Na
terra de Manoel de Barros como não termos Letras?
O Poeta Manoel de Barros mal se
eternizou e a cidade que povoou seu fértil imaginário na infância pode abrir
mão do curso de Letras (Espanhol / Inglês)? Ainda mais, fazendo fronteira com a
Bolívia e o Paraguai, dois países hispanofalantes? O que está por trás desse
projeto de ‘suspensão temporária’ do ingresso de novas turmas de alunos,
atribuída à necessidade de preservar o nível das licenciaturas?
Era março de 1978 quando adentrei a
uma sala de aula do bloco C da atual Unidade 1 do então Centro Pedagógico de
Corumbá da Universidade Estadual de Mato Grosso (CPC / UEMT) para assistir à
primeira aula do primeiro semestre da licenciatura em Letras. As aulas, de 50
minutos, eram vespertinas, com início às 13 horas, e o titular da disciplina de
Linguística I era o Professor José Carlos Françolin, que não demorou muito para
se tornar um verdadeiro Amigo -- jovem, vindo do interior de São Paulo,
colocava-se à disposição de todos os alunos para sanar as muitas dúvidas em
razão do ineditismo da ementa para recém-saídos do à época segundo grau
profissionalizante.
Embora ainda vivêssemos os anos de chumbo
do regime de 1964 -- eu mesmo, havia menos de quatro anos, perdido, em
circunstâncias nunca esclarecidas, meu Irmão mais velho, aluno dos últimos semestres
de Psicologia --, o então CPC era um ambiente de excelência, de fazer inveja
aos congêneres de Aquidauana, Dourados, Três Lagoas e até de Campo Grande, que
se preparava para se tornar sede de governo do novo estado. Referência nas
licenciaturas, os docentes do CPC iam aos recônditos do Mato Grosso uno ministrar
cursos compactos e permitir a formação acadêmica de professores até então
leigos, bem como aproximadamente 20% das vagas eram oferecidas a estudantes de
convênio cultural oriundos da Bolívia e de outros países, inclusive Cabo Verde,
na África.
Assim como a licenciatura de História
dispunha do emblemático Centro de Estudos Históricos Ricardo Franco, a de
Letras tinha um centro embrionário de Linguística, cujos desdobramentos não
pude acompanhar por ter-me mudado para Campo Grande em fins de 1978, véspera da
instalação da ‘Nova Cap’, no dizer de um dos ex-docentes, o Professor Octaviano
Gonçalves da Silveira Junior, que para lá se mudara dois anos antes. Além do
Professor Françolin, tínhamos a Professora Kati Eliana Caetano (que naquele semestre
tirara licença-maternidade), a Professora Maria Auxiliadora Puccini, o saudoso
Padre João (que nos dava as memoráveis aulas de Latim, e no Santa Teresa era o
titular de Física, um gentleman), a Professora
Wilma Teixeira e a Professora Angélica Baruki.
A querida Marlene Terezinha Mourão
(nossa Peninha) e o saudoso Seu Hélio eram do Multimeios, setor responsável
pela gestão do equipamento de apoio para as aulas, como retroprojetor,
fotocópia e aparelho de som. Na biblioteca, que depois ganharia o nome do Poeta
Manoel de Barros, a titular era a querida Haidê, que mais tarde passou no
concurso do Banco do Brasil e deixou a UEMT. Num tempo em que não havia
internet, a biblioteca era disputada por todos -- afinal, o acervo
bibliográfico era extraordinário e os jovens ávidos de conhecimento passavam
horas para fazer o fichamento de capítulos inteiros para apresentar nos
seminários.
Não posso deixar de reconhecer que
foi no breve período em que enveredei no universo de Letras do CPC que tive
conhecimento do extraordinário Poeta Manoel de Barros. A então jovem estudante
Heloísa Helena da Costa Urt, nossa querida e saudosa Helô, havia ajudado na
preparação da Semana de Letras e um dos pontos altos fora a obra do eterno lapidador
de versos e fidedigno intérprete da complexa simplicidade humana. Nessa época
os cursos de Letras e História eram os que detinham a vanguarda do movimento
estudantil, não por acaso a Helô foi uma memorável dirigente do aguerrido
Diretório Acadêmico Dom Aquino Corrêa (DADAC).
