domingo, 6 de outubro de 2024

ETERNO FLAMENGUISTA E TERNO SÍRIO CORUMBAENSE

Eterno Flamenguista e terno Sírio Corumbaense

Corumbaense por opção, Flamenguista a toda prova e defensor da República da Síria, o Senhor Ali El Seher descansou no sétimo dia, depois de trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar incessantemente. Recebeu em Vida a mais honrosa homenagem, o livro-vídeo bilingue Logo Ali, da escritora Ana Lucia Almeida Dichoff com a colaboração de Salim Haqzan e Omar Faris.

Até depois de aposentado o imigrante sírio mais corumbaense e flamenguista que conheci não parou de trabalhar. Como se diz em Corumbá, trabalhou duro! E descansou no sétimo dia, sábado, 5 de outubro, em Campo Grande, aos 80 anos. Vai agora ao encontro de sua eterna amada, Dona Berenice, que está, há dois anos, à sua espera.

Chegou em plena juventude, não porque quisesse: a guerra incessante desde a nefasta criação do Estado sionista pela ONU, em 1947 [em novembro daquele ano foi decidida, sem consultar o povo milenar, a partilha da Palestina, então colônia da Grã-Bretanha], o fez sair de sua Tartus, cidade milenar na costa do Mar Mediterrâneo, no limite do Líbano, porto dos mais importantes da República da Síria.

Comerciante, daqueles que sabem cativar seu cliente, e ao chamá-lo de Amigo é uma declaração de amor, sincera, nada de hipocrisia. Cativante para celebrar Amizades, foi cativado por Corumbá, pelo Flamengo e por Dona Berenice, sua Companheira de Vida, Mãe de todos os Filhos, e de quem teve que se despedir dois antes de sua eternização.

Incansável, afável, sincero e, sobretudo, espontâneo. Tive a honra de conhecê-lo quando eu era criança, acompanhando meu saudoso Pai, que depois de cumprir seus compromissos no centro da cidade, visitava o Senhor Soubhi Issa Ahmad, da Casa Estrela, e, ao lado, Seu Ali El Seher, na Casa Tartous [assim estava grafado no letreiro da loja, onde abundavam brinquedos e produtos esportivos], na Delamare com a XV de Novembro. Seu Soubhi era palestino, mais velho, calvo e também alto. Seu Ali, sírio, jovem com cabelo alinhado, um bigode abundante e sorriso espontâneo. Inesquecível, sobretudo pelo particular sotaque sírio [muito parecido ao libanês do norte na pronúncia do árabe], meio cantado.

Por causa do conflito israelo-árabe, desde criança o que mais ouvia nas conversas entre os adultos árabes era a causa palestina. Época em que Gamal Abdel Nasser presidia a RAU (República Árabe Unida, com a Síria e o Iraque), era ainda mais forte a resistência pró-palestina que em nossos dias. É que o pan-arabismo nasserista promovia um sentimento de Unidade Árabe para vencer o sionismo, e isso incomodava as potências ocidentais, ex-metrópoles coloniais de todos os continentes. Seu Soubhi, palestino; Seu Ali, sírio; meu Pai, libanês, e por aí árabes de todas as nacionalidades se irmanavam na causa.

Nos anos 1970, logo depois da eternização do grande líder árabe Abdel Nasser, era comum entre os imigrantes árabes se reunirem ora na loja de um, ora na casa de outro, enfim, de uma forma fraternal e muito solidária. Num desses convites, em horário comercial [até porque meu Pai era dono de uma pensão e trabalhava até dez da noite, não podendo sair de casa por conta dos hóspedes, em sua maioria turistas europeus e estadunidenses que atravessavam a Bolívia rumo a Cuzco, na chamada Rota do Sol, caminho dos Incas] o grupo de Amigos (além dos Senhores Ali e Soubhi, os Senhores Mohamad Bazzi, ‘Abu Kamel’, da Casa das Flores; Kablan Hamdan, da Casa Ramallah, e Emílio Sayeg, da Casa Brasil) tem seu primeiro contato com uma publicação, em árabe e inglês, da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), chamada ‘Falastin Thawra’, da qual se tornam assinantes.

