ARTIGO ESCRITO EM 2007, AUGE DOS ATAQUES AOS MOVIMENTOS SOCIOAMBIENTAIS
No olho do furacão, sob
a mira do ufanismo
Reza a
lenda que Corumbá, no coração do Pantanal Mato-grossense e do subcontinente
sul-americano, teria sido amaldiçoada por ninguém menos que um generoso frade
capuchinho, o Frei Mariano, que vivera o clímax da Guerra da Tríplice Aliança
em solo pantaneiro e que no pós-guerra de 1870 se dedicara a cuidar de órfãos e
viúvas, mas que, vítima da disputa entre a Igreja e a Maçonaria, acabara
difamado e, à revelia, transferido ao interior de São Paulo, onde se suicidara mais
tarde. A bizarra lenda em que alegóricas sandálias teriam sido enterradas para
eternizar tal maldição – a representar outro linchamento moral, post-mortem, do sacerdote franciscano – foi
difundida numa cartilha que circulou pelo então ainda próspero centro comercial
na primeira metade do século 20, como uma infame tentativa de justificar o
anacronismo e a miopia das elites diante da falta de estratégias para a
superação da crise iminente do maior pólo comercial do interior da América do
Sul.
Quase
sessenta anos depois, transcorrido um período de indisfarçável (des)compasso de
espera entre os discursos ufano-desenvolvimentistas reciclados de paladinos
efêmeros e as teses realistas de estudiosos comprometidos tão-somente com a
honestidade científica aliados às demandas corajosas de movimentos sócio-ambientais
sinceros, o que resta de cosmopolitismo e altivez do outrora porto-livre do
coração da América do Sul converteu-se em palco de uma aparvalhada batalha em
que autoproclamados arautos, de diatribes conspiratórias e de maniqueísmo
incorrigível, insistem em arranjar bodes
expiatórios para tamanha iniqüidade histórica – desta vez parodiando o
discurso dos caçadores de comunistas do
pós-guerra de 1945 com aviltantes bravatas de que dirigentes e voluntários do
terceiro setor (organizações não governamentais) estariam conspirando contra o
desenvolvimento do coração do Pantanal e atentando contra a soberania nacional.
Coincidentemente, nesse meio-tempo, ganhou destaque a lenda das sandálias do
Frei Mariano, quer como peça de teatro, quer como samba-enredo de entidade
carnavalesca, mas num contexto em que se evidencia o leviano propósito de
deslegitimar qualquer opinião diferente, divergente ou antagônica à proposta
requentada dos tempos getulistas de pólo siderúrgico, ora com o eufemismo de
Zona de Processamento de Exportações, ora com o rótulo de Pólo Gás-químico ou
Minero-siderúrgico.
Como
membro de uma ONG sócio-ambiental de perfil comunitário fundada e consolidada
no olho do furacão, sob a mira do ufanismo, confesso ter ficado preocupado com
a integridade física dos generosos e corajosos estudiosos que foram alvo de uma
ensandecida campanha difamatória, precisamente no ápice dessa atabalhoada verborragia
intolerante e desprezível dos que, na falta de argumentos razoáveis e
racionais, partiram para a prática fascista da negação do contraditório, de
fazer inveja aos mais recalcitrantes títeres da virulência obscurantista que
envergonha a espécie humana. Graças à postura irretocável dos representantes
locais do Ministério Público Estadual, da Procuradoria da República, da Polícia
Federal e do Poder Judiciário, de entidades como a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de
jornalistas éticos dignos do maior reconhecimento público (cujos nomes são
preservados para não torná-los alvo de retaliações), dentro e fora do estado de
Mato Grosso do Sul, foi possível assegurar um mínimo de respeito pela dignidade
humana a esses cidadãos da maior autoridade moral e técnico-científica. E,
justiça seja feita, meu reconhecimento sincero a um diminuto número de
empresários locais de grande espírito público, alguns dos quais ainda sem ter
qualquer mandato representativo de entidade classista para resguardar-se na potestade
inerente a uma função pública.
Por
certo, a experiência e a maturidade cidadã de muitos desses pesquisadores foi
fundamental para transpor as provocações próprias dos tempos odiosos dos regimes
de arbítrio que assolaram países latino-americanos, de triste memória, quando
uma caricata mobilização ganhou proporções inusitadas no emblemático Dia
Internacional do Trabalhador, chegando à linha divisória internacional entre o
Brasil e a Bolívia, em Corumbá. É, no mínimo, bizarro o fato de representantes
de órgãos oficiosos não dissimularem – e ostentarem até – o apoio institucional
a tal façanha, num gesto nada amigável ante um governo constitucional e
democraticamente eleito da nação irmã, por conta de uma decisão governamental
que nada tem a ver com as demandas locais por desenvolvimento.