Mesmo cursando História em Campo
Grande, em toda vinda a Corumbá, por breves dias, acompanhava as intensas
atividades dos cursos de História e Letras. Uma das iniciativas memoráveis foi
o Seminário de Ensino Pesquisa e Extensão (SEPES), em que a obra de Manoel de
Barros foi um dos principais temas na área de Letras, em sua edição de 1984.
Não foram poucos os estudos desenvolvidos sobre o emblemático ‘conterrâneo’
cuja infância fértil foi fecundada com a exuberância pantaneira (as aspas
decorrem do fato de ele ter nascido em Cuiabá e na idade adulta ter fixado
residência em Campo Grande).
Mais tarde, em fins da década de
1990, quando o Professor João Bortolanza desenvolveu um projeto de extensão em
que eram oferecidos cursos de idiomas à comunidade, tive a oportunidade de
testemunhar a amplitude do curso e o impacto social obtido por uma
aparentemente simples iniciativa: o curso de Letras, então, teve oportunidade
de sediar um evento único no Brasil com o hoje saudoso poeta mexicano Moisés
Rodríguez Patiño, cuja obra bilíngue foi editada e lançada em Corumbá, a “Dama
Misteriosa”, em 1998. Discentes da UFMS e de algumas escolas públicas locais
interpretaram alguns poemas e o querido Amigo-Irmão Aníbal Carlos Monzón, na
época um dos professores do curso de extensão em Espanhol, se incumbiu da
produção da noite de lançamento do livro.
Quando de minha passagem pelo CPAN
como professor substituto de História, entre 2014 e 2016, tive a grata
experiência de ministrar a disciplina de Educação para as Relações
Étnico-Raciais a alunos de Letras, além da sorte de reencontrar um querido
Amigo-Irmão da década de 1980 -- o Professor Doutor Julio Xavier Galharte,
também substituto (apesar do doutorado e da inquietude genial) --, que
generosamente me proporcionou a memorável oportunidade de participar de um
colóquio sobre a obra de Manoel de Barros e que se transformou na magistral
obra “Baú de Barro(s): ensaios sobre a poética de Manoel de Barros” (Pontes
Editores, 2019).
Antes de encerrar meu contrato com a
UFMS, apresentei dois projetos de extensão para contribuir de alguma forma para
a valorização do curso de História (ao qual era vinculado), mas que pode ser
adaptado a todos os cursos de licenciatura (e até a alguns bacharelados), bem
como para o reconhecimento do próprio CPAN como instituição pública e gratuita
para a formação profissional de excelência. Passados seis anos, além de não ver
qualquer iniciativa constante desses projetos (ou mesmo outras com igual
objetivo), pasmamo-nos com uma decisão questionável, desvinculada de qualquer debate
transparente com a população por meio da sociedade organizada, nos diferentes
segmentos sociais e econômicos. Até por se tratar de uma instituição pública
que precisa interagir com a coletividade para a qual se destina, de modo
articulado e público.
Daí a indagação, que me permito com certa
dose de indignação: por que suspender o ingresso de novas turmas de alunos do
curso de Letras (Espanhol / Inglês) na cidade em que Manoel de Barros passou a
infância e povoou seu fecundo imaginário? Na terra de Lobivar de Matos, Pedro
de Medeiros, Renato Báez, Rubens de Castro, Augusto César Proença e Marlene
Terezinha Mourão, entre outros não menos importantes, que devem ser estudados e
conhecidos? Logo na emblemática fronteira com a Bolívia e o Paraguai, dois
países hispanofalantes com os quais há uma intensa interação cultural, social e
econômica e cuja produção literária de excelência deve ser estudada?
O que, afinal, está por trás de um
projeto como esse? Embora se diga o contrário, o fato público e notório é que a
suspensão temporária de um curso em nada contribui para sua elevação de nível.
Um esplendoroso centro urbano cosmopolita que já perdeu de tudo não pode abrir
mão de um dos cursos mais antigos e importantes do Instituto Superior de
Pedagogia, de 1968, anterior à criação da Universidade Estadual de Mato Grosso,
da qual a UFMS é sucedânea. Sob o argumento de não haver docentes para
assegurar nível de excelência, é temerário encerrar por quatro anos o ingresso
de novas turmas de alunos, quando há verdadeira liberalidade na remoção de docentes
concursados para outros campi, sobretudo Campo Grande, sem a manutenção das
vagas originais de docentes do CPAN.
Ahmad
Schabib Hany
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