Quinze anos de saudade da Peregrina de doce olhar
Neste 15 de junho completam-se 15 anos de saudade
infinita da Peregrina de doce olhar. Uma ausência doída e eterna, em que o
tempo apenas atenua o que é impossível de apagar. Em sua homenagem, republico a
homenagem feita há cinco anos.
Dona Yoya, em seus dez anos de eternidade
15 de junho de 2009, seis horas e cinquenta minutos,
em um dos apartamentos do hospital da Unimed de Campo Grande. Dona Yoya, nossa
Mãe -- progenitora de nada menos que nove filhos vivos: seis mulheres e três
homens --, dá seu último suspiro sobre o leito em que permaneceu por
aproximadamente uma semana, da mesma forma como viveu, estoica e discretamente.
Uma mulher que não se valeu de sua prole para justificar qualquer
acovardamento: ao contrário, soube lutar com toda a dignidade e coragem, até
para despertar entre seus filhos a altivez com que pautou sua Vida.
A Irmã que a assistiu diuturnamente, por ser médica
e bastante resiliente, disse que esboçara um discreto sorriso, num misto de
gratidão e alívio. Talvez fosse o seu modo de se despedir e ao mesmo tempo
induzir estímulo para continuar a luta. Tanto para Dona Yoya como para Seu
Schabib, nosso Pai, a Vida foi um chamado à resistência, à luta, não para
abocanhar vantagens ou conquistas fáceis, mas para, com dignidade e ética,
assumir grandes causas sem abandonar as obrigações de Pais responsáveis (desses
com letra maiúscula).
Nascida em 11 de março de 1926, em plena Amazônia
boliviana (San Joaquín de las Aguas Dulces, no Departamento de Beni), Wadia Al
Hany Ascimani, desde tenra idade chamda de Yoya (tida por segunda mãe de seus
Irmãos), era a segunda filha nascida viva de dez filhos do casal constituído
pelo dentista libanês Youssef Al Hany e a jovem senhora Guadalupe Ascimani de
Hany, boliviana de Pai libanês. Além do gosto pela costura e o cuidado com a
Família, Dona Yoya herdara da Mãe o autodidatismo, pois, com as limitações
impostas às mulheres no início do século XX, ler e escrever em casa era
exigência mínima que se fazia às mulheres emancipadas.
Dona Guadalupe Ascimani de Hany, nossa saudosa Avó
(com letra maiúscula), viveu intensamente o século XX em todas as suas
profundas transformações. Não sem propósito, costumava advertir as filhas
menores, que não tiveram sorte com seus respectivos companheiros -- como foi o
caso da Tia Nena, May Teresa Hany de Paz, falecida há um ano e meio, a despeito
de sua formação em odontologia, igual ao nosso Avô Youssef Al Hany, num tempo
em que ser dentista na Bolívia profunda implicava em salvar vidas tal qual
médico de campanha. Leitora de clássicos da literatura universal, Dona
Guadalupe questionava as filhas por não terem sabido escolher bem seu
pretendente: como eu, nascida e criada em um povoado com menos de cinco mil
habitantes, pude me casar com um Doutor jovem, bonito e culto, enquanto vocês,
com todos os estudos e currículo, só encontraram seres medíocres, sem qualquer
atributo e destituídos de companheirismo?
Além da saúde física e psicológica para criar,
educar e formar nove filhos em condições adversas, Dona Yoya tirou de seu âmago
uma capacidade de resistência que se forjou numa luta interminável desde 1960,
ano em que enfrentou praticamente sozinha, uma crise econômica sem precedentes
na Bolívia da Revolução de Abril de 1952, quando já estava casada e com três
filhos nascidos e um por nascer (dois meninos e duas meninas). Como nosso Pai
era perseguido por sua atuação no jornalismo político e na intelectualidade de
Cochabamba, nossa Mãe ousou desafiar milícias xenófobas que ameaçavam mulheres
sozinhas em nome de um bizarro patriotismo, coisa que em nossos dias aflorou em
território deste país-continente, em que o ódio toma conta da racionalidade e a
violência sem precedentes toma conta de nosso cotidiano desesperador.