No início da década de 1980, quando das reuniões para a fundação da SOBENCO (Sociedade Beneficente Muçulmana de Corumbá), árabes de todas as nacionalidades estavam unidos em torno dessa nova entidade, de finalidade beneficente e cultural. Lá estava o mesmo grupo, mas já sem a participação dos senhores Bazzi e Sayeg, que retornaram ao Líbano por razões familiares, e em seu lugar chegaram os Senhores Ale Hamie e Adam Taha, entre um número bem maior de membros da Comunidade Árabe de Corumbá e de Ladário. E a resiliente participação do Senhor Ali El Seher era uma constante, como o fora enquanto foi vizinho da Mesquita da Fé, situada em frente à sua residência, na Rua Delamare.

Em toda manifestação de solidariedade ao Povo Palestino, lá estava Seu Ali presente. Sua maneira de ser única o tornava cativante e confortador. Quando o mundo inteiro foi vítima da propaganda sionista-colonial, durante as chamadas ‘revoluções coloridas’ -- entre elas a nefasta ‘primavera árabe’, que nada tinha de primavera e muito menos de árabe --, sua bravura e determinação, de modo solitário, o revelou um eloquente defensor da República da Síria, o último bastião da resistência árabe ao sionismo, que como câncer se espalha pelo mundo com a mesma voracidade das pragas impiedosas. Toda semana ele oferecia ao leitor do Correio de Corumbá, durante o tempo em que pôde fazê-lo, antíteses firmes e corajosas contra a propaganda reinante em toda a imprensa corporativa.

Dessa mesma forma, seu comportamento como Pai e Companheiro de Vida foi inspirador, pois não só incentivou todos os Filhos para estudar, como os preparou para uma sociedade muito diferente da sua, e hoje, como gaivotas a voarem muito alto, lhe proporcionou uma realização do tamanho daquele gigante de palavras doces e olhar meigo. Foram tantas décadas em que esse imigrante sírio que fez de Corumbá seu Paraíso na Terra que a sua eternização deixa um vazio impossível de ser preenchido nas próximas gerações. Porque Seu Ali é único e insubstituível, em todas as dimensões humanas.

Tanto é verdade, que a sensível e atenta escritora corumbaense Ana Lucia Almeida Dichoff o tornou eterno por meio de um livro-vídeo com a participação de um descendente de sírio como Salim Haqzan e de um imigrante palestino como Omar Faris. Coisa que somente em Corumbá acontece: em Vida e desinteressadamente uma escritora capta a percepção de um emblemático imigrante que povoou o cotidiano cosmopolita corumbaense durante décadas. Uma homenagem repleta de humanidade e sensibilidade que permitiu que ‘Logo Ali’ abrisse uma nova perspectiva para muitos contemporâneos que, mesmo encontrando e ‘cruzando’ o tempo todo com ele pelas ruas, nunca se haviam apercebido do conteúdo humano nesse transitar fortuito.

No dizer do grande escritor libanês [mas sírio no tempo em que viveu] Gibran Khalil Gibran, “a simplicidade é o último degrau da sabedoria”. Pois, com essa simplicidade sábia e todo o tempo presente, Seu Ali El Seher sobreviveu, viveu e conviveu com a maestria do doutos e a singeleza dos peregrinos, a espalhar amor e esperança entre os seus contemporâneos, como tantos semelhantes que povoaram a Corumbá de todos os povos, todos os sonhos e todas as lutas [e aqui peço licença ao querido Amigo e Professor Valmir Batista Corrêa, autor do livro cujo título é ‘Corumbá, terra de sonhos e lutas’, já em segunda edição, e Amigo de Seu Ali desde que chegara ao coração do Pantanal, no início da década de 1970].

Não conseguindo me despedir pessoalmente dele, repetirei o modo com que fazia questão de se referir a mim quando nos encontrávamos, sempre casualmente: “Ya khol [ô Irmão], Você é feliz pelas raízes que tem: segue em frente, porque nunca está sozinho...” Sou eu quem diz agora, e não para meramente citá-lo, mas por saber que sua Família não estará sozinha jamais, eis que as suas raízes são profundas e sábias. De eterno Flamenguista, e terno Sírio Corumbaense. Até sempre, Seu Ali El Seher, e obrigado por ter existido!

Ahmad Schabib Hany

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