CPI DA COVID E
A CHACINA DO JACAREZINHO
Tudo indica que não se tratou de mera coincidência
entre os trabalhos da CPI da Covid do Senado e a chacina de Jacarezinho, no Rio
de Janeiro. Há indícios de a chacina estar relacionada à estratégia de disseminação de
uma cortina de fumaça sobre os fatos levantados pela CPI. Além da trágica operação
policial, vedada pelo STF em 2020 enquanto houver risco de contágio pelo novo
coronavírus, as provocações presidenciais contra a China e ameaças de afronta
às decisões da mais alta corte do país passaram a ocorrer tão logo começaram a
ser evidenciadas, pelos depoimentos dos convocados para a CPI, omissões e ações
questionáveis no enfrentamento da pandemia e na assistência aos pacientes
contaminados pelo novo coronavírus.
Coincidência?
No mesmo dia em que o ministro Marcelo Queiroga, da Saúde, depunha na CPI da
Covid no Senado, a comunidade do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro, era
alvo de uma avassaladora operação policial que afrontou a decisão do STF
(aquela que proíbe operações policiais em comunidades durante a pandemia). Mais
tarde, final do dia, os atuais inquilinos dos palácios do Planalto e da
Guanabara estavam reunidos para tratar, segundo a versão oficial, de visita de
cortesia do presidente ao governador recém empossado com o impeachment de
Wilson Witzel, que com João Dória (de São Paulo) se tornou inimigo do capitão
depois de trocarem afagos e promessas de eterna amizade.
Mas
quem disse que amizade seja algo a ser levado em conta entre os, digamos,
impolutos e incorruptíveis cidadãos de bem eleitos em 2018? Se Witzel hoje posa
de vítima de seu ex-aliado, o temido ex-juiz também não teve qualquer
comiseração quando descartou seus ex-auxiliares na ânsia de se livrar de
denúncias de prevaricação, peculato e superfaturamento de equipamentos e
insumos clínicos para o enfrentamento da pandemia de covid-19. Tanto é verdade,
que um de seus mais leais assessores, inconformado com a deslealdade do líder,
fez acordo de delação e escancarou todo o esquema de corrupção.
Longe
de se tratar de pragmatismo político, o ocorrido não tem outro nome que
chacina. Até porque houve vidas de inúmeras famílias expostas ao risco iminente
de ser atingidas por armas de grosso calibre - muitas das quais hoje
enlutadas, sem ter tido o direito mais comezinho, de seus entes queridos terem
sido devidamente processados em ação judicial de acordo com o que determina a
Constituição Federal, e não serem executados em arrepio a tudo o que o Estado
de Direito estabelece.
O
Ministério Público do Estado do Rio, a Defensoria Pública e a OAB/RJ, em
parceria com instituições de defesa dos Direitos Humanos (inclusive ONGs e
organismos multilaterais com longa experiência no Brasil e em outros países,
inclusive em guerra), se mobilizaram para elucidar a matança e a identificação
das vítimas. Segundo a Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro, a
operação contou com a mobilização de 200 homens da Polícia Civil, mas a lista
de todos os envolvidos não foi apresentada às autoridades e à imprensa.
Por
outro lado, chama a atenção até dos mais leigos a cortina de fumaça feita para
expor os dados de cada um dos mortos na operação, inclusive menores de 18 anos,
quando o motivo para a incursão armada, proibida pelo STF em tempos de
pandemia, no Jacarezinho teve o intuito de desbaratar uma quadrilha que
aliciava crianças e adolescentes para o crime. Aliás (é bom que fique claro),
até aí não há qualquer novidade, pois o crime organizado cresce e se alimenta
da tragédia social decorrente do abandono do Estado nas comunidades, ainda mais
agora, que os programas sociais sofreram um corte inaudito nos últimos anos.
Ainda
que pessoas de trajetória impoluta, como o querido Professor Fausto Matto
Grosso (docente aposentado da UFMS, ex-vereador de Campo Grande pelo PCB,
ex-secretário de Estado de Planejamento e Ciência e Tecnologia no primeiro
mandato do governador Zeca do PT, ex-consultor técnico do saudoso assessor
Frederico Valente do então ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional no
primeiro mandato do Presidente Lula), insistam com a tese de que não passa de
narrativa do PT de ter sido golpe a deposição da Presidenta Dilma em 2016,
contra fatos não há argumentos (como diria o igualmente querido Amigo e
Camarada Carmelino Rezende).
