PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 24 DE JUNHO DE 2007
Mais que
conservar o meio ambiente, trata-se de preservar o Estado de Direito
Schabib Hany (*)
Uma sociedade que se pretende democrática, baseada no princípio do convívio
saudável entre a diversidade de interesses de seus inúmeros segmentos - muitas
vezes antagônicos, mas nem por isso ilegítimos –, não pode abrir mão da
estrutura jurídica do Estado de Direito, o qual, aliás, foi construído ao longo
dos últimos séculos pelas sucessivas gerações que antecederam as
contemporâneas.
Nesse sentido, a partir do Renascimento (processo histórico das sociedades
ocidentais pelo qual se retomaram as significativas contribuições oriundas da
Antigüidade Clássica, ao romper com o obscurantismo medieval), importantes
pensadores do Ocidente resgataram o humanismo e seus valores universais –
sobretudo o legado da convivência harmoniosa entre os contrários, pondo em
xeque a intolerância feudal, que ainda teima em nortear os rumos da humanidade.
A despeito da expansão colonialista protagonizada pelas coroas portuguesa,
espanhola, inglesa, francesa, holandesa e austro-húngara, é no auge do
Iluminismo que se consolidam as idéias que dão as bases conceituais da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, em fins do século 18 (que trata dos
direitos individuais, a primeira geração). E num processo evolutivo são
acrescidas importantes contribuições, nos séculos 19 e 20 – quando são
concebidos os direitos coletivos, de segunda geração –, que se transformam num
marco histórico em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova,
em sua Assembléia-Geral, a Carta dos Direitos Humanos – a qual ganha maior
dimensão com a inclusão de novos conceitos relativos aos direitos dos povos e
da diversidade biológica e cultural, compiladas na Carta da Terra, em 1992,
durante a realização, no Rio de Janeiro, da Cúpula da Terra, mais conhecida
como Eco 92, cujo documento final ficou traduzido na Agenda 21.
Mais que mero protocolo de intenções, a Agenda 21 é um conjunto de novos
conceitos e ações recomendados a todos os países-membro da ONU, a qual, no
dizer do sociólogo americano Ignacy Sachs, em seu livro Estratégias de
transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente (Editora Studio
Nobel, São Paulo, 1993), "não foi um fim em si mesma; em vez disso, deve
ser encarada como o início de um longo processo a ser percorrido mediante
esforços e batalhas dos atores do desenvolvimento". Cabe, portanto, aos
respectivos governos nacionais, regionais e locais introduzir em suas políticas
públicas novos parâmetros de desenvolvimento, levando em conta as cinco
dimensões de sustentabilidade – social, econômica, ecológica, espacial e
cultural.
No entanto, a partir da celebração do chamado Consenso de Washington, em 1989 –
quando do início do desmoronamento do bloco soviético –, os sete países mais
ricos do mundo capitalista decidiram desenvolver uma estratégia ousada na
afirmação de sua hegemonia econômica, adotando o neoliberalismo em escala global
– a chamada "globalização" –, as sociedades contemporâneas passaram a
viver um dilema: a subordinação de sua estrutura jurídica às leis de mercado.
Em outras palavras, na América Latina o Estado de Direito passou a ser
corroído, de um lado, pelos cartéis e oligopólios transnacionais, e por outro,
pelas quadrilhas do crime organizado, pois o recém-implantado regime
democrático se revelou frágil perante as amplas camadas sociais nas garantias
de direitos sociais e trabalhistas e no enfrentamento à expansão da miséria e
do desemprego.
Assim, o ruidoso embate que tem como epicentro o projeto de implantação de
indústria pesada no município de Corumbá (MS), no coração do Pantanal
Mato-grossense, remete os cidadãos comprometidos com os reais interesses da
sociedade a uma oportuna reflexão: detentor de uma extraordinária legislação
ambiental, o Estado brasileiro pode transigir da legalidade em nome da geração
de emprego e renda para uma população residente numa singular região do
Planeta, cujos recursos naturais não renováveis têm um valor inestimável para
toda a humanidade?
Qual o real custo-benefício sócio-ambiental dos projetos alardeados para a
região, levando em consideração que o mercado impõe condições cada vez mais
voláteis a toda iniciativa econômica, sujeita à própria sorte (a exemplo da
crise que afeta a sojicultura, a pecuária e a avicultura, carros-chefe da
economia do estado de Mato Grosso do Sul, vitimados pela especulação mercantil
dos últimos meses)?
E a garantia de sustentabilidade desses megaprojetos, os quais envolvem
elevados investimentos, em sua quase totalidade financiados por instituições
públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
ou por instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) ou o Banco Mundial (BIRD), dos quais o Estado brasileiro
é membro e cujo aval é requerido nos casos de sediar projetos dessa magnitude?
Há de se observar também que, antes de se cair no discurso maniqueísta (do
"bem" contra o "mal"), é preciso reunir dados
jurídico-institucionais para compor o cenário local para a introdução de novos
projetos de desenvolvimento, nos parâmetros do século 21, com ênfase às cinco
dimensões do desenvolvimento sustentável, bem como a necessária observância ao
Estatuto da Cidade, pelo qual toda cidade com mais de 50 mil habitantes é
obrigada a construir o respectivo Plano Diretor do Município, além do que a
administração estadual não pode deixar de realizar o Macrozoneamento
Ecológico-econômico, nos termos da legislação pós-Agenda 21, como medidas
preliminares para adoção de novos modelos de desenvolvimento.
Não é demais recordar que as três gerações dos Direitos Humanos (direitos
individuais, sociais e econômicos e de solidariedade e meio ambiente) são complementares,
embora apresentem, no cotidiano das sociedades hodiernas, aparentes conflitos
entre os direitos individuais, coletivos e de solidariedade. Na realidade, a
omissão do Estado, enquanto ente responsável pela aplicação estrita dos
referidos direitos, induz os incautos a essa aparência, explorada de parte a
parte pelos lados em conflito. Mais que a conservação da natureza, a
preservação do Estado de Direito, construído nas últimas décadas com muito
custo (inclusive com perda de vidas humanas) em toda a América Latina, implica
na vigência do império da lei, sem o que a barbárie se instala no seio da
sociedade, para o deleite das organizações criminosas que agem, inclusive, nas
atividades políticas e econômicas, usando e abusando da fragilidade do tecido
social, corroído por suas mazelas.
* É fundador e atual coordenador-executivo da Organização de Cidadania,
Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do
Pantanal (Corumbá, MS), e membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente
de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).
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