segunda-feira, 8 de agosto de 2022

NA TERRA DE MANOEL DE BARROS COMO NÃO TERMOS LETRAS?

Na terra de Manoel de Barros como não termos Letras?

O Poeta Manoel de Barros mal se eternizou e a cidade que povoou seu fértil imaginário na infância pode abrir mão do curso de Letras (Espanhol / Inglês)? Ainda mais, fazendo fronteira com a Bolívia e o Paraguai, dois países hispanofalantes? O que está por trás desse projeto de ‘suspensão temporária’ do ingresso de novas turmas de alunos, atribuída à necessidade de preservar o nível das licenciaturas?

Era março de 1978 quando adentrei a uma sala de aula do bloco C da atual Unidade 1 do então Centro Pedagógico de Corumbá da Universidade Estadual de Mato Grosso (CPC / UEMT) para assistir à primeira aula do primeiro semestre da licenciatura em Letras. As aulas, de 50 minutos, eram vespertinas, com início às 13 horas, e o titular da disciplina de Linguística I era o Professor José Carlos Françolin, que não demorou muito para se tornar um verdadeiro Amigo -- jovem, vindo do interior de São Paulo, colocava-se à disposição de todos os alunos para sanar as muitas dúvidas em razão do ineditismo da ementa para recém-saídos do à época segundo grau profissionalizante.

Embora ainda vivêssemos os anos de chumbo do regime de 1964 -- eu mesmo, havia menos de quatro anos, perdido, em circunstâncias nunca esclarecidas, meu Irmão mais velho, aluno dos últimos semestres de Psicologia --, o então CPC era um ambiente de excelência, de fazer inveja aos congêneres de Aquidauana, Dourados, Três Lagoas e até de Campo Grande, que se preparava para se tornar sede de governo do novo estado. Referência nas licenciaturas, os docentes do CPC iam aos recônditos do Mato Grosso uno ministrar cursos compactos e permitir a formação acadêmica de professores até então leigos, bem como aproximadamente 20% das vagas eram oferecidas a estudantes de convênio cultural oriundos da Bolívia e de outros países, inclusive Cabo Verde, na África.

Assim como a licenciatura de História dispunha do emblemático Centro de Estudos Históricos Ricardo Franco, a de Letras tinha um centro embrionário de Linguística, cujos desdobramentos não pude acompanhar por ter-me mudado para Campo Grande em fins de 1978, véspera da instalação da ‘Nova Cap’, no dizer de um dos ex-docentes, o Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, que para lá se mudara dois anos antes. Além do Professor Françolin, tínhamos a Professora Kati Eliana Caetano (que naquele semestre tirara licença-maternidade), a Professora Maria Auxiliadora Puccini, o saudoso Padre João (que nos dava as memoráveis aulas de Latim, e no Santa Teresa era o titular de Física, um gentleman), a Professora Wilma Teixeira e a Professora Angélica Baruki.

A querida Marlene Terezinha Mourão (nossa Peninha) e o saudoso Seu Hélio eram do Multimeios, setor responsável pela gestão do equipamento de apoio para as aulas, como retroprojetor, fotocópia e aparelho de som. Na biblioteca, que depois ganharia o nome do Poeta Manoel de Barros, a titular era a querida Haidê, que mais tarde passou no concurso do Banco do Brasil e deixou a UEMT. Num tempo em que não havia internet, a biblioteca era disputada por todos -- afinal, o acervo bibliográfico era extraordinário e os jovens ávidos de conhecimento passavam horas para fazer o fichamento de capítulos inteiros para apresentar nos seminários.

Não posso deixar de reconhecer que foi no breve período em que enveredei no universo de Letras do CPC que tive conhecimento do extraordinário Poeta Manoel de Barros. A então jovem estudante Heloísa Helena da Costa Urt, nossa querida e saudosa Helô, havia ajudado na preparação da Semana de Letras e um dos pontos altos fora a obra do eterno lapidador de versos e fidedigno intérprete da complexa simplicidade humana. Nessa época os cursos de Letras e História eram os que detinham a vanguarda do movimento estudantil, não por acaso a Helô foi uma memorável dirigente do aguerrido Diretório Acadêmico Dom Aquino Corrêa (DADAC).

