quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO, DEBATE E AÇÃO EM DEFESA DA SAÚDE

 REFLEXÃO, DEBATE E AÇÃO EM DEFESA DA SAÚDE

Em razão de vários comentários ponderados e, sobretudo, reflexivos, volto ao tema de “Cenas surreais na Maternidade de Corumbá”. Não foram poucas as observações relativas a diversos aspectos do episódio, fato que evidencia tratar-se de questão represada pelo compasso de espera que tem caracterizado a longeva crise da Associação Beneficente Corumbaense.

O episódio que culminou com a ação de efetivos da Polícia Militar em dependências da Associação Beneficente Corumbaense - sob mais uma intervenção municipal há quase 10 anos - expõe a ponta do iceberg de uma crise com quase quatro décadas, cujo ponto nevrálgico é a gestão, sempre a gestão, do único hospital do SUS da região, que atende uma população superior a 120 mil habitantes, inclusive do outro lado da fronteira.

Na tentativa de equacionar os graves problemas financeiros da Sociedade Beneficência de Corumbá (entidade mantenedora do Hospital de Caridade e da Maternidade), em 1994, a administração municipal se decidira por uma malograda intervenção municipal. Com o agravamento da crise financeira, foi procurada uma saída honrosa, avalizada pela credibilidade de Dom José Alves da Costa, com a indicação do binômio Padre Antônio Müller e Doutor Lamartine Costa. Assim que a gestão começava a desvendar os gargalos administrativos, o Padre Antônio Müller adoeceu gravemente, precisou ser transferido para o Paraná (onde se eternizou), e o Doutor Lamartine Costa tentou de todos os meios prosseguir com as medidas acordadas quando de sua indicação.

Anos depois, em 1999, assim que o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais (FORUMCORLAD) protagonizou, na memorável gestão da Doutora Rosemeire Fernandes Arias, a coordenação do processo transparente de eleição dos membros dos segmentos dos usuários do SUS e dos trabalhadores em saúde do Conselho Municipal de Saúde, sob a fiscalização do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, aquele lócus promoveu dois seminários memoráveis para debater a questão, com a participação de diversos agentes públicos das diferentes instâncias. Foi, então, construída uma agenda para equacionar o velho problema, com o aval da Secretaria de Estado de Saúde e o Conselho Estadual de Saúde, além do acompanhamento pelo Ministério Público.

No período em que o Doutor Mário Sérgio Kassar foi gestor municipal de Saúde (entre 2000 e 2004), memoráveis medidas saneadoras foram adotadas, devidamente discutidas entre as partes, muito bem representadas: usuários do SUS, trabalhadores em saúde, prestadores privados e o gestor público (que como então a gestão era compartilhada com o estado, havia uma parceria bem objetiva e racional). A implantação do Conselho Gestor de Saúde do Hospital se realizou nessa ocasião, sob condução da saudosa Heloísa Helena da Costa Urt. Destacou-se então um importante interlocutor do segmento de prestadores privados como um parceiro do SUS, o saudoso Doutor Humberto da Silva Pereira, embora a direção do hospital insistisse numa postura intransigente.

Outro momento em que o diálogo, ainda que muitas vezes sob tensão, teve a necessária efetividade, foi na gestão do Doutor Lauther da Silva Serra, ora contundente na defesa de suas posições, mas efetivo quando convencido pelos membros do Conselho Municipal de Saúde. Tentou-se efetivar nesse ocasião, em caráter permanente, o atendimento à população ribeirinha e à população Guató, com a aquisição de “ambulanchas” e recursos tecnológicos para assegurar dignidade àquela população historicamente esquecida, mas que não avançaram na gestão da Professora Dinaci Ranzi.

Como a partir de então o FORUMCORLAD deixou de coordenar e monitorar os processos de eleição e composição do Conselho Municipal de Saúde e conselhos gestores de saúde (bem como similares de outras políticas públicas), um dos primeiros conselhos gestores a ser colocado na berlinda foi o do Hospital de Caridade. Depois do empenho de membros do Conselho Municipal de Saúde junto à Procuradoria da República quando a Doutora Maria Olívia Pessoni Junqueira se encontrava em Corumbá é que o Conselho Gestor de Saúde do Hospital, bem como a situação geral da Santa Casa, foi objeto de atenção pelo gestor e pelo próprio lócus. Mas com a pandemia, indiscutivelmente, houve um refluxo nas atividades de controle social.

Isto exposto, e graças ao recebimento de comentários bastante ponderados, compartilho três deles, preservando a identidade do(a)s Amigo(a)s que os fizeram, por razões óbvias.

O primeiro comentário é de um profissional jovem, que tenho a honra de acompanhar desde tenra idade, cuja competência e dedicação têm sido elogiadas em nossa região:

“Boa tarde, amigo!

“O ocorrido não foi na Maternidade, e sim na Pediatria.

“Infelizmente, o cenário foi bem diferente do divulgado.

