CENAS SURREAIS NA MATERNIDADE DE CORUMBÁ
Em sã consciência, não há nada que justifique intervenção
policial no sagrado espaço em que nosso(a)s filho(a)s vêm ao mundo. Onde estão o
Humaniza SUS e demais programas criados com base na ciência, no amor e em
valores civilizatórios? Cadê os Conselhos Municipal e Estadual de Saúde, o
Conselho Gestor do Hospital, os FUSUS municipal e estadual? É hora de tomar
atitude!
Vídeos
com imagens surreais de familiares de uma parturiente na Maternidade de Corumbá
e a ação de efetivos da Polícia Militar vêm causando perplexidade e indignação
em todos os segmentos da população. Assim como não devemos criminalizar a
família da mãe que estava internada com o(a) recém-nascido(a), obviamente não
podemos a priori condenar os policiais que foram chamados a intervir no
interior do sagrado espaço onde nosso(a)s filho(a)s vêm ao mundo. Mas podemos e
devemos questionar a hipotética “gestão de crise” que não soube agir com base
em programas há décadas implantados no Hospital de Caridade e na Maternidade de
Corumbá, entre os quais o Humaniza SUS.
Qualquer
que fosse o cenário de crise, a Maternidade é um local que não pode nem deve
admitir forças de segurança em seu interior, sobretudo em tempos de pandemia.
Além disso, aquela casa de saúde dispõe de profissionais de todas as áreas para
uma eventual gestão de crise, como psicólogos e assistentes sociais, ademais de
médicos, enfermeiros, nutricionistas e técnicos de enfermagem. Não é um
administrativo que deve atuar num momento de adversidade, até porque há vidas
inocentes em questão. Parece termos voltado um século atrás nestes tempos
sombrios em que a racionalidade e todo o avanço protagonizado pela cidadania
depois de 1988 se diluíram inexplicavelmente.
Graças
à imprensa e às redes sociais foi possível que a população local tomasse
ciência desse episódio que nos envergonha não só como moradores do coração do
Pantanal e da América do Sul, mas como a primeira região em Mato Grosso do Sul
a efetivar o controle social de políticas públicas de saúde, assistência
social, direitos da criança e do adolescente, das pessoas com deficiência, do
negro, da cultura etc. Desde 1993, fomos protagonistas de conquistas exemplares,
por meio do incansável Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de
Corumbá e Ladário (Forumcorlad), que durante quase 20 anos atuou, com independência
e desenvoltura, na composição/monitoramento de pelo menos 14 lócus (entre
conselhos, conselhos gestores e comitês).
Durante
o período de 1993 a 2012, Corumbá e Ladário foram referência no controle social
não só no estado como em Mato Grosso e no Distrito Federal, a ponto de pelo
menos quatro fóruns estaduais terem adaptados o regimento interno e os
princípios norteadores do Forumcorlad para disciplinar seu funcionamento e
dinâmica interna: o FUSUS/MS, o FEDCA/MS, o FORMADS/MS, o FORMAD/MT e o da
Cultura de MS. Em 2000, momento de uma intervenção qualificada dos setores
organizados da sociedade civil sul-mato-grossense, chegamos a criar a Plenária
Permanente de Fóruns de Políticas Públicas de Mato Grosso do Sul (PPFPP/MS),
que, em decorrência do governo centralizador e de cooptação de representantes
não governamentais instalado em 2007, aos poucos todas essas importantes
conquistas foram deixando de existir, como em efeito dominó.
Inegavelmente,
foi um tempo de total sintonia entre a sociedade civil organizada e os promotores
de Justiça e procuradores da República. Isto é, o Ministério Público Federal e de
Mato Grosso do Sul, sobretudo a Doutora Sara Francisco da Silva, a Doutora
Andréia Cristina Peres da Silva e o Doutor Ricardo Mello Alves (do MP/MS) e o
Doutor Carlos Humberto Prola Júnior e o Doutor Wilson Rocha Assis (PR/MS). Cada
qual ao seu tempo e graças à desenvoltura com que desempenharam seu cargo,
rigorosamente à luz da legislação, a cidadania local teve assegurados
importantes direitos durante esse período. Honroso e fecundo período, aliás.
Felizmente,
temos na atualidade excelentes promotores de Justiça e procuradores da
República, sempre pautados nos mais rigorosos critérios de Justiça e de compromisso
com o Estado de Direito. Para não incorrer em qualquer temeridade, não farei
citação de seus honrados nomes, mas a sintonia é igualmente profícua e
republicana. A atuação do Ministério Público, seja de Mato Grosso do Sul como
da União, tem sido uma garantia para a atuação da cidadania no exercício de
seus deveres/direitos junto aos órgãos colegiados de controle público. Não por
acaso, é recorrente a procura de representante dessa importante instituição por
membros de diversos conselhos e comitês, na ânsia de assegurar cumprimento das
garantias constitucionais.
