Ouvidos
moucos
Em tempo: Chaves nada tem com a
personagem do humor mexicano e Aquino muito menos com o governador
mato-grossense do início do século XX.
Porto de Burácom, ano de 1024 de Nosso Senhor Jesus
Cristo. No ocidente, Idade Média; na Arábia,
Iluminismo. Chaves, 40 anos
mais velho que Aquino, apercebe-se que passara desesperadoramente à toa os
melhores dias de sua existência a formar os mais novos com base nos Clássicos,
que de todas as formas possíveis ‘traduzira’ para melhor compreensão das novas
gerações, mesmo tendo conhecido o trágico fim de Sócrates, cuja condenação o fez
tomar cicuta por ‘perversão’ de jovens incautos nas ‘perigosas’ searas do saber.
Não que os usurpadores
do poder terrenal e celestial não conhecessem o rico legado grego milênio
antes. Os mosteiros estavam repletos de obras ‘pagãs’ e ‘heréticas’, tomadas de
incautos descumpridores das normas estabelecidas. Eles precisavam demarcar seu
total domínio, ainda que tirânico e contrário ao que Jesus Cristo ensinara no
Novo Testamento. Afinal, por meio das Cruzadas e do que viria a ser a ‘Santa’
Inquisição, estavam todos de acordo de que ‘hereges’ e ‘pagãos’ seriam, sem
comiseração ou clemência, levados à fogueira, à trepanação, ao esquartejamento,
ao calabouço, ao desterro.
Quem tiver conhecido a
obra do compositor cubano Alejandro ‘Virulo’ García e seu irreverente
LP “La Génesis Según Virulo” (em duas edições, de 1980 e 1986) vai compreender por
que até o início do século XXI os artistas criativos precisavam recorrer a uma
interpretação mais, digamos, leve, irreverente, dos ensinamentos bíblicos.
Possível, sobretudo, por causa da quebra de paradigma pelo Papa João XXIII.
Caretas, os fanáticos ‘fiéis’ e seus ‘pastores’ de meia pataca sabem patavina
de Hermenêutica e de Exegese, com sua interpretação literal e cega do texto
milenar, tão complexo quanto profundo.
É eloquente aquela postura
de se declarar defensor intransigente da vida do embrião no ventre materno e depois
de nascido o rebento que fique ao relento, à ‘própria sorte’. Isso não é novo:
vem dos tempos medievais, ainda que consentissem aos membros da corte a prática
de tudo que era heresia e paganismo para a plebe. Joana D’Arc que o dissesse, e
não é exclusivo dos mais tarde protagonistas da Contra Reforma, mas os próprios
paladinos da Reforma. Lutero, Calvino e Henrique VIII, o monarca inglês que
rompeu com a Igreja porque o sumo pontífice lhe negara mais uma núpcia na
promíscua vida conjugal, antes da ruptura sequer haviam questionado essa conduta.
Feita esta necessária contextualização, demos vida
e voz a Chaves e Aquino, que viveram, conviveram e sobreviveram em pleno
obscurantismo medieval, cuja repetição em nossos nada generosos dias é uma
farsa criada pelas elites totalitaristas travestidas de liberais, no
desesperado afã de dar uma sobrevida a um ‘capetalismo’ perverso e pervertido.
Aquino, de ascendência mourisca, manifesta a sua
discordância na maiêutica, o que soaria como uma afronta a Chaves, que passou
seus melhores dias em meio à juventude, longe da academia, crendo que com isso
não estaria se contaminando dos ‘vícios’ daquele, para ele, antro de vaidosos e
soberbos. A sinceridade com que o jovem pai de uma filha e que para sobreviver
se dedicara ao comércio, seguindo o ofício ancestral, o deixara perplexo, mas
reflexivo. Em algo ele e a sua geração falharam, e feio (e, pior, não se
aperceberam em tempo). Em meio a um silêncio
sepulcral de seus pares, atônitos e consternados -- afinal, o episódio ocorrera
precisamente no dia em que era celebrada a memória do mártir da comunidade,
cuja passagem ocorrera no ano anterior --, tenta inutilmente encontrar um fio
condutor para desenvolver uma reflexão a dois ou mais.
Mas o jovem está
irredutível a todos os argumentos. Deixa claro que as palavras do velho
aprendiz de tutor não servem para ele, que acrescenta ser sua convicção oposta
a toda a de sua comunidade. Algo o fez se desencantar com os usos e costumes avoengos
e procura com todo o vigor de sua juventude se contrapor a tudo isso. Reitera
com ênfase seu direito de seu livre arbítrio, que, por certo, vai mais além que
a escolha do burgomestre. Está evidentemente sufocado, a um passo da
proclamação de sua rebeldia, a despeito de fazer a escolha oposta a seus
legítimos protestos.
Seu protesto é legítimo,
mas sua opção contraditória, pensou Chaves, mas não se sentiu seguro para
dizê-lo. Falta de coragem? É provável, pois os tempos eram funestos e o ódio
era o combustível para retroalimentar as forças do atraso, com as quais
inadvertidamente o jovem rebelde estava imbricado. Tentou, ao seu modo, todas
as formas possíveis para dizer-lhe, em meias palavras, que, no fundo,
concordava com a sua rebeldia, mas não com a opção feita, de fortalecer o jugo,
a opressão, dos pretensos donos do mundo, das almas e das pessoas.