Primeiro no Líbano, para onde partimos de trem e
depois de barco no início da década de 1960 em oito irmãos (a caçula nascera no
Líbano dois anos depois) com nossos Pais, terra-natal do hoje saudoso Seu
Schabib, mas que por razões de sobrevivência precisou se deslocar para a África
a fim de cobrir jornalisticamente os movimentos de emancipação da Argélia,
Líbia e Sudão (além do Egito, então República Árabe Unida, liderada pelo
saudoso líder pan-arabista Gamal Abdel Nasser). Assim como na Bolívia de Victor
Paz Estenssoro, no Líbano de Fuad Chehab (sob influência de Camile Chamoun)
Dona Yoya soube fazer frente às investidas dos gendarmes que tentavam intimidar
seu Companheiro e sua Família: além de ter granjeado a amizade de familiares
que só conheceu quando foi para a terra dos ancestrais de seu Pai e do Pai de
sua Mãe, os familiares de seu cônjuge fizeram de tudo para que permanecêssemos
lá, mas a acuidade política de Seu Schabib já detectava a guerra civil
fratricida que viria a eclodir uma década depois para destruir o país.
A escolha de Corumbá, no coração da América do Sul
não foi casual: tratava-se de lutar pela sobrevivência num novo país, mas sem
perder os vínculos com a Bolívia, em cujo território não só se encontravam
vivos os Pais de Dona Yoya mas também a conclusão dos estudos dos filhos mais
velhos. No entanto, o ciclo militar da história política da Bolívia
(1964-1982), em que sucessivos golpes ensanguentaram o povo boliviano, acabou
provocando uma tragédia familiar, que foi a morte aos 25 anos, em
circunstâncias não elucidadas, de nosso Irmão mais velho, Mohamed Schabib Hany.
De todas as adversidades enfrentadas em Vida, essa por certo foi a mais
traumática e irreparável, razão pela qual toda a nossa Família tem “nojo e ódio
à ditadura” (nas sábias palavras de Ulysses Guimarães).
A maturidade precoce e uma sabedoria inesgotável
fizeram de nossa Mãe a discreta guerreira, determinada em seus generosos
propósitos e ao mesmo tempo uma solidária companheira em todos os momentos de
sua prole, que a partir de meados da década de 1980 dá início à segunda
geração, com a chegada do(a)s neto(a)s ao longo de duas décadas: Igor, Luana,
Janen, Hanen, Neder, Pedro, Dunia, Omar e Sofia. Não pôde conhecer a caçulinha
dos netos e os primogênitos dos bisnetos, o Nícolas e a Iara (Filhos de Igor e
Fernanda), mas cujo legado por certo guiará todos os descendentes como fonte
inspiradora de caráter inatacável, temperado na incansável lide de emigrantes
peregrinos que cruzaram oceanos, percorreram continentes, abriram horizontes e
semearam generosos ideais.
Com Dona Yoya e Seu Schabib é que aprendemos desde
tenra idade que a humanidade é uma só, e que para o mundo se tornar melhor nós
precisamos ser melhor desde nosso interior. Mais que um exemplo concreto, eis
uma razão de ser, sobretudo nestes nada generosos tempos. Mas que os levaremos
sempre conosco, como as gratas recordações de sua presença em nossas vidas...
Ahmad Schabib Hany
2 comentários:
Belas palavras, amigo Armad Schabib, imensas saudades das boas conversas com Dona Yoya (sempre de cigarro na mão) e Don Schabib (sempre com uma resposta, intelectualmente, preparada, inda que, pra vc, nem sempre convinsente). Um aprendizado inesquecível.
Mais um belo e humano texto, amigo Shabib, estou reescrevendo, creio que o anterior não foi. Grandes e maravilhosos momentos de longas e agradáveis conversas com Don Schabib e Dona Yoya (de cigarro na mão), ambos com raciocínio rápido, e vc sempre disposto a discordar ( na minha avaliação, apenas para sugar mais conteúdo ainda).
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