Entretanto,
hoje, além de, lamentavelmente, vermos esses lócus (conselhos, conselhos
gestores e comitês) reduzidos a instâncias burocráticas destituídas de iniciativa
própria, seus membros, salvo honrosas exceções, têm se restringido a papéis subalternos
da burocracia estatal, em todas as instâncias. E, me permitam a sinceridade,
como permitir que um conselheiro apenas se licencie da função relevante para a
qual foi eleito em foro próprio (é o que determinam as leis federais que
tratam, cada qual em seu texto próprio, da composição do conselho) para se
candidatar para vereador ou qualquer outro cargo eletivo? No memorável tempo do
Forumcorlad, nada disso era permitido: ninguém estava impedido de ser candidato
ao que quisesse, mas para sê-lo precisava abrir mão da (renunciar à) função de
conselheiro, até porque não se pode ser conselheiro com vínculo com os grupos
políticos que controlam o Executivo ou o Legislativo.
Não
tenho dúvida de que, em 2012, por tal razão, nos enxotaram como representantes
do Forumcorlad, por meio de ameaças de toda sorte. Resistimos até o último
momento, mas o(a) então promotor(a) de Justiça da época não se manifestou,
embora tivéssemos reunido diversos documentos expondo as arbitrariedades. Ao
contrário, membros de uma conduta comprovadamente ilibada foram alvo de
acusações absurdas, felizmente repelidas com altivez e serenidade. A bem da
verdade, a Prefeitura de Ladário, sob a condução do Professor José Antônio
Assad e Faria, teve um comportamento íntegro e, com total transparência,
permitiu o exercício pleno dos membros do Forumcorlad. Os então gestores de
políticas públicas de Corumbá, à revelia do então prefeito, tentavam o tempo
todo deslegitimar ou duvidar da competência dos cidadãos eleitos no âmbito do
mais antigo e modelar espaço público não estatal.
Decorridos
quase 10 anos, o resultado é este: o controle social diluído e invisibilizado,
as unidades de saúde sem o efetivo monitoramento dos lócus legal e
legitimamente criados por força de lei federal e respectivas legislações
estadual e municipais e, mais grave, em plena pandemia o não cumprimento dos
princípios que devem reger a administração pública, levando a episódios
lamentáveis como o ocorrido na Maternidade de Corumbá. Mais que questão
policial, trata-se do esgotamento de um modelo de gestão em que o improviso e a
falta de transparência levam a qualidade dos serviços de saúde ao campo do embate
literal.
É
hora de parar com isso. É hora de respeitar o usuário do SUS como cidadão, não
como integrante de horda de meliantes sobre as quais as forças policiais têm
que intervir. Em respeito, sobretudo, à memória de generosos cidadãos que
dedicaram seus melhores momentos de suas vidas em favor dessas conquistas, como
o Padre Pasquale Forin, Dom José Alves da Costa, Padre Ernesto Sassida, Padre
Antônio Müller, Pastor Antônio Ribeiro de Souza, Pastor Cosmo Gomes de Souza, Irmã
Beatriz de Barros, Doutor Humberto da Silva Pereira, Heloísa Helena da Costa
Urt, Aurélio Mansilha Tórrez, Ariodê Martins Navarro e José Batista de Pontes,
entre tantos outros não menos importantes.
Ainda
que vivamos sob a sufocante pressão de tempos sombrios, em que o argumento da
força teima sobrepor-se à força do argumento, precisamos exercer nosso
inalienável direito-dever de transformar essa lógica perversa. Somos todos
usuários dos SUS, somos todos cidadãos: é hora de somar para multiplicar, não
podemos silenciar diante de atos e intentos funestos de retroagir aos tempos
medievais. Um mais um é sempre mais que dois, portanto, somemos nossa
indignação e transformemos esta realidade bizarra que nada tem a ver com nossa
história coletiva recente, e muito menos com a história de cada um dos
protagonistas dos generosos tempos conquistados.
Ahmad Schabib
Hany
Um comentário:
Compa Schabib, os hospitais em seus rompantes de autoridade impõem à população o controle sobre os corpos de acordo com a classe social. E, nos hospitais ditos "filantrópicos" isso ainda fica à mercê do poder dos donos... Esse episódio me dói, mas não é exceção, infelizmente! Que dor é essa que não cessa nenhum dia e nenhuma hora?
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