Não
temos como omitir o nefasto papel, na iniciativa golpista, da Tucanésia, à
época comandada por Aécio Neves da Cunha, o netinho mimado de Tancredo Neves e
filho mal resolvido de Aécio Ferreira da Cunha, um ex-arenista e ex-pedessista
que virou membro do Partido da Frente Liberal (hoje ‘Democratas’, cuja metade
ora nos cultos dos atuais ocupantes do Planalto) depois que o ex-sogro impôs
uma derrota acachapante ao regime de 1964 por meio da figura patética de Paulo
Salim Maluf.
Aecinho,
antes de montar o palanque para declarar-se vencedor (direito que lhe assistia
como candidato numa eleição renhida, com pequena diferença de votos entre ele e
a candidata reeleita Dilma Rousseff), passou a adotar a cantilena negacionista
de Lacerda para Getúlio, em editorial na sua Tribuna da Imprensa, em
junho de 1950: “O Sr. Getúlio senador, não pode ser candidato à presidência.
Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado,
devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”
Dito
e feito, mas como não havia nenhum parlamentar da Tucanésia à altura do erudito
e eloquente Carlos Frederico Werneck de Lacerda, um reacionário golpista, antes
um comunista de verve arrebatadora, recorreram a membros de passado
esquerdista, como o então senador José Aníbal Peres de Pontes (ex-amigo da
Presidenta Dilma e ex-integrante do POLOP), em cuja conta no Twitter chegou a
postar durante a campanha do segundo turno de 2014 algo que lembrasse a citação
à consigna negacionista de Lacerda. Mas também aliados do PPS, foram
arregimentados para a ‘cruzada cívica’ (sic), entre os quais o
ex-candidato à presidência Roberto Freire, mais tarde alçado a ministro da
Cultura, uma pasta esvaziada de suas atribuições, na qual permaneceu por pouco
tempo.
Ocorre
que os ‘democratas’ arrependidos, arrastados pela soberba ao golpismo ao rasgar
cláusulas pétreas da Constituição Cidadã (ou melhor, estuprar o Estado
Democrático de Direito), acabaram enxovalhando a digna memória do Doutor
Ulysses Guimarães e de outros verdadeiros democratas como Mario Covas e Franco
Montoro (das honradas hostes peessedebistas) e sendo atropelados por golpistas
autênticos, isto é, com expertise e, por incrível que pareça, DNA. Quem
diria... Ao tirar da caixa de pandora os órfãos e viúvos da (mal)ditadura,
remanescentes da horda de facínoras, como Ulysses as nomeou em seu memorável
discurso no ato solene de promulgação da Constituição em 1988, o tão cobiçado
cargo pelo qual abandonaram a impostura ‘democrática’ mais uma vez lhes fugiu
das próprias mãos.
O
problema é que os patrioteiros saudosistas da ‘redentora’ só sabem ficar
conspirando contra o Estado Democrático de Direito. Ameaçam, prevaricam,
deploram, aglomeram e conspiram o tempo todo na obsessiva ânsia de se perpetuar
no poder, como que ainda não estivessem no governo. Mas se dermos uma olhadela
na história do Brasil nos séculos XIX e XX, compreenderemos por que a obsessão
pelo poder. Não para governar a nação, não para trabalhar, mas para se
locupletar, mamar nas tetas do Estado. Como bem dizia o genial Sérgio Porto (ou
melhor, Stanislaw Ponte Preta, imortal criador do Festival de Besteiras que
Assola o País, Febeapá, e ‘Pai’ do saudoso O Pasquim), “ou
restaure-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos”...
É
curioso o comportamento da casta política brasileira, que sempre fez questão de
passar a imagem de ‘civilizada, branca, cristã e monarquista’, como ficou
estabelecido em 1838, quando da criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). Se durante o curto, mas nefasto, (des)governo de Michel
Temer essa consigna já havia sido resgatada do baú embolorado de nossa triste
história de exclusão e violência social, com a ascensão de Jair Bolsonaro à
presidência da República tudo isso passou a fazer parte do cotidiano e da
narrativa oficial dos mandarins de plantão, saudosistas de um período virulento
da história.
Para
concluir, os sombrios tempos a que fomos submetidos pelos ‘democratas’ arrependidos
e seus aliados de última hora saudosistas da ditadura não foi fruto da divisão
do país causada pelo PT (a mesma narrativa requentada dos tempos de Lacerda
contra Vargas, basta ir ao Google e procurar pelos trabalhos de
pesquisadores como a Professora Maria Vitória Mesquita Benevides ou o Professor
Márcio de Paiva Delgado), mas da impetuosa crise de abstinência das benesses do
poder, logo aqueles que desde 1983 (e, sobretudo, 1995) estão no governo de São
Paulo, mas fora do estado exigem alternância, mas só entre eles.
Ahmad Schabib Hany
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