“Toda a equipe foi mobilizada na tentativa de resolver o problema, mas não houve colaboração por parte da família.

“Nossa estrutura é péssima, mães recém operadas ficam em poltronas inadequadas para acompanhar seus filhos durante a internação.

“Seria justo, ético, humano, deixar que apenas uma criança tivesse todo esse amparo?

“E as outras que estavam internadas pelo SUS, por que não teriam o mesmo direito?

“Infelizmente há a crença de pagar e dar o ‘jeitinho’.

“O Regimento Interno é para todos.

“Acredite, nossa equipe Maternidade/Pediatria, mesmo desvalorizada, trabalha com o melhor que temos, o amor!!!

“Grande abraço.”

O segundo comentário é de um profissional de competência igualmente reconhecida e que também tenho a honra de acompanhar há décadas. Participou da gênese de espaços públicos a que nos referimos, mas por razões pessoais precisou se desligar, sem, no entanto, ter perdido de vista o compromisso com a cidadania e o rigor profissional.

“Olá, bom dia, Ahmad!

“Assisti às cenas do episódio a que você se refere. E, realmente, são impactantes. Mas, fiquei tentando entender o que realmente aconteceu. Por um lado, o que levou a senhora envolvida a ‘descumprir’ uma regra tão propagada, constante em lei, alvo de um sem fim de apelos pela vida? E mais, segundo informações, a se recusar a colocar a máscara? Afinal, ela estaria em visita a uma parente no interior de um local onde as pessoas estão, de certo modo, debilitadas... (???). Por outro lado, qual teria sido a atitude imediata dos funcionários daquela casa de saúde diante do ocorrido? Qual teria sido a resposta da senhora a essa atitude? O que aconteceu que levou os funcionários a recorrerem à força policial?

“Enfim, desprovidos desses dados, só podemos refletir que apesar da avalanche de informações e apelos diante dos estragos que essa pandemia tem nos trazido, nada disso conseguiu sensibilizar verdadeiramente muitas pessoas, que continuam se aglomerando por diversão ou mesmo por medo (negacionismo) de acreditar no risco iminente que correm e espalham. Que assumem atitudes de afronta aos meios possíveis, disponíveis, de preservação da vida diante de uma ameaça real, à preservação da vida dos seus em que a dos outros não importa mesmo.

“Talvez, sejamos reféns do medo que nos leva às mais diversas formas de respostas. Então, é um momento de mantermos o equilíbrio para não piorarmos mais a situação. E, lamentavelmente, são atitudes como essas que continuarão levando mais pessoas queridas para o cemitério.

“Na cena em particular, entendemos que houve exagero de todos os envolvidos. Realmente, não precisava ter chegado onde chegou. Lamentável como o ser humano não consegue se identificar, se reconhecer como ser humano. Vou parando por aqui porque o assunto dá margem para longa reflexão que não cabe no momento. Só não podia deixar de refletir o mínimo que fosse. Forte abraço.”

O terceiro comentário é de autoria de uma profissional que também tenho a honra de acompanhar há décadas. É pioneira nas pesquisas em saúde social e controle público, e que, graças à sua sensibilidade cidadã, foi determinante na disseminação da pioneira, mas modesta, experiência do FORUMCORLAD, não só em nível estadual, mas nacional e internacionalmente (era representante da Rede Brasil quando foi possível construir o monitoramento do Programa BID Pantanal e a Plenária Permanente de Fóruns de Políticas Públicas de Mato Grosso do Sul).

“Compa Schabib, os hospitais em seus rompantes de autoridade impõem à população o controle sobre os corpos de acordo com a classe social. E, nos hospitais ditos ‘filantrópicos’ isso ainda fica à mercê do poder dos donos... Esse episódio me dói, mas não é exceção, infelizmente! Que dor é essa que não cessa nenhum dia e nenhuma hora?”

Acredito que o debate - sadio, necessário e inadiável - esteja apenas começando, em benefício de toda a coletividade, sobretudo daqueles que não têm voz e vez, preteridos historicamente. Apesar das limitações impostas pela pandemia, nos empenharemos para que a dialética, reflexão-debate-ação, encontre eco entre os agentes públicos.

Porque a centenária entidade hospitalar, patrimônio histórico de nossa população, é a que acolhe, nos momentos de fragilidade, a todos os moradores e visitantes de nossa região. Até como prova de gratidão e carinho por essa casa de saúde cujos dedicados profissionais, com denodo e compromisso ético, têm se doado diuturnamente, expondo-se aos riscos de infecção pela covid-19, muitos dele(a)s tendo ofertado a própria existência no exercício de sua labor, muitas vezes incompreendida.

Obrigado a todo(a)s o(a)s Amigo(a)s que altiva e generosamente nos enviaram seus comentários, os quais serão oportunamente compartilhados, desde que o(a)s autore(a)s autorizem previamente.

Ahmad Schabib Hany

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