitetônico
Nacional, também o primeiro em Mato Grosso do Sul, graças ao trabalho, questionado
e combatido (porque, por ignorância ou má-fé, os detratores insistiam que isso
condenaria a região ao atraso), dos Professores Valmir Batista Corrêa, Lúcia
Salsa Corrêa e Gilberto Luiz Alves, da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (então no Centro Universitário de Corumbá).
Como no início da década de 1980, Corumbá
e Ladário hoje clamam por uma política diferenciada de desenvolvimento
sustentável, condizente com sua vocação histórica, biológica, geológica,
cultural e ambiental. Se na década de 1980 o reconhecimento do valor histórico
do Casario do Porto de Corumbá abriu as portas da região para o turismo -
reiterado pela descoberta pelo cientista alemão Detlef Wald do fóssil
Corumbella, provavelmente a primeira manifestação de vida pluricelular da Terra
-, atualmente a conquista deste status pelo povo
pantaneiro serve também de advertência para que as elites de Mato Grosso do Sul
mudem seu modo de enxergar Corumbá e Ladário de modo subalternizado,
folclorizado ou até debochado.
Porque Corumbá e Ladário são expressões
autênticas deste Pantanal único e de seu povo sábio e repleto de culturas
originárias, tradicionais e exóticas, daí seu cosmopolitismo secular. Tudo que
esta região peculiar e exuberante precisa é oportunidade de inserção no
contexto do verdadeiro progresso, cuja verdadeira riqueza está na gente, no seu
jeito de ser, viver, se relacionar e interagir, sobretudo com seu ambiente
majestoso e único, bioma, aliás, que muitas nações gostariam ter enquanto
desavisados tentam destruí-lo impunemente.
Ahmad Schabib Hany
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