terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O SEGUNDO SEPULTAMENTO DO PROFESSOR OTAVIANO



O SEGUNDO SEPULTAMENTO DO PROFESSOR OTAVIANO

Um ano depois da inusitada decisão da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul de fechar a Escola Estadual Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Junior, em Campo Grande, os/as ex-alunos/as do patrono do educandário consideram a medida um segundo sepultamento, desta vez de sua memória e razão de ser, a educação.

Condenável e descabida a decisão sorrateira da Secretaria de Estado de Educação (SED), de fechar a Escola Estadual Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Junior, sem aviso prévio, depois de realizadas as rematrículas dos/as alunos/as para o ano letivo de 2019, e nada mencionar sobre o que vinha sendo cogitado durante o período eleitoral, em que o atual governador se elegera no segundo turno com pequena diferença. Essa medida, se discutida como a lei e a liturgia administrativa recomendam, teria dificultado a reeleição de Reinaldo Azambuja. Na Educação, o planejamento é imprescindível, no entanto, a medida veio no sentido contrário, de tocaia, por causa das eleições.

Criada no ano em que seu patrono faleceu, a referida escola existiu por exatos 19 anos, no Lar do Trabalhador, em Campo Grande. O ato de criação, pela então secretária de Estado de Educação no derradeiro governo do Doutor Wilson Barbosa Martins, Professora Maria Maciel, homenageou o saudoso docente universitário, ex-diretor escolar e competente professor de Língua Portuguesa e Literatura de escolas públicas e privadas. Em Campo Grande foi professor de diversos cursos preparatórios para o vestibular, como o extinto Galeno, o Objetivo-Dom Bosco e o Anglo-Mace (Moderna Associação Campo-grandense de Ensino), chefe de gabinete do reitor João Pereira da Rosa, da então Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), e, já como Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), do reitor Edgard Zardo, além de diretor do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) e do Centro Universitário de Dourados (CEUD, embrião da atual Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD) e assessor de Comunicação Social do saudoso reitor Jair Madureira, responsável pela criação do curso de Comunicação Social da UFMS, em 1988.

A vida efêmera para uma escola que desde os primeiros anos se destacou pela inovação, bons resultados e, sobretudo, projeção de alunos/as de excelência se confunde com a trajetória do Professor (desses com letra maiúscula) Otaviano, que mesmo se destacando onde quer que estivesse a Vida acabou levando-o a lugares inimagináveis e situações inusitadas. Para os que tiveram a sorte e o privilégio de tê-lo como docente, décadas atrás, o súbito fechamento do educandário que meritoriamente levava o seu nome (a ponto de inspirar seu corpo docente, comprovadamente constituído de profissionais comprometidos com a Educação e de indiscutível visão cidadã) representa um segundo sepultamento desse ser humano singular que escolhera Campo Grande quando ainda sequer se imaginava que viesse a ser a capital de uma nova unidade da federação.

Oriundo da capital paulistana, onde nasceu, estudou, lecionou e viveu intensamente a metrópole cosmopolita das décadas de 1940, 1950 e 1960, o Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Junior (1932 – 1998) chegou a Corumbá, então município do Mato Grosso uno, em fins de 1973. Além do profundo conhecimento em diversas áreas, sobretudo nas Ciências Humanas, o emblemático professor trazia consigo sua nova companheira de vida, muitas esperanças e inebriado de amor, que logo lhe proporcionou dois filhos homens: João Francisco, nascido em Corumbá, e Paulo Henrique, nascido em Campo Grande.

Foram dois anos e meio de permanência em Corumbá, tempo suficiente para despertar admiração e respeito entre seus contemporâneos. Além de ter trabalhado como professor em duas escolas públicas (as escolas estaduais Júlia Gonçalves Passarinho e Santa Teresa, esta última, da Missão Salesiana de Mato Grosso, conveniada à secretaria de Educação e Cultura do antigo Mato Grosso), foi docente universitário no então Centro Pedagógico de Corumbá, o CPC (um dos campi da à época UEMT, com sede em Campo Grande) e sócio-proprietário do “Esquema”, primeiro curso pré-vestibular da região, em sociedade com o igualmente saudoso Professor Habib Metran, responsável pela aprovação em diversas universidades federais, estaduais e privadas de futuros/as médicos/as, odontólogos/as, professores/as, psicólogos/as, engenheiros/as, assistentes sociais, advogados/as etc.

