Companheira do saudoso
Professor José Carlos Abrão, a Professora Vera Lúcia Santos Abrão, também
pioneira do então Centro Pedagógico de Corumbá, eternizou-se no dia 14 de
junho, 14 meses depois de seu Companheiro de Vida e de Ofício.
Mais que Companheira de Vida e de Ofício do
saudoso Professor José Carlos Abrão, pioneiro na docência e pesquisa no extinto
Centro Pedagógico de Corumbá, a Professora Vera Lúcia Santos Abrão fez da
disciplina de Geografia uma ciência com a qual não apenas combateu o
obscurantismo e a desigualdade na sociedade, mas ajudou a construir sólidas
carreiras docentes e de pesquisa em diversas instituições, localidades e
classes sociais.
Ao se eternizar, a 14 de junho, 14 meses depois de
seu Companheiro de Vida, luta e ofício, a Professora Vera Abrão entra para o
Memorial dos Pioneiros da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) -- criada
no segundo governo do Presidente Lula --, em distinção ao legado de incansável
Docente e Pesquisadora da Ciência Geográfica no então Centro Universitário de
Dourados da UFMS, onde trabalhou na implantação do curso de Geografia e pelo
livre acesso a obras proibidas pelo regime obscurantista de 1964.
Esse reconhecimento consta, acompanhado de relatos
da generosidade e empenho em diversos episódios, do e-book Sob a proteção
das deusas Clio, Gaia, Atena e Psiquê: a Faculdade de Ciências Humanas da UFGD
em narrativas, obra de 2023 organizada
pelos Professores Marisa de Fátima Lomba de Farias e Conrado Neves Sathler, em
várias páginas, sobretudo nas de números 85, 96, 97, 98, 99 e 101.
“No
processo de democratização da sociedade brasileira, a Geografia se fez crítica
e a professora Vera Santos Abrão tem registro assegurado na memória e nesse
Memorial. Pelas suas mãos chegaram as leituras, vindas dos muitos lançamentos
editoriais do período; as ‘teorias novas’ podendo ser debatidas na transição do
regime militar e o texto traduzido (em cópia datilografada), ‘A geografia, serve,
antes de mais nada, para fazer a guerra’, se faria leitura obrigatória em 1986
(...)” Professora Silvana de Abreu, 1993, em sua dissertação de Mestrado “Uma
análise da noção de espaço e sociedade do professor de Geografia do 1º grau:
formação, discurso e prática”, pela UFMS, citada na referida obra coordenada
pelos Professores Marisa de Fátima Lomba de Farias e Conrado Neves Sathler, na
página 101.
Depois de aposentados da
UFMS, os Professores José e Vera se mudaram para Ribeirão Preto, sua
cidade-natal, onde trabalharam em algumas universidades particulares, antes de
se mudar para a capital paulista, onde se eternizaram depois de enfrentar as
doenças que os abateram impiedosamente. Do período em que, em Ribeirão Preto,
foi docente do Centro Universitário Barão de Mauá, o seu então orientando na
pesquisa para o trabalho de conclusão de curso de graduação, hoje Professor
Mestre Luís Guilherme Maturano, fez importante registro na introdução de sua
dissertação de mestrado, “O
conceito de Paisagem no ensino de Geografia: reflexão acerca dos Currículos”, pela USP de Ribeirão Preto, em 2019:
“Apesar das
comparações dicotômicas entre ciência geográfica e geografia escolar,
compreendemos por meio da experiência ao longo da profissão docente que existe
um caminho amplo no campo da investigação que possam analisá-las. Nesse
sentido, esta dissertação procura apresentar aspectos históricos da Geografia acadêmica
e escolar. / O desejo de desenvolver tal temática já foi, de um jeito ou de
outro, iniciado e averiguado na elaboração do trabalho de conclusão de curso
(Licenciatura Plena em Geografia),
intitulado ‘O processo de produção da ciência geográfica: análise
teórico-metodológica’, sob a orientação da Professora Mestre Vera Lúcia Santos
Abrão, apresentado em sessão pública, no ano de 2OO9, no Centro Universitário ‘Barão
de Mauá’.”
Vera Lúcia e José Carlos Abrão chegaram no início
da década de 1970 a
Corumbá para dar aula no recém-criado Instituto Superior de Pedagogia, mais
tarde transformado em Centro Pedagógico de Corumbá, uma das unidades
descentralizadas da Universidade Estadual de Mato Grosso (CPC/UEMT). Ela
geógrafa e ele pedagogo, ambos formados pela Universidade de São Paulo (USP),
em seu campus de Ribeirão Preto, nos tensos anos de repressão e de perseguição
a quem ousasse utilizar autores e obras consideradas ‘subversivas’.