Mesmo cursando História em Campo Grande, em toda vinda a Corumbá, por breves dias, acompanhava as intensas atividades dos cursos de História e Letras. Uma das iniciativas memoráveis foi o Seminário de Ensino Pesquisa e Extensão (SEPES), em que a obra de Manoel de Barros foi um dos principais temas na área de Letras, em sua edição de 1984. Não foram poucos os estudos desenvolvidos sobre o emblemático ‘conterrâneo’ cuja infância fértil foi fecundada com a exuberância pantaneira (as aspas decorrem do fato de ele ter nascido em Cuiabá e na idade adulta ter fixado residência em Campo Grande).

Mais tarde, em fins da década de 1990, quando o Professor João Bortolanza desenvolveu um projeto de extensão em que eram oferecidos cursos de idiomas à comunidade, tive a oportunidade de testemunhar a amplitude do curso e o impacto social obtido por uma aparentemente simples iniciativa: o curso de Letras, então, teve oportunidade de sediar um evento único no Brasil com o hoje saudoso poeta mexicano Moisés Rodríguez Patiño, cuja obra bilíngue foi editada e lançada em Corumbá, a “Dama Misteriosa”, em 1998. Discentes da UFMS e de algumas escolas públicas locais interpretaram alguns poemas e o querido Amigo-Irmão Aníbal Carlos Monzón, na época um dos professores do curso de extensão em Espanhol, se incumbiu da produção da noite de lançamento do livro.

Quando de minha passagem pelo CPAN como professor substituto de História, entre 2014 e 2016, tive a grata experiência de ministrar a disciplina de Educação para as Relações Étnico-Raciais a alunos de Letras, além da sorte de reencontrar um querido Amigo-Irmão da década de 1980 -- o Professor Doutor Julio Xavier Galharte, também substituto (apesar do doutorado e da inquietude genial) --, que generosamente me proporcionou a memorável oportunidade de participar de um colóquio sobre a obra de Manoel de Barros e que se transformou na magistral obra “Baú de Barro(s): ensaios sobre a poética de Manoel de Barros” (Pontes Editores, 2019).

Antes de encerrar meu contrato com a UFMS, apresentei dois projetos de extensão para contribuir de alguma forma para a valorização do curso de História (ao qual era vinculado), mas que pode ser adaptado a todos os cursos de licenciatura (e até a alguns bacharelados), bem como para o reconhecimento do próprio CPAN como instituição pública e gratuita para a formação profissional de excelência. Passados seis anos, além de não ver qualquer iniciativa constante desses projetos (ou mesmo outras com igual objetivo), pasmamo-nos com uma decisão questionável, desvinculada de qualquer debate transparente com a população por meio da sociedade organizada, nos diferentes segmentos sociais e econômicos. Até por se tratar de uma instituição pública que precisa interagir com a coletividade para a qual se destina, de modo articulado e público.

Daí a indagação, que me permito com certa dose de indignação: por que suspender o ingresso de novas turmas de alunos do curso de Letras (Espanhol / Inglês) na cidade em que Manoel de Barros passou a infância e povoou seu fecundo imaginário? Na terra de Lobivar de Matos, Pedro de Medeiros, Renato Báez, Rubens de Castro, Augusto César Proença e Marlene Terezinha Mourão, entre outros não menos importantes, que devem ser estudados e conhecidos? Logo na emblemática fronteira com a Bolívia e o Paraguai, dois países hispanofalantes com os quais há uma intensa interação cultural, social e econômica e cuja produção literária de excelência deve ser estudada?

O que, afinal, está por trás de um projeto como esse? Embora se diga o contrário, o fato público e notório é que a suspensão temporária de um curso em nada contribui para sua elevação de nível. Um esplendoroso centro urbano cosmopolita que já perdeu de tudo não pode abrir mão de um dos cursos mais antigos e importantes do Instituto Superior de Pedagogia, de 1968, anterior à criação da Universidade Estadual de Mato Grosso, da qual a UFMS é sucedânea. Sob o argumento de não haver docentes para assegurar nível de excelência, é temerário encerrar por quatro anos o ingresso de novas turmas de alunos, quando há verdadeira liberalidade na remoção de docentes concursados para outros campi, sobretudo Campo Grande, sem a manutenção das vagas originais de docentes do CPAN.

Ahmad Schabib Hany

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