terça-feira, 10 de março de 2020

PROFESSOR HUSSEIN KHALIL SCHABIB (1926 -- 2020)



PROFESSOR HUSSEIN KHALIL SCHABIB (1926 – 2020)

Aos 94 anos, eterniza-se o Tio Hussein Khalil Schabib, professor aposentado de inglês, incansável inovador na Amazônia boliviana e ex-sócio no Brasil e no Líbano de Mahoma Hossen Schabib. Sua experiência mais ousada foi a fundação de uma cooperativa de consumo e microcrédito que resistiu por mais de três décadas no período de maior instabilidade econômica e política da Bolívia.

Junho de 1996, a poucas semanas da súbita eternização de nosso querido e saudoso Pai, Mahoma Hossen Schabib (1914-1996), quando o surto da epidemia de Ebola amedrontava o mundo, dois peregrinos do Mediterrâneo travavam um diálogo que ficou na memória de todos/as os/as que tiveram a sorte e o privilégio de testemunhar.

— De que mesmo morreu nosso Amigo Abdul? Ebola?!

— Não, embolia. Adbul estava com a saúde muito frágil e morreu por complicações circulatórias...

Como hoje o Coronavírus, a epidemia de Ebola então assombrara a humanidade. A epidemia estava em todas as conversas, ainda que não houvesse qualquer relação com ela. Isso ocorrera durante a visita derradeira de nosso agora saudoso Tio Hussein ao nosso igualmente saudoso e querido Pai, que se encantara durante a estada desse primo em Corumbá. Ele era ex-sócio em duas ocasiões: em Guajará-Mirim (RO) em um comércio atacadista, em fins da década de 1950, e em um ousado restaurante em Trípoli, segunda cidade mais importante do Líbano, entre 1961 e 1962, para onde os dois e suas respectivas famílias viajaram em 1960 (e retornaram à América do Sul em 1964).

O Professor aposentado Hussein Khalil Schabib Khatib faleceu aos 94 anos na cidade de Magdalena, Departamento do Beni, na Amazônia da Bolívia, no último dia 10 de março, véspera do aniversário de 94 anos de nossa querida e saudosa Mãe, Wadia Al Hany de Schabib. Foi casado por mais de 60 anos com a saudosa Senhora Nelly Arza de Schabib, cujos/as sobrinhos/as residem em Corumbá e Puerto Quijarro desde os tempos da Comissão Mista Ferroviária Brasil-Bolívia. Desde o início de sua viuvez se recolheu e passou viver de lembranças, pois pouco antes falecera a Professora Nesby Schabib Arza, filha única do casal e Mãe de três filhos/as, todos/as já formados/as, para felicidade desse cidadão do mundo, tal qual nosso Pai.

Emigrou do Líbano ainda jovem, incentivado por nosso saudoso Pai quando já se estabelecera como atacadista na região amazônica da Bolívia. Ao lado do saudoso Primo Zoheir Schabib Khatib, o Tio Hussein foi o parente mais presente do lado paterno. No início da década de 1960 retornou com sua esposa e filha ao Líbano na mesma época em que nosso Pai também o fez, ao lado de nossa Mãe e Irmãos/ãs. Além de sócios, foram Amigos, tanto que quando nasceu nossa Irmã caçula eu decidira me mudar para a casa dele, dizem que por conta da abundância de doces e dos agrados da Senhora Nelly, como a chamávamos carinhosamente desde crianças.

Além de vocacionado para o comércio, como a maioria dos árabes, o Tio Hussein se revelou, como autodidata, brilhante professor de inglês numa região em que professores nessa disciplina eram raros antes da internet. Muito querido em Magdalena, cidade em que nossos Pais moraram tão logo casaram e nossos/as Irmãos/ãs mais velhos/as nasceram (entre 1948 e 1950), tornou-se referência para várias gerações: quando alguém se preparava para viajar ao exterior, fosse passear ou trabalhar, era procurado para uma preparação preliminar, mesmo depois de aposentado, já idoso.

Entre 1959 e 1973, a Amazônia boliviana enfrentou dois surtos de uma virulenta epidemia de febre hemorrágica alastrada por ratos infectados pelo Machupo, uma variedade do Arenavírus, de acordo com a equipe de pesquisadores da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Em 1971, quando o Tio Hussein e a Senhora Nelly estiveram passando as férias em Corumbá, contaram para nossos Pais sobre o drama dos moradores da região, caracterizada pela pobreza de uma das regiões mais ricas do país, que entre o início do século XX e a Segunda Guerra Mundial havia fornecido muita seringa e castanha, atividades que permitiram a sobrevivência de meu Pai, recém-chegado, e o Irmão dele, o Tio Ale Hossen Schabib, que ao se naturalizar passou a assinar Alejandro Hossen.

Como nosso Pai, o Tio Hussein chamava a atenção para as riquezas naturais da Amazônia boliviana e o abandono e miséria de sua população tradicional e originária, explicando que não foi por acaso o trabalho da equipe de sanitaristas da OPAS iniciado em 1959 (e concluído somente em 1973). A importância da região levou à descoberta do vetor, Calomys Callosus, um rato nativo da região. Esses estudos permitiram inclusive o desenvolvimento de vacina e a devida profilaxia, além do controle populacional do roedor, então predominante nas localidades mais afetadas pela epidemia (o povoado onde nossa saudosa e querida Mãe nasceu, San Joaquín de las Aguas Dulces, além de San Ramón e Santa Ana, todos ao Norte do Beni).

Depois de ter retornado do Líbano com a Família, o agora saudoso Tio Hussein passara a se dedicar mais à terra que o acolhera ainda jovem. Além de ministrar inglês na única escola pública de Magdalena, dedicara-se à fundação (e depois à manutenção por quase três décadas) de uma cooperativa de consumo e microcrédito no período de maior instabilidade econômica e política da Bolívia. Ele, sempre que vinha a passar uma temporada conosco, contava com orgulho que servia de fomento para as modestas atividades de pessoas humildes que não tinham acesso aos bancos privados, cujos juros extorsivos os afastavam de qualquer financiamento de suas modestas lides.

Lutou pela manutenção da cooperativa até o final da década de 1990, quando o sistema bancário, já conectado à internet, passou a fazer uma guerra cega a todas as cooperativas similares na Bolívia. Eram tempos de neoliberalismo globalitário, capitaneado pelos fantoches mais cínicos de todos os tempos, Gonzalo Sánchez de Lozada e sua versão intelectualizada, Carlos D. Mesa Gisbert
— uma caricatura de FHC, sem pós-graduação ou graduação qualquer, a despeito de seus pais terem sido renomados professores universitários e arquitetos bem-sucedidos.

Ele sempre se declarara socialista convicto. Não sei se por coincidência, sua única Filha militou em partidos de esquerda durante a juventude. Depois de casada, para não colidir com os interesses do esposo, preferiu dedicar-se somente ao magistério, o que a tornou tão querida quanto o Pai. Diabética, há menos de cinco anos se encantou, mas depois de deixar bem formados/as os/as três filhos/as. A ausência da única Filha abalou muito o Tio Hussein, que logo perdeu a Companheira de 60 anos, mas permaneceu saudável graças aos cuidados da Neta Janan (homônima de nossa Irmã), médica que não mediu esforços para assegurar-lhe qualidade de vida, embora ele preferisse viver das suas lembranças.

Tio Hussein, sempre na memória e no coração!

Ahmad Schabib Hany

Um comentário:

Unknown disse...

Hermoso relato tío querido!!😘😘😘