Um
ano sem Dona Maria Taques e Jadallah Safa
No mesmo dia em que a querida
Dona Maria Petrona, Matriarca e Cidadã a toda prova, descansou eternamente aos
95 anos, o igualmente querido Camarada Jadallah Suleiman era vencido, aos 65
anos, em sua derradeira luta depois de ter sofrido um AVC durante ato de apoio
à resistência palestina em São Paulo.
22 de outubro de 2023.
A Senhora Maria Petrona Torres Taques, 95 anos, descansou o sono dos justos
para a eternidade, como incansável Cidadã à frente de seu tempo, verdadeira Matriarca,
Mãe de prole de oito Irmãos que tive a honra de conhecer e de cuja Amizade
sincera privar, sobretudo do Amigo-Irmão Luiz Taques, Jornalista e Escritor com
letras maiúsculas, e da Tilma Torres Taques, Enfermeira aposentada. Igualmente,
nessa data foi vencido pelo AVC, depois de resistir por algumas semanas, o
também Amigo-Irmão de décadas Camarada Jadallah Suleiman Safa, 65 anos,
incansável ativista político e comerciante -- até porque nunca viveu da
política, do poder, mas de seu trabalho, da luta --, imigrante palestino,
chegado ao Brasil pela Corumbá de todos os povos e culturas, quando tive a
honra de conhecê-lo e a toda a sua Família e com quem estruturamos a
solidariedade ao povo palestino em Mato Grosso do Sul.
É impactante perder ao mesmo tempo uma Amiga e um
Amigo muito queridos e que são referência, ao menos nos últimos
quarenta anos, nesta cosmopolita cidade que sintetiza não só a diversidade
biológica, por ser o coração do Bioma Pantanal e da América do Sul, mas toda
humanidade: eis que são habitantes daqui povos originários, afrodescendentes,
quilombolas, migrantes de diversas regiões do Brasil, imigrantes bolivianos,
paraguaios, argentinos, peruanos, chilenos, gregos, turcos (sim, da Turquia),
armênios, portugueses, italianos, espanhóis, britânicos, franceses, alemães,
russos, ucranianos, japoneses, árabes -- isto é, palestinos, sírios, libaneses,
líbios, jordanianos, marroquinos, egípcios e tunisianos -- etc.
Dona Maria Petrona -- nome, aliás, da editora
fundada por Luiz Taques e Esposa, em sua homenagem -- é nascida em Corumbá, na
década de 1920, de Mãe e Pai gaúchos, vindos na maior
mobilização popular da história do Brasil, a Coluna Prestes. Conhecia quase
todos os remanescentes e descendentes dos integrantes -- cunhados pela imprensa
elitista da época de ‘revoltosos’ --, cuja expressiva parcela ficou no então
Mato Grosso uno. Não nos esqueçamos de que o líder, capitão Luiz Carlos
Prestes, ao negociar a repatriação de todos os membros do multitudinário
contingente oriundo de diferentes estados, assegurou uma indenização pelo
governo de Getúlio Vargas, parte dela doada à Sociedade Beneficente de Corumbá,
que permitiu a construção da ‘ala nova’ do Hospital de Caridade, conforme
constava da placa de bronze que nos anos de chumbo foi retirada pelos
alcoviteiros do fascismo.
Jadallah Safa, recém-chegado a Corumbá, depois de integrar
a diáspora palestina em tenra idade [contara-me, tão logo o conheci, que saíra
criança de sua Kafermalik, situada na província de Ramallah, na Cisjordânia, no
contingente de refugiados palestinos do pós-guerra de 1967, em que os árabes,
sob a liderança de Gamal Abdel Nasser, perderam boa parte do território da
Palestina milenar, além da Península do Sinai, do Egito, e das Colinas de Golã
(ou Jolan, na pronúncia síria)]. Em um portunhol com sotaque árabe, explicara a
mim e aos Amigos que integravam um grupo de esquerda latino-americana seu
interesse por conhecer melhor as culturas da América Latina e, sobretudo, do
Brasil, País que soube acolher irmãmente todos os refugiados que aportaram nos
últimos três séculos, mas que em cuja história colonial lusitana traz a
vergonha da escravização de milhões de africanos e do saque e morticínio de
centenas de povos originários.
Dona Maria Petrona conhecia como pouquíssimos a
história da Coluna Prestes, da Corumbá cosmopolita que em cuja infância
testemunhou e da história recente da Corumbá privada da liberdade nos anos de
chumbo, sob a qual criou seus Filhos como Mãe prudente para que nenhum
bajulador das botas opressoras ousassem contra a sua querida prole. Ao lado do
Senhor Narciso Taques, que depois de se aposentar do Ministério dos Transportes
foi um dos primeiros choferes de carro de praça, como se soíam chamar os dignos
profissionais do táxi, eis que Corumbá foi uma das cidades pioneiras também
nesse serviço. Seu Narciso se eternizou bem cedo, cabendo à Matriarca assumir
sozinha a formação dos Filhos e Filhas (inclusive do mais Velho, que era da
primeira cônjuge, falecida, de seu Companheiro de Vida, de sonhos e lutas).