Ao lado de outras e outros
colegas -- entre eles Gilberto Luiz Alves, Valmir Batista Corrêa, Masao
Uetanabaro, Lúcia Salsa Corrêa, Kati Eliana Caetano, Gisela Angelina Levatti,
José Luiz Finocchio, Wilson Ferreira de Mello, Carlos Alberto Patusco, José
Carlos Françolin, Leonides Justiniano e Octaviano Gonçalves da Silveira Jr. --,
trazidos em sua maioria pelo Médio e Professor Salomão Baruki, à época
vice-reitor da UEMT e diretor do CPC, Vera e José Abrão se dedicaram a
construir as grades curriculares de todas as graduações com base nas da USP,
bem como a elevar o nível das ementas, sempre tendo como referência as
universidades de vanguarda do País, a despeito da ‘caça às bruxas’ existente
então.
Em uma época em que UEMT
não dispunha sequer de plano de cargos e carreiras, em razão da precocidade da
instituição e dos tempos cruentos vividos no País, os Professores Vera e José
Carlos Abrão não deixaram de aprimorar seus conhecimentos e, mesmo tendo que
bancar os custos de sua pós-graduação na USP (a uma distância de mais de mil
quilômetros entre Corumbá e São Paulo), o fizeram sem pedir afastamento
remunerado à instituição, concentrando as aulas em vindas periódicas a Corumbá,
além de trazer obras de autores de ponta para a biblioteca do CPC no afã de
elevar o nível de formação de seus alunos.
Nesse contexto, o casal
Abrão participou de pesquisas bibliográficas e de campo pioneiras e da criação
da publicação acadêmica Dimensão, cuja logomarca e capa
de vanguarda foram concebidas pelo Arquiteto e Professor José Sebastião Candia,
até hoje procurada como referência para uma série de citações de pesquisa em
diferentes campos da ciência. Além disso, empreenderam esforços para a criação
de espaços para grupos de estudo, tal como o Centro de Estudos Históricos
Ricardo Franco, em parceria com os compadres Lúcia e Valmir Corrêa.
Lembro-me da atenção dos
‘Professores de fora’, quando, em 1973, ainda aluno ginasiano a frequentar a
biblioteca do CPC, sob o zeloso cuidado da querida Aidê Varela, então aluna de
Pedagogia e que mais tarde passou no concurso do Banco do Brasil e acabou
deixando o CPC. À procura de livros que descrevessem o Renascimento ocidental,
os Professores José e Vera Abrão nos auxiliaram até encontrarmos o volume 1 de “História
da Civilização Ocidental”, de Edward Mc. Neil Burns, cuja pesquisa foi possível
graças ao assessoramento qualificado do gentil casal de docentes.
Onze anos depois, quando
vim a Corumbá para participar e cobrir para o extinto Jornal da
Manhã (e enviar material para
um amigo do jornalão que existe até hoje) a realização do VI Seminário de
Ensino, Pesquisa e Extensão (SEPE) da UFMS, tive a honra e o prazer de
reencontrar diversos Professores que haviam solicitado remoção a outros campi, entre
eles o casal Abrão. Nessa época, o Professor Arnaldo Sakamoto se debruçava
sobre a grade curricular do curso de Geografia, previsto para ser oferecido
pelo CEUC em 1985.
Antes de concluir,
agradeço com penhor à querida Professora Kati Eliana Caetano, sempre atenta aos
Amigos e ex-colegas com quem conviveu e trabalhou em Corumbá, responsável pela
triste, mas necessária informação. Aliás, a Professora Kati só não pôde ter
sido minha Professora de Linguística no curso de Letras por estar em
licença-maternidade quando do nascimento da querida Mariana, sua Filha mais
velha, nascida em Corumbá.
Até sempre, Professora
Vera Abrão! Seu legado, sua alegria de viver e desafiar os grotões da ditadura
militar e, sobretudo, de se dedicar à construção de uma Geografia libertária e
uma sociedade melhor, discretamente ao lado de seu eterno Companheiro de Vida,
Ofício e luta, Professor José Abrão, palpitam vivos e intensos na mente e nos
corações dos que tiveram a felicidade e o privilégio de conviver e compartilhar
de sua generosa práxis.
Ahmad
Schabib Hany
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