Admirado e respeitado, sim, mas também segregado, a despeito de sua inquestionável competência, generosidade e excelência. Embora comedido, o Professor Otaviano não passava despercebido por sua erudição, elegância e desenvoltura. Ao optar por morar em uma cidade do porte de Corumbá do início da década de 1970 (algo em torno de 69 mil habitantes, a terceira em população do estado e a primeira em arrecadação do Imposto de Circulação de Mercadorias, então ICM) depois de ter sido respeitado docente universitário e diretor de um influente colégio judaico na capital paulistana, para poder entregar-se a seu grande amor já em idade madura, determinara-se uma vida modesta e discreta a extremo. Ainda que dissessem que possuía laços com altas esferas do regime de 1964, por causa de seu progenitor e homônimo, coronel da Polícia Militar de São Paulo, ele era alvo de desconfianças e constrangimentos nos restritivos meios sociais, dominados então por serviçais da ditadura.

Como alunos/as do período vespertino da Escola Estadual Julia Gonçalves Passarinho, eu e os/as queridos/as Amigos/as João de Souza Alvarez, Juvenal Ávila de Oliveira, Benedito Jesus Silva da Cruz e a hoje saudosa Maria Bernadete da Cruz Benites, em 1974, surpreendemo-nos com ele, não apenas pela habilidade e competência no exercício da docência, mas pela receptividade, cordura e generosidade no relacionamento com os/as alunos/as. Declaradamente corintiano (sua Variant cor abóbora tinha no vidro traseiro um timão superlativo, contrastando com sua discrição profissional), recebia em casa os/as alunos/as que o procurassem por quais motivos fossem. Nas diversas vezes que “invadi” sua modesta moradia para levar-lhe textos para revisão, muitos dos quais com opinião diametralmente oposta às dele, jamais demonstrou qualquer contrariedade, pelo contrário, sempre cordial e receptivo, um verdadeiro “gentlemen”, não inglês, mas paulistano, como gostava de ser reconhecido desde que aportou às terras pantaneiras, já em discreta decadência, processo que se acentuou com a desastrosa divisão do Pantanal Mato-grossense, fato hoje irrefutável diante da sucessão de ações arbitrárias e destituídas do necessário bom-senso e da sinceridade democrática.

Além de ter incentivado atividades extracurriculares, como um jornal interescolar (o saudoso “O Clarim Estudantil”, de vida efêmera, por conta dos tempos difíceis em que vivíamos) e um ciclo de palestras-debate com profissionais universitários de diferentes perfis (para ajudar na escolha pelos/as alunos/as da gama de cursos universitários), o Professor Otaviano promovia debates por meio de dissertações (como são chamadas as redações em que o/a aluno/a emite opinião sobre o tema proposto) e interpretações com temas instigantes (“A corrida espacial versus a fome no mundo”, ou poesias censuradas como “Roda-viva”, de Chico Buarque de Holanda, “E agora, José”, de Carlos Drummond de Andrade, ou “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes).

Mais que mero Professor (insisto: com letra maiúscula), foi um incentivador de talentos e ampliador de horizontes num tempo em que cometer essa ousadia tinha um elevado custo -- a própria Vida --, como ocorreu com muitos/as contemporâneos/as dele pelo Brasil afora. Como uma luz a cintilar intensamente, ainda que de modo efêmero (afinal, o que são 19 anos para uma escola pública com o nível dessa que não conheci pessoalmente, mas testemunhei pelas redes sociais suas iniciativas e conquistas, dignas do patrono que o acaso lhe propiciou?), o Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Junior é mais uma vez silenciado, mas, por certo, não demorará para, como uma fênix, teimosa e generosamente, nos dar o ar de sua graça por meio desses/as professores/as desassossegados/as e dos/as alunos/as dos 8 aos 80 (e uns) anos (como o Senhor Wilson Gomes, na verdade hoje com 90 anos, que entre 2008 e 2010 cursou o EJA do ensino médio, quando fez o bonito testemunho “Por que escolhi esta escola”, a seguir).

Ahmad Schabib Hany




POR QUE ESCOLHI ESTA ESCOLA

“Todo ser humano necessita evoluir enquanto estiver vivendo. Quem não evolui, passa todo tempo da sua vida na obscuridade, trabalha contra si próprio.

“Existe uma lei de causa e efeito que resulta na realidade da vida. Ninguém pode ter razão de se lamuriar do destino ingrato que o castiga sadicamente, se outrora deixou que a vida passasse docemente.

“O que me levou a escolher esta Escola para estudar não foi propriamente voluntária, porque eu tinha procurado matrícula em outras, mas logo que aqui cheguei, fui recebido com amabilidade e ainda me perguntaram se era para meu neto.

“Ficaram admirados, mas me aceitaram como aluno. Estou contente, pois os professores são muito dedicados e educados. A escola que eu desejo terminar o ensino médio é esta mesmo. Aqui há respeito e educação.”

Depoimento: Senhor Wilson Gomes (80 anos em 2009) – Aluno da 2ª fase – Ensino médio. (Extraído das redes sociais de ex-integrantes do inesquecível educandário.)

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