Embora se proclamasse
conservador, defensor da ordem estabelecida, Aquino estava em pleno fulgor da
desobediência. Ato de coragem, sim. Rebeldia é fundamental, sobretudo na
juventude. Mas ela mal direcionada é perigosa por ser autodestrutiva, o que é
nocivo para o próprio crescimento da comunidade. Em vez de ganhar adeptos nessa
postura, um tanto ‘revolucionária’ em termos de evolução da sociedade,
reforçaria o comportamento subserviente dos que não têm a ousadia de questionar
regras atávicas.
Aquino sempre foi um
menino obediente e cumpridor de seus deveres. Talvez por isso se alinhara
cegamente logo com os que se pretendiam ‘donos da ordem’ também. Só não
revelavam que ordem pregavam, a dos cemitérios. Seus áulicos estiveram nas
Cruzadas contra o povo ancestral do jovem perdido. Perdido, sim: alinhar-se aos
seus algozes não era de bom alvitre, Chaves se sentira na obrigação de dizê-lo,
ainda que soasse mal. Pior, ainda que se desse mal, como se deu, sim, senhor.
Coisa a que ele estava acostumado em sua teimosia de navegar contra a corrente,
desde jovem, também. Porém, jamais do lado errado da história, e logo ao lado
dos tiranos travestidos de ‘rebeldes’.
“A palavras loucas,
ouvidos moucos”, dissera-lhe, reservadamente, um de seus pares. Chaves tinha
outra postura, não dormiria bem senão insistisse, ainda que visse que se
tratava de um diálogo de surdos. Sim, de surdos, porque nem ele conseguia
encontrar as palavras que pudessem ter melhor acolhimento por parte do menino
travesso. Travesso? Era assim que seus contemporâneos o viam, pois seu caráter
questionador e irreverente não era compreendido nem pelos seus contemporâneos.
Era visto como um rebelde sem causa, que não gostava de refletir, de pensar no
futuro da comunidade. Um egoísta. Isso reforçava sua convicção de que não tinha
qualquer compromisso com os seus, embora se sentisse pertencente ao seu meio,
mas ao seu jeito.
Frustrado com o desfecho daquele não-diálogo,
Chaves passou a noite lendo e relendo seus velhos apontamentos. Costumava
deixar em um baú seus alfarrábios, na esperança de que pudesse um dia compilar
e transformar em manual de sobrevivência de eventuais colegas de ofício. De
ofício? Não, de infortúnio. Nesse dia -- além da consternação com a perda de
uma Amiga e um Amigo, em lugares diferentes e circunstâncias também --, sua
solene convicção de que, a despeito de não ter juntado fortuna material para os
seus, se dizia em paz, pelo menos, com a sua consciência, de ter feito o melhor
por aquilo em que acreditava, que escolhera como causa maior, isto é, preparar
as novas gerações para um novo tempo.
Qual novo tempo, qual nada! Eram essas as palavras
que ecoavam, reverberavam, ricocheteavam em seu âmago. Aquino foi apenas a
ponta do iceberg, pois já havia sido tomado pela decepção com quase todos os
que algum dia lhe pareceram companheiros de sina, de ofício -- naquele tempo
era o companheirismo a pautar as relações dos, digamos, ousados ‘lentes’, como
se pretendiam: olhar mais longe, ainda que milimetricamente... Mais que a
miopia, era a soberba, a estupidez, que tomava conta do comportamento dos seus.
Pelo visto, ser néscio era o comum, e a ‘normalidade’ era construída nesse
sentido.
Pensar, refletir, ter empatia, manifestar
solidariedade, caminhar junto... Não, isso pode estar em baixa, mas não
desapareceu. É verdade que os impérios conseguiram sedimentar a falsa ideia de
que a realização é individual, que só o mais hábil é que se estabelece. Mas
ainda há uma, ainda que tênue, oportunidade para mudar o rumo das novas
gerações, que não passam de vítimas inconscientes de sua própria tragédia. E
cabe, sim, aos que ainda têm um mínimo de noção e cordura o dever de insistir
para que caminhem em outras vias, sejam quais forem, mas não na vala comum do
esgoto, onde os ratos que vivem da escória estão a saciar sua gana, sua cobiça
por chorume...
Se valeu a pena para Chaves ter vivido a
disseminar questionamentos? Não sabemos, não saberemos. Como não saberemos se a
legítima rebeldia juvenil de Aquino o levou a realizar seu objetivo. Dizem os
do seu tempo que, na ânsia de perenizar seu domínio sobre a face da Terra, os
obscurantistas medievais se valeram de pessoas de bons propósitos para como
abutres lhes tirar a alma e transformá-las em seres desalmados a vagar sem
destino pelos recônditos do mundo então conhecido, em vida, em plena
existência. Ou quem foram os monstros em forma humana que destruíram as
civilizações originárias na América, África, Ásia, Oceania e até da própria
Europa? Ler, estudar, refletir é o caminho, que se faz ao caminhar, como disse
Antonio Machado, o poeta sevilhano que sabiamente o ensinou.
Ahmad
Schabib Hany
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