Indiscutivelmente, o oportunismo de certos agentes políticos dos dois lados da
mesma fronteira serviu de combustível para ações incendiárias e admoestações
extemporâneas que confirmam a mesma origem antidemocrática, partilhada, aliás,
num mesmo período histórico, ainda perceptível.
Órfãos ou viúvos
de correntes cinicamente nazi-fascistas que sobreviveram ao segundo quartel do
século 20, os paladinos de causas inconfessáveis (muitas vezes vinculados ao
crime organizado) travestidos de porta-vozes da livre-iniciativa e do mercado
livre nos nada generosos tempos de globalização adotaram um discurso postiço,
nada convincente, de arautos da justiça social no exuberante, mas excludente,
coração do Pantanal. Embora todos tivessem o pleno direito de lutar por interesses
legítimos, diga-se de passagem, a arrogância e a leviandade com que tentaram
impor seus pontos de vista – usando truculência explícita e poder econômico
sobre os que racionalmente procuram alternativas exeqüíveis para um sólido e
consistente desenvolvimento sustentável no contexto do que é preconizado pela
Carta da Terra e pela Agenda 21 – empobrecem e invalidam o necessário
desenvolvimento do processo civilizatório da humanidade assentada neste singular
território de riquezas incomensuráveis, desde sempre, dos dois lados desta
fronteira de povos irmãos.
A
despeito das vis agressões e das campanhas difamatórias, o terceiro setor tem
dado eloqüentes provas de generosidade e compromisso com a vida em todos os
quadrantes do planeta, seja na defesa dos recursos naturais, na afirmação do
protagonismo cidadão, na inclusão social ou mesmo na preservação da identidade
cultural ou do Estado de direito. Senão, vejamos: mesmo com todas as tentativas
levianas de deslegitimar suas ações pioneiras, não foram senão as ONGs as que
corajosamente não só assumiram para valer como implementaram as iniciativas de
interlocução que ganharam a denominação de Plataforma
de Diálogo – fórum pelo qual membros do terceiro setor vêm pactuando de forma
inovadora e sensata com o segundo setor no sincero intuito de fazer avançar os
mecanismos institucionais de proteção ambiental causado pelo delicado processo
de licenciamento de empreendimentos industriais em Corumbá. Por outro
lado, são as ONGs as que decididamente têm chegado onde o Estado ainda não
assumiu suas prerrogativas, preservando contingentes humanos do assédio de
quadrilhas organizadas que se valem da ausência institucional para ampliar seus
tentáculos e estender suas teias delinqüentes sobre populações inteiras, que
viram reféns dos criminosos e dos servidores públicos corruptos, de todos os
poderes e escalões, cooptados por eles.
No
dizer do inigualável sociólogo brasileiro Herbert de Souza, o saudoso Betinho, fundador do pioneiro Instituto Brasileiro
de Análises Sócio-Econômicas (Ibase), “não basta dar um prato de feijão; é
preciso ser cidadão para conferir cidadania aos 32 milhões de brasileiros que vivem
abaixo da linha da pobreza”. Pois, então, nessa linha de raciocínio, podemos
dizer que não basta bradar pela defesa do desenvolvimento da região, mas é
fundamental que esse desenvolvimento seja construído sob o império da lei, à
luz da ética e da solidariedade universal e com a participação democrática de
todos os diferentes atores sociais, para que, ao lado da geração de emprego, a
qualidade de vida represente, de fato, o progresso que a humanidade almeja, sob
pena de que, em duas ou três décadas, sobre, mais uma vez para a população
local, a herança maldita de iniciativas feitas para o enriquecimento de alguns que
sequer ficarão para sentir as conseqüências dos estragos deixados (as voçorocas
expostas, os rios contaminados, a vegetação nativa degradada e a fauna
dizimada) para as próximas gerações de pantaneirinhos que absolutamente não têm
culpa de que seus pais tenham caído mais uma vez na cantilena esperta das
sereias de águas turvas e solos contaminados...
Ahmad Schabib Hany(*)
(*) É fundador e membro da coordenação-executiva da
Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental
sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), além de membro da coordenação
colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e
Ladário (FORUMCORLAD).
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