Jadallah, em sua breve permanência em Corumbá
(pouco menos que 10 anos), a despeito da dificuldade inicial de falar
fluentemente em português, dava um jeito de se relacionar de forma altiva e
proativa. Foi assim que construímos uma sólida e leal Amizade, o que permitiu
realizar palestras-debate com estudantes das séries finais do ensino
fundamental e médio, bem como com universitários e profissionais liberais em
Corumbá e Ladário. Ao lado dele, e com a plena contribuição (ele era defensor
do trabalho coletivo) dos Amigos Yahya Mohamad Omar, Najeh Abdel Mohd Mustafá
(na época presidente da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira), Nasser Safa
Ahmad e dos saudosos senhores Khamis Abdallah Suleiman, Soubhi Issa Ahmad e meu
saudoso Pai Mahoma Hossen Schabib, sob a qualificada coordenação da querida
Amiga-Camarada Elenir Lena Machado de Mello e do incansável trabalho do querido
Carlos Augusto Canavarros, da Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina, por
mais de três meses, na Biblioteca Pública Estadual Dr. Gabriel Vandoni de
Barros, nas dependências da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, o glorioso
ILA, sob a sábia direção-geral do saudoso Doutor Lécio Gomes de Souza e
assessoria do também saudoso Poeta Rubens de Castro.
Em sua longeva e lúcida existência nesta dimensão,
Dona Maria soube ensinar com sábia maestria valores humanos de grande
transcendência. Como diz o provérbio árabe, regras mudam com o passar dos
tempos, mas princípios são imutáveis, por isso a base da evolução das sociedades
e da espécie humana. Jamais me esquecerei que, já idosa, fez questão de me
acompanhar, lado a lado, no cortejo fúnebre de minha saudosa Mãe Wadia Al Hany
de Schabib, segurando literalmente minha mão, como a me dar o conforto maternal
preciso e precioso no momento em que eu despedia minha Progenitora. Jamais
esquecerei de seu gesto de profunda empatia, solidariedade e, sobretudo,
Amizade. Eu que, pelas ironias da Vida, não consegui chegar a tempo de
despedi-la em sua derradeira caminhada, mas que a trago presente, sempre, pois
é uma das minhas referências existenciais.
Por onde Jadallah residiu e trabalhou -- Canoas (RS),
João Monlevade (MG) e São Paulo -- soube marcar, espontânea e abertamente, seu
legado de generosa e sincera resistência e resiliência, além de organizar
coletivos. Não perdia tempo em discussões estéreis (aliás, como meu Pai):
insistia que não vale a pena perder tempo com quem ‘sabe tudo’, pois, o papel
de quem tem que transformar o mundo, transformar a sociedade predadora e do
sucesso a qualquer preço, é disseminar como quem semeia em campos férteis, para
as pessoas libertas do preconceito e do jugo, da opressão, e especialmente para
as novas gerações, a quem cabe conduzir pelos próximos anos o que estamos
deixando para elas. Em quase dez anos de convívio, nunca o vi perder as estribeiras,
o que deixava muitos provocadores ainda mais raivosos com ele.
Dona Maria Petrona e Jadallah Suleiman, dois Amigos
que me ensinaram muito, mas muito mesmo. Cada qual ao seu modo generoso e
único. Personalidades iluminadas e humildes, como o Peregrino que a Vida me
presenteou como Pai. Sem que lhe perguntasse, tanto Dona Maria como Jadallah me
davam a resposta que precisava, de modo prático e sincero. Pena que eu não os
tivesse apresentado um para o outro, pois não tenho dúvida que teriam gostado
muito terem se conhecido. Coincidentemente, também não pude me despedir de
Jadallah quando esteve em Corumbá, por alguns dias (no início de 2023), apesar das várias tentativas feitas por ele para nos encontrarmos.
Decorrido o primeiro ano da eternização de Dona
Maria e de Jadallah (não para confortar minha consciência de procrastinador
inveterado), concluo que não me despedi de cada um deles porque os tenho
presentes em meu cotidiano. Como poucos outros e outras, entre eles meus
saudosos Pais e meu Irmão mais velho, há algo, sempre, que me os traz à
lembrança por algum episódio ou fala sábia que calou fundo em meu âmago. É que
assim são os seres únicos, imensos e generosos: impregnam em nós os seus
grandes valores que os trazemos para sempre dentro de nosso consciente, como a
nos orientar o tempo todo.
Com todo o respeito pelos tantos e tantas Amigas e
Amigos cultivados com muito afeto e sinceridade, mas a Vida está se tornando
insípida e profundamente árida com a eternização desses Gigantes de Alma que
atravessaram a dimensão para iluminar nossa lúgubre e insana existência, em que
seres bizarros de comportamento insólito e ganancioso teimam em se apossar e
destruir o que resta de um planeta tão generoso e uma humanidade, apesar de
espoliada e oprimida, tão diversa e cativante. Que, pois, esses seres de Luz
nos mantenham lúcidos e racionais para continuarmos a jornada, que só vale a
pena continuar a levá-la na certeza de que o raiar de um novo tempo está a
surgir, com a intensa luz de seres que se eternizaram abnegada e generosamente,
como viveram, na humildade e no anonimato.
Até sempre, Dona Maria Petrona! Até sempre,
Jadallah Safa! Obrigado por terem existido! Obrigado, Corumbá, por ter sido o
sagrado Paraíso na Terra a nos oportunizar verdadeiros seres humanos de uma
dimensão gigantesca!
Ahmad
Schabib Hany
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