Foto: Ricardo Stuckert (Presidência da República)
Prêmio
Camões: Chico Buarque, Presidente Lula, Presidente Marcelo e Ministra Margareth
Chico Buarque honra a inteligência brasileira
Com atraso de quatro anos, o Prêmio Camões conquistado por Chico Buarque finalmente foi entregue ao compositor e escritor, que dignifica a inteligência brasileira.
Em 2019, quando Chico Buarque foi contemplado com o Prêmio Camões, o maior e mais importante da comunidade dos países de fala portuguesa, era inimaginável o momento vivido em abril de 2023, véspera dos 49 anos da Revolução dos Cravos. O Presidente Lula, ao lado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em Portugal, assinando e entregando o diploma ao compositor e escritor mais perseguido pelos nefastos ditadores da América Latina e décadas depois pelos seus peçonhentos, ignorantes e canastrões viúvos e órfãos, igualmente nefastos.
O inominável, movido pela bílis (não se sabe se o pâncreas está em sua caixa craniana ou se o que equivaleria a cérebro se encontra em suas vísceras), se recusou a participar do ato solene de entrega em Portugal no primeiro ano de seu longuíssimo e tenebroso (des) governo. Prestou, mesmo que involuntariamente, algum serviço à cultura e um favor ao grande compositor, que nos anos em que seus ídolos reinavam numa terra sem lei nem piedade precisou criar um codinome, Julinho da Adelaide, com o qual celebrizou duas canções memoráveis: ‘Acorda Amor’ e ‘Jorge Maravilha’.
‘Acorda Amor’ retrata com a genialidade do inimitável Chico a angústia de ser apanhado pelos mandarins e suas bestas feras: “Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão ...” (Julinho da Adelaide, isto é, Chico Buarque, 1974.)
‘Jorge Maravilha’ faz um deboche com o então general-presidente Ernesto Geisel, cuja filha era fã declarada de Chico: “Tem nada como um tempo após um contratempo / O meu coração / E não vale a pena ficar / Apenas ficar / Chorando, resmungando / Até quando não, não / E como já dizia Jorge Maravilha / Prenhe de razão / Mais vale uma filha na mão / Do que dois pais voando / Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta / Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta ...” (Julinho da Adelaide, isto é, Chico Buarque, 1979.)
Autor ou coautor de, entre outras, ‘A Banda’, ‘Sabiá’, ‘Luciana’, ‘Apesar de Você’, ‘Cálice’, ‘Canção para a Unidade da América Latina’, ‘Caro Amigo’, ‘João e Maria’, ‘Construção’, ‘Calabar’, ‘Funeral de um Lavrador’, ‘Gente humilde’ e ‘Ópera do Malandro’. Genial e criativo, Chico fez parceria com compositores igualmente brilhantes, como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Ruy Guerra, Edu Lobo, Carlos Lyra, Toquinho, Pablo Milanés, Sivuca, Garoto, Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Cabral de Melo Neto.
Musicou o poema (na verdade, toda a peça de Melo Neto) ‘Funeral de um lavrador’, que desde o início é melancólica: “Esta terra em que estás / Com palmos medida / É a conta menor que tiraste em vida / É a conta menor que tiraste em vida / É de bom tamanho / Nem largo nem fundo / É a parte que te cabe deste latifúndio / É a parte que te cabe deste latifúndio ...” Pôs letra em uma música trinta anos mais velha, a pedido de seu autor, Sivuca, que ele chamou de João e Maria: “Agora eu era o herói / E meu cavalo só falava inglês / A noiva do cowboy / Era você além das outras três / Eu enfrentava os batalhões / Os alemães e seus canhões / Guardava o meu bodoque / E ensaiava o rock para as matinês ...”
‘Apesar de Você’ e ‘Cálice’ (esta em parceria com Gilberto Gil) se converteram em verdadeiros hinos à liberdade: “Hoje você é quem manda / Falou ’tá falado / Não tem discussão, não / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / O perdão / Apesar de Você / Amanhã há de ser outro dia ...” (Chico, 1978.) “Pai, afasta de mim esse cálice / Pai, afasta de mim esse cálice / Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue / Pai, afasta de mim esse cálice, Pai / Afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue / Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor, engolir a labuta / Mesmo calada a boca, resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta / De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta / Tanta mentira, tanta força bruta ...” (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1978.)
