Pela memória de minha mãe Alice
O Patriarcado matou minha mãe. É assim que quero começar contando a sua história e honrar sua memória, pois em vida aniquilaram sua existência, seus sonhos, sua afetividade, suas emoções, sua sexualidade e sob seu corpo impuseram um peso que ela não dera conta de carregar. Parou de respirar aos 35 anos, devido a um câncer que a consumiu. Mas a doença foi apenas o pretexto para morrer, pois por dentro, ela já estava morta, o patriarcado e suas agências a mataram.
Por Fabiane Albuquerque, enviado para o Portal Geledés
Alice, de uma beleza e sorriso incríveis, nascida em Corinto, interior de Minas, filha de Lurdes Gonçalves, mulher negra, filha de escravizados, que aos 9 anos fora dada a uma família de fazendeiros depois de ficar órfã e vira todos os irmãos e irmãs serem distribuídos a famílias abastadas que os fizeram de servos, salvo dois ou três deles. Avelino de Oliveira era seu pai, homem branco, sem posse alguma, cujo único privilégio era aquele de exercer seu poder sobre as mulheres da sua família, e o fizera de forma tirana e covarde. Minha mãe estudou pouco, acho que até o 4 ano do ensino fundamental. Pobres não estudavam na época porque precisavam trabalhar e servir àqueles que estudavam. Engravidara ainda mocinha, de um homem rico da cidade. Homens ricos se casavam com mulheres ricas, de preferência que haviam resistido virgens até o altar. Não fora o caso de minha mãe.
Disseram a ela que sua vida acabara ali. E acabou mesmo. O homem, “cidadão de bem” não assumiu minha irmã e ninguém o culpou ou o cobrou por isso, afinal, era homem, diziam. Minha mãe, “desonrada”, carregou esse estigma no corpo e na alma por ter apenas feito sexo e engravidado. Meu avô a expulsara de casa, ele, que de conduta moral não havia nenhuma, dava em cima de todas as mulheres e usava seus corpos como objetos. Todos os tios e tias ficaram contra ela, os mesmos que tiveram filhos fora do casamento. Inclusive, um deles, orgulhoso de dizer a todos que “mulher e filhas minhas não trabalham fora”, deixara morrer de fome uma filha que não assumira e que até o último suspiro de vida, escrevera para pedir-lhe ajuda. A cidade inteira a difamou, fora marcada e carregava esse estigma por onde ia, aquele de “mulher fácil”. Os homens que se aproximavam dela sabiam disso e, se tem uma coisa que o patriarcado faz bem, é unir os homens para defender e garantir seus privilégios, inclusive aquele de usufruir ilimitadamente do corpo das mulheres e as culpar por isso, sucumbindo-as e humilhando-as para melhor dominá-las e se beneficiar da sua subordinação.
Os homens a viram como uma mulher que não servia para casar, para apresentar à família, mas apenas para tirar proveito da sua condição, enquanto “aquelas de família”, as mulheres “virgens” eram levadas ao altar, valorizadas por carregarem um pedaço de hímen dentro da vagina. Aquelas que se afastaram de minha mãe e ajudaram a jogá-la na “fogueira” da difamação receberam um “biscoitinho” de recompensa, ou melhor, uma falsa “proteção” dos homens, da família, da igreja e da sociedade. Aguentavam caladas as traições, muitas vezes até mesmo a violência física porque no fundo, precisavam manter a instituição, pois fora dela, vide o caso de minha mãe, a mulher valia menos que um cachorro. Por onde ia ela era apontada como exemplo daquilo que uma mulher não deveria ser. Nem posso imaginar sua solidão, sua vida e seus desejos aniquilados por uma imagem que fizeram dela pela única razão de ter transado e engravidado fora da hora da sociedade. Minha mãe foi punida porque ousara gozar sem a permissão dos homens, sem a bênção da igreja e sem a família entregá-la como um pacote no altar para outro homem dominar.
Até que um “forasteiro” aparecera na sua vida e resolvera casar-se com ela, meu pai. Meu pai veio do sertão da Paraíba, onde as pessoas não tinham tempo de controlar a virgindade das mulheres porque estavam ocupadas demais com a fome, a seca e a dureza da vida. Um dos meus tios até hoje acredita que ele é estrangeiro, que não é brasileiro, porque chegou com um sotaque diferente e um sobrenome que ninguém conseguia pronunciar direito, “Albuquerque”. No dia em que minha mãe o levou para conhecer a família, meu tio, segundo ele mesmo, o chamou num canto e disse: “Olha, aqui não tem essa coisa de namorar, não. Você sabe que ela não vale mais nada, né?” E se casaram. Minha mãe se casou porque a vida de mulher sozinha, com um filho, era um inferno, não porque o amara, mas porque pensara que o casamento lhe traria a paz que não tivera. Meu pai, que até então não havia dividido as mulheres entre aquelas que valiam (virgens) e aquelas que não valiam (não virgens), percebera que havia ganhado de presente, da própria família de sua esposa, uma “carta na manga” para ser usada sempre que lhe fosse conveniente para humilhar minha mãe, mantê-la sempre submissa e silenciada. Assim, a cada briga ele soltava: “Mas você não valia nada quando me casei com você”. Acho que minha mãe acreditou nisso porque o que me lembro dela, era o sorriso apagado, um rosto triste e um olhar distante, sobretudo à noite, quando ficava em silêncio olhando o céu e as estrelas. Talvez se perguntasse onde estava Deus, que também era um macho que a fizera mulher e a punira por transar.
