50 anos do sangrento golpe contra
Allende
Pela Rádio Bandeirantes, a voz
embargada do Jornalista Newton Carlos, perplexo, narrava ao vivo o sangrento
golpe militar contra Salvador Allende, o primeiro presidente socialista eleito
na América do Sul.
Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973. O mundo
assiste, perplexo e consternado, ao mais sangrento e brutal golpe militar
cometido em solo sul-americano, em um país cuja democracia era até então inabalável.
O La Moneda, palácio presidencial, foi bombardeado impiedosamente por aviões da
força aérea, no afã de entregar o serviço aos
seus amos de Washington, cujo sinal (além do pagamento em dólares, pela
transnacional da telefonia ITT) havia sido dado dias antes por Richard Nixon (o
mesmo do Caso Watergate) e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, aliás, Heinz Alfred Kissinger, alemão
ex-nazista (existe ‘ex’?) naturalizado estadunidense depois de fugir, com
Werner Von Braun (o ‘pai’ da tecnologia espacial dos Estados Unidos) e outros,
e levar segredos nazistas para se garantir no poder no ocidente.
Pelas ondas da Rádio Bandeirantes, ouvíamos a
narração, com a voz embargada, do analista e Jornalista Newton Carlos, enviado
especial ao Chile desde a véspera do golpe. Apesar da censura e do apoio
declarado do general-presidente Emílio Garrastazu Médici aos militares
golpistas chilenos capitaneados por seu colega Augusto Pinochet, até então comandante
do exército chileno, o eterno Newton Carlos (colaborador de O Pasquim e da agência Inter Press
Service, IPS, por meio da qual prestou um grande serviço ao Jornalismo de
Análise em toda a América Latina) soube driblar a censura e transmitir fidedignamente
a resistência da sociedade civil chilena.
O sanguinário Pinochet não estava só na sórdida
traição: sob estreito monitoramento da CIA e do Departamento de Estado no
governo Nixon, além dos comandantes das forças armadas e da polícia militar
chilena, empresários e segmentos privilegiados da sociedade chilena conspiraram
contra o Estado de Direito no Chile, motivo de orgulho dos chilenos em todo o
mundo. Até então, o Chile e o México se gabavam por acolher exilados inclusive
perseguidos da Europa durante as ditaduras nefastas de Adolf Hitler, Benito
Mussolini, António Salazar e Francisco Franco, dos quais os discípulos chilenos
(e outros golpistas latino-americanos) são seu continuísmo.
Com a brutalidade de facínoras nazifascistas
cultivada desde a juventude, essas bestas-feras, monstros que usaram armas
pesadas contra civis, em sua imensa maioria sem o preparo para lutar em
trincheiras meticulosamente espalhadas pelas principais cidades do país andino,
executaram nas vias públicas, em plena luz do dia, quem atravessasse seu
percurso. Não pouparam mulheres em tenra idade e idosas, religiosos, escritores
(como o Poeta Pablo Neruda, já idoso e doente, Prêmio Nobel de Literatura),
compositores (como Victor Jara, autor de ‘Te recuerdo Amanda’, cujos verdugos
foram condenados dias atrás, depois de 50 anos de impunidade) e familiares de
ativistas políticos, como se o fato de ser parente de dirigentes políticos
justificasse uma sentença marcial.
A cobertura da Rádio Bandeirantes, sob a condução de
Newton Carlos (o sinal da Rede Bandeirantes de Televisão ainda não tinha
chegado ao estado, então Mato Grosso) era tão
fidedigna, que quando chegavam os jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e La Paz
com as imagens (transmitidas por belinógrafo como radiofoto ou telefoto) eram
confirmados os fatos narrados pelas ondas de rádio. Consternação e
incredulidade tomavam conta dos que acompanhavam o cotidiano latino-americano,
que então tinham como contraponto ao obscurantismo fascista a esperança
existente no Oceano Pacífico, com destaque para o Chile e o México.
Truculentos até com o entretenimento, submeteram à
censura ferrenha a emblemática revista Condorito,
de criação de Pepo, desenhista chileno que fez escola nos países de língua
hispânica, ao lado do argentino Quino (o célebre criador de Mafalda) e do
espanhol Francisco Ibáñez (criador de Mortadelo e Salaminho, em espanhol ‘Mortadelo
y Filemón’). Durante as décadas de 1970 e 1980, a ditadura chilena, que
mantinha estreito vínculo com as ditaduras do ‘Cone Sul’ (Argentina, Brasil,
Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai), realizou diversas operações repressivas transfronteiriças,
um crime que ainda não foi devidamente punido pelos tribunais internacionais.
Na famigerada ‘Operação Condor’, da qual o
inominável (e agora inelegível) disse ser simpatizante, Pinochet e seus
sequazes disponibilizaram diversos campos de extermínio, onde os corpos de
vítimas da repressão das ditaduras latino-americanas foram descartados da
maneira mais sórdida e aviltante. A impunidade ainda protege os carrascos
chilenos, como muitos nos demais países, à exceção da Argentina, que, graças às
Mães de Maio e à altivez do povo argentino, todos os comandantes militares e
seus comparsas civis foram condenados em sentenças históricas, depois de
realizados os trabalhos da Comissão da Verdade, sob a coordenação do pensador e
ativista dos Direitos Humanos Adolfo Pérez Esquivel, por isso Prêmio Nobel da
Paz em 1980.
O Chile, durante o governo de Michele Bachelet e
agora com Gabriel Boric, timidamente retoma o resgate da memória dos mártires
da democracia chilena, mas a resistência dos setores castrenses inspira
prudência, como em outros países latino-americanos. A Bolívia ainda não
conseguiu concluir os processos judiciais dos envolvidos nos crimes de lesa
humanidade e lesa pátria durante as ditaduras de René Barrientos, Hugo Banzer,
García Meza e Jeanine Áñez. Igualmente o Brasil, depois do golpe travestido de
impeachment contra Dilma Rousseff, não mais retomou os trabalhos da Comissão da
Verdade, e muitos suspeitos de envolvimento em crimes de lesa-humanidade estão
impunes e por isso com a empáfia de se considerarem inatingíveis, posando de ‘patriotas’.
A História tem demonstrado, a propósito, que,
senão a Justiça, o tempo, esse senhor da razão, se encarrega de desmascarar as
farsas, ou, melhor, de despir o rei, ainda que isso ocorra em eras em que os
protegidos pela impunidade não estejam de corpo presente para ouvir a sentença
inevitável. Um deles foi Filinto Müller, que tentou de todas as formas impedir
que o jornalista David Nasser publicasse seu emblemático livro ‘Falta alguém em
Nuremberg’, de 1966, início da segunda ditadura a que ele serviu. Não
conseguiu, e ainda que fosse o todo-poderoso nos anos de chumbo (inclusive
contra muitos getulistas que o protegeram na ditadura do estado novo), nunca
conseguiu ser governador de seu próprio estado, o de Mato Grosso.
Ahmad
Schabib Hany