‘Canção para a Unidade da América Latina’, em parceria com Pablo Milanés, celebra o momento de maior desejo de integração dos nossos povos explorados e separados, pela estratégia colonial, de ‘dividir para dominar’, que se inicia em espanhol e encerra em português: “El nacimiento del mundo se aplazó por un momento / Un breve lapso del tiempo, del Universo un segundo / Sin embargo, parecía que todo se iba a acabar / Con la distancia mortal que separó nuestras vidas / Realizaron na labor de desunir nuestras manos / Y a pesar de ser hermanos nos miramos con temor / Cuando pasaron los años se acumularon rencores / Se olvidaron los amores, parecíamos extraños / Qué distancia tan sufrida, qué mundo tan separado / Jamás hubiera encontrado sin aportar nuevas vidas / Esclavo por una parte, servil criado por la otra / Es lo primero que nota el último por desatarse / Explotando esta misión de verlo todo tan claro / Un día se vio liberado por esta revolución / Esto no fue buen ejemplo para otros por liberar / La nueva labor fue aislar bloqueando toda experiencia / Lo que brilla con luz propia nadie lo puede apagar / Su brillo puede alcanzar la oscuridad de otras cosas / E quem garante que a História é carroça abandonada / Numa beira de estrada ou numa estação inglória / A História é um carro alegre cheio de um povo contente / Que atropela indiferente todo aquele que a negue ...” (Pablo Milanés e Chico Buarque, 1976.)
Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda (e sobrinho do ‘dono’ do mais importante dicionário brasileiro, o lexicólogo Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, tanto que ‘Aurélio’ virou sinônimo de dicionário), Francisco Buarque de Holanda, ou simplesmente Chico Buarque, compositor e escritor de extraordinária elegância, singular criatividade. Ainda que o ‘jabá’ das gravadoras sertanejas (irmãs siamesas do agro, desgraçadamente) teime em impor uma censura sórdida e tirânica, a MPB (música popular brasileira) e sua obra generosa e crítica existem e resistem graças às raízes do genial Povo Brasileiro. Mas Chico Buarque não ficou só na música, mas fez diversas peças teatrais, como ‘Calabar’ e ‘Ópera do Malandro’, além de ter se dedicado nas últimas décadas a escrever romances, como ‘Estorvo’, ‘Budapeste’, ‘Chapeuzinho Amarelo’, ‘Fazenda Modelo’ e ‘Essa gente’.
Em um País de genialidades ignoradas acintosamente pelos que se julgam ‘donos’ desde os tempos da colonização europeia, dos quais a memória coletiva é refém, ou melhor, foi sequestrada, e certas camadas da população padecem de uma amnésia seletiva, por meio da qual as elites canhestras manipulam os pretensos ‘crasse mé(r)dia’, aqueles que comem farofa e arrotam caviar. Enquanto toda a América hispânica tinha Universidades para a preparação de suas elites (ainda que muitas servis aos interesses coloniais), o país só pôde contar com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como edícula do palácio imperial de Dom Pedro II, na terceira década do século XIX (tendo como foco ser uma monarquia, branca, católica e ‘ordeira’), daí por que a população foi privada de sua própria História e de suas raízes culturais.
Mas Chico Buarque coroou sua discografia, em parceria com Ruy Guerra, com ‘Tanto Mar’, em homenagem à Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura sanguinária de António Salazar, aliado de Adolf Hitler e Benito Mussolini. “Foi bonita festa, pá / Fiquei contente / Ainda guardo renitente / Um velho cravo para mim / Já murcharam tua festa, pá / Mas certamente / Esqueceram uma semente / Em um canto de jardim / Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar ...” (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1974.)
Realizada a entrega do Prêmio, não por acaso, na véspera do 49º aniversário da Revolução dos Cravos, Lula e Chico Buarque se referiram aos versos de ‘Tanto Mar’ em sua saudação ao altivo Povo Português, que fez da República de Portugal uma nação digna de sua soberania histórica, distante do tempo dos reinos coloniais que ficaram no passado e no saudosismo dos ultradireitistas que, como os daqui, cultuam o atraso, as ruínas e a intolerância a amesquinhar os destinos da humanidade.
Ahmad Schabib Hany