sexta-feira, 11 de outubro de 2024

CARTA AO SENHOR JORGE KATURCHI

Carta ao Senhor Jorge Katurchi

Em seu aniversário natalício, a missiva a um Amigo que a Vida me presenteou ao lado de Dom José, Padre Pasquale e Padre Ernesto.

 

Corumbá, Paraíso na Terra, 11 de outubro de 2024.

Querido Amigo,

Feliz aniversário natalício, ao lado de Dona Anna Thereza, Mário Márcio, Dona Rosa Maria, Dona Amélia e Seu José, além dos tantos Amigos e Amigas que, com seu dom ímpar de cultivar Amizades sinceras, reuniu ao longo de sua trajetória nesta dimensão!

Confesso que desde que o senhor partiu não consigo ir à sua residência, ainda que minha consciência me instigue a visitar José Eduardo, com quem troco esporadicamente breves mensagens pelo aplicativo de celular. Mas ultimamente tenho visto o Zequinha, por acaso, é verdade, ocasiões em que vou ao centro da cidade, quando me dá notícias da Doutora Tereza e Família e de meu ex-professor, o Doutor Luiz Carlos.

Em rápida passagem pela frente do prédio da gloriosa Casa Katurchi tive a forte sensação de tê-lo visto sentado a sorrir, como sempre, na entrada do emblemático armazém cujo escritório foi sala de visitas que durante décadas abrigou os anseios genuínos de Corumbá, Ladário, Puerto Suárez e Puerto Quijarro. Foi a Cidadania que lhe conferiu o título de autêntico porta-voz dos clamores desta terra de todos os povos, todas as culturas e todas as graças, no dizer do saudoso Seu Augusto César Proença.

Quantas e quantas cartas fizemos juntos, ora em seu escritório, na sala de sua residência ou mesmo em casa. Na maioria das vezes, quase a totalidade, era o senhor quem assinava sozinho ou ao lado dos também saudosos Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale Forin e Padre Ernesto Saksida. Em nome do Pacto pela Cidadania ou pela Comissão Pró-fundação do Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), da qual o senhor foi presidente, mas quando se tratou de constituir a primeira diretoria executiva generosa e habilmente abriu mão, do mesmo modo que o também saudoso Doutor Salomão Baruki, Companheiro de jornada na pioneira União dos Ex-alunos de Dom Bosco, década de 1940.

Desta vez, no silêncio da sala, sou eu, sozinho, quem tenta lhe escrever, mais apagando que redigindo “estas mal traçadas linhas”. Então me lembro de sua belíssima grafia, com a qual fazíamos os rascunhos, de sua lavra, sem hesitar na ortografia. Na falta do detentor desses atributos genuínos, o computador é parceiro. No entanto, com quem dialogar para encontrar o termo ou a forma mais adequada de dizer isto ou não dizer aquilo? Nestes tempos de autossuficiência absoluta, não é fácil construir uma Amizade, dessas com letra maiúscula, cuja razão de ser era tão-somente o bem-comum. Em suas sábias palavras, o “amor por Corumbá, o amor pelo Povo Corumbaense”.

Ao lado de Dom José, Padre Pasquale e Padre Ernesto, não foram poucas as insólitas, para muitos, iniciativas que beneficiaram a população que o senhor tanto amou. Não as citarei, até porque não era de seu proceder a inconveniência. Discreto, como os demais Amigos referidos, o senhor protagonizou uma série de iniciativas que se tornaram realidade, mas engenheiros de obras feitas se encarregaram de ‘apadrinhá-las’, sem qualquer senso ético, até porque se há algo em falta nestas e outras plagas é exatamente essa práxis.

Há um provérbio árabe que, em tradução ligeira, recomenda o comedimento. Aliás, se a memória não me falha, o senhor tinha um quadro com a tradução do provérbio completo em seu escritório. Por essa razão não enveredarei pelas agruras daquilo que deveria ser ápice da celebração cidadã e da qual o senhor sem nunca ter sido candidato era referência para os generosos e sinceros protagonistas da história deste que é o Paraíso na Terra, uma das inúmeras concordâncias que solidificaram a nossa Amizade, respeitando sempre nossas diferenças de pontos de vista.

Pois é, Seu Jorge, tempos difíceis estes. Nem nos álgidos tempos de 1964 havia tamanha soberba, intolerância. A propósito, lembro-me de uma de suas máximas: a ignorância faz do ser humano um tirano convicto. Até parece que os ‘cavaleiros do Apocalipse’ estão a anunciar o indizível, a ponto de as labaredas criarem um cenário tétrico e submeterem pessoas, animais, plantas e seres microscópicos (estes ainda desconhecidos pela ciência humana) a uma sufocante atrocidade inaudita.

O senhor foi poupado de tamanho desamor, querido Amigo. Não imagino qual o desespero seu ao assistir às imagens dantescas do Paraíso que tanto amou e pelo qual, aliás, há quase vinte anos, quando ainda era governador seu amigo de Porto Murtinho e seu secretário de Segurança Pública frequentava a sua residência para levar as demandas regionais, entre as quais a dotação no Corpo de Bombeiros, em Corumbá, de brigada aérea de combate a incêndio no Pantanal. Muitos, na época, acharam a reivindicação visionária, para dizer o mínimo, eis que o tempo se encarregou de provar sua providencial antevisão.

E o que dizer, então, da tragédia incessante que há mais de um ano reduz a humanidade a pedaços de corpos, escombros de lares e fragmentos da civilização? Sempre em nome de uma cínica ‘democracia’ e de inusitado combate ao ‘terrorismo’, cometem-se crimes de guerra em que grávidas, bebês, crianças, adolescentes, jovens, mulheres e idosos são condenados à morte sem o devido processo legal, pelo simples fato de serem palestinos ou amigos dos palestinos. Gaza, Cisjordânia e Jerusalém; agora Beirute, Damasco e Bagdá; nos próximos dias Teerã e Áden; depois talvez Cairo e Trípoli. Não esqueço sua indignação ao assistirmos pela televisão à soberba dos ‘donos do mundo’.

Como expressão eloquente do cosmopolitismo corumbaense de sua juventude, o senhor foi quem soube traduzir o vigor da miscigenação, a resiliência originária, a perenidade afrodescendente e o aporte do migrante transfronteiriço e do imigrante ultramarino que, a despeito da opressão do componente colonial de saque e tirania, converteram o coração do Pantanal e da América do Sul em Paraíso na Terra, que com a ciência e os saberes dos povos tradicionais sobreviverá. E mais: não tenho dúvida de que, neste momento em que a Cidadania clama ao Governo Federal pela Universidade Federal do Pantanal, o senhor estaria, mais uma vez, na vanguarda do movimento.

Estas pugnas cidadãs haverão de continuar enquanto houver sinceridade e determinação entre as pessoas que constituem as novas gerações, muitas delas inspiradas na trajetória generosa de seres humanos que, como o senhor, abriram mão das benesses do poder para empreender uma interminável jornada cujas conquistas serão desfrutadas por quem virá depois de nós.

Seu Jorge, querido Amigo, obrigado por ter existido e por estar eternamente no coração e em pensamento ao lado de seres estimados que desde sempre têm atuado no anonimato diuturnamente para a construção de uma sociedade mais justa e um mundo melhor!

Com carinho e saudade,

Ahmad Schabib Hany

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