Eu tinha apenas 7 anos quando minha mãe faleceu, não tive tempo de conhecê-la, de abraçá-la e de dizer-lhe que a culpa não era sua, jamais foi sua.
Eu nunca pude falar da minha mãe em família, eu sequer pude viver o luto pela sua morte, pois o estigma e o tabu em torno da sua sexualidade nos enterraram num silêncio profundo. Eu e minhas irmãs fomos vigiadas, controladas na nossa sexualidade para não virarmos uma “Alice”. Que crueldade! A mulher que me dera a vida, a mulher que eu amava era a mesma que eu deveria lutar para não me tornar igual. Lembro-me de uma vez em que fui numa festa do colégio, aos 14 anos, e minha tia me viu beijando um rapaz. Não sei de onde ela tirou tanta raiva, fúria e me dizia que eu estava me tornando como minha mãe. Assim, ela saiu pela família contando o meu “pecado” de ter beijado um garoto da minha idade numa festa de colégio.
Quando minha mãe faleceu, minha irmã achou um bilhete seu no caderno da escola com as seguintes palavras:
“Meus filhos, tomem cuidado com a falsidade do mundo”.
Era isso. Era só isso o que ela tinha pra falar e pra nos deixar como conselho de vida, e ao mesmo tempo, era tudo isso. Ela experimentara essa falsidade na pele, essa hipocrisia do mundo, cuja família, igreja, Estado e tantas mulheres, trabalhavam arduamente para manter, que era a dominação masculina sobre o corpo das mulheres e sobre suas existências. Ela não soube que essa falsidade se chama Patriarcado, não tive tempo de contar isso para ela e que eu experimentei e experimento todos os dias, mas por ela, por mim, por minha avó decidi enfrentá-lo, assim como todos aqueles que tentam me controlar o corpo, o gozo, o desejo e as escolhas.
Foi somente saindo de casa que consegui falar dela, que consegui olhar para minha mãe, resgatar sua memória, entender sua história, sua vida e sua morte. Sou imensamente grata à todas as mulheres feministas que li, que conversei, que ouvi e que me devolveram minha mãe a mim mesma, com um orgulho que me faz gritar ao mundo que quem deveria se envergonhar pelas pedras jogadas contra ela, são aqueles que a jogaram.
Hoje é Dia Internacional da Mulher. O número de feminicídio no Brasil cresceu em 2019 e a tendência é piorar. Olhando os motivos das mulheres serem mortas por seus maridos, namorados, amantes, vê-se que é porque elas terminam o relacionamento e eles não aceitam. O que tem de novo no nosso tempo? Muitas mulheres mudaram e mudaram juntas. Nossas avós ficavam até morrer, apanhando ou não, nossas mães também. Porque a igreja mandava, a família mandava e ninguém a apoiava (salvo raras exceções). Quantas mulheres de olho roxo saíram de casa e os pais mandaram de volta! A mulher era um objeto que o homem adquiria virgem e era dele pra sempre. Esse homem não mudou, nόs é que mudamos. E cada vez mais estamos pulando fora. Bateu o desespero nas Igrejas, bateu o desespero nos homens. Estão fazendo de tudo para que a mulher fique a qualquer custo nos casamentos. As mulheres estão pagando com a vida por romper essa lógica. Não tem governante que impeça, não tem pastor ou padre que impeça, não tem ministra que impeça. Cruzamos a linha que nos queriam submissas e obedientes. É irreversível do lado de cá.
Mãe, o mundo é falso sim, mas muita coisa mudou desde que você se foi. Ele não conseguiu me dobrar. Vi coisas lindas que queria que você tivesse visto, mas não deu tempo. E pela sua memória, por aquilo que tiraram de você, ainda tão menina, eu me reinventei: eu posso gozar sem culpa, colocar limites nos homens, denunciar, embora ainda tentem nos deslegitimar e até nos matar. Estamos resistindo, mãe. Eu resgatei a sua histόria, aquela de minha avό e a minha e as ressignifiquei. Te honro e devolvo aos seus algozes a imagem deles mesmos, da prόpria perversão e dos seus instintos mais baixos, do vazio que representam e as suas frustrações que tentaram jogar para cima de você. Sua bênção, mãe.
Fabiane Albuquerque é sociόloga, pesquisadora e inevitavelmente feminista.
Compartilhado do Portal Geledés, Instituto da Mulher Negra (Salvador, BA), disponível pelo link <https://www.geledes.org.br/pela-memoria-de-minha-mae-alice/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification>.
Nenhum comentário:
Postar um comentário