O SEGUNDO SEPULTAMENTO DO PROFESSOR OTAVIANO
Um
ano depois da inusitada decisão da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso do Sul de fechar a Escola Estadual Professor Otaviano Gonçalves da
Silveira Junior, em Campo Grande, os/as ex-alunos/as do patrono do educandário
consideram a medida um segundo sepultamento, desta vez de sua memória e razão
de ser, a educação.
Condenável e descabida a decisão sorrateira da
Secretaria de Estado de Educação (SED), de fechar a Escola Estadual Professor
Otaviano Gonçalves da Silveira Junior, sem aviso prévio, depois de realizadas
as rematrículas dos/as alunos/as para o ano letivo de 2019, e nada mencionar
sobre o que vinha sendo cogitado durante o período eleitoral, em que o atual
governador se elegera no segundo turno com pequena diferença. Essa medida, se
discutida como a lei e a liturgia administrativa recomendam, teria dificultado a reeleição de Reinaldo
Azambuja. Na Educação, o planejamento é imprescindível, no entanto, a medida
veio no sentido contrário, de tocaia, por causa das eleições.
Criada no ano em que seu patrono faleceu, a
referida escola existiu por exatos 19 anos, no Lar do Trabalhador, em Campo
Grande. O ato de criação, pela então secretária de Estado de Educação no
derradeiro governo do Doutor Wilson Barbosa Martins, Professora Maria Maciel,
homenageou o saudoso docente universitário, ex-diretor escolar e competente
professor de Língua Portuguesa e Literatura de escolas públicas e privadas. Em
Campo Grande foi professor de diversos cursos preparatórios
para o vestibular, como o extinto Galeno, o Objetivo-Dom
Bosco e o Anglo-Mace (Moderna Associação Campo-grandense de Ensino), chefe de
gabinete do reitor João Pereira da Rosa, da então Universidade Estadual de Mato
Grosso (UEMT), e, já como Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), do reitor Edgard Zardo, além de diretor do Centro
de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) e do Centro Universitário de Dourados
(CEUD, embrião da atual Universidade Federal
da Grande Dourados, UFGD) e assessor de Comunicação Social do
saudoso reitor Jair Madureira, responsável pela criação do curso de Comunicação
Social da UFMS,
em 1988.
A vida efêmera para uma escola que desde os
primeiros anos se destacou pela inovação, bons resultados e, sobretudo,
projeção de alunos/as de excelência se confunde com a trajetória do Professor
(desses com letra maiúscula) Otaviano, que mesmo se destacando onde quer que
estivesse a Vida acabou
levando-o
a lugares inimagináveis e situações inusitadas. Para os que tiveram a sorte e o
privilégio de tê-lo como docente, décadas atrás, o súbito fechamento do
educandário que meritoriamente levava o seu nome (a ponto de inspirar seu corpo
docente, comprovadamente constituído de profissionais comprometidos com a
Educação e de indiscutível visão cidadã) representa um segundo sepultamento
desse ser humano singular que escolhera Campo Grande quando ainda sequer se
imaginava que viesse a ser a capital de uma nova unidade da federação.
Oriundo da capital paulistana, onde nasceu,
estudou, lecionou e viveu intensamente a metrópole cosmopolita das décadas de
1940, 1950 e 1960, o Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Junior (1932 –
1998) chegou a Corumbá, então município do Mato Grosso uno, em fins de 1973.
Além do profundo conhecimento em diversas áreas, sobretudo nas Ciências
Humanas, o emblemático professor trazia consigo sua nova companheira de vida,
muitas esperanças e inebriado de amor, que logo lhe proporcionou dois filhos
homens: João Francisco, nascido em Corumbá, e Paulo
Henrique, nascido em Campo Grande.
Foram dois anos e meio de permanência em Corumbá,
tempo suficiente para despertar admiração e respeito entre seus contemporâneos.
Além de ter trabalhado como professor em duas escolas públicas (as escolas
estaduais Júlia Gonçalves Passarinho e Santa Teresa, esta última, da Missão
Salesiana de Mato Grosso, conveniada à secretaria de Educação e Cultura do
antigo Mato Grosso), foi docente universitário no então Centro Pedagógico de
Corumbá, o CPC (um dos campi da à época UEMT, com sede em Campo Grande) e sócio-proprietário
do “Esquema”, primeiro curso pré-vestibular da região, em sociedade com o
igualmente saudoso Professor Habib Metran, responsável pela aprovação em
diversas universidades federais, estaduais e privadas de futuros/as médicos/as,
odontólogos/as, professores/as, psicólogos/as, engenheiros/as, assistentes
sociais, advogados/as etc.
Admirado e respeitado, sim, mas também segregado, a
despeito de sua inquestionável competência, generosidade e excelência. Embora
comedido, o Professor Otaviano não passava despercebido por sua erudição,
elegância e desenvoltura. Ao optar por morar em uma cidade do porte de Corumbá
do início da década de 1970 (algo em torno de 69 mil habitantes, a terceira em
população do estado e a primeira em arrecadação do Imposto de Circulação de
Mercadorias, então ICM) depois de ter sido respeitado docente universitário e
diretor de um influente colégio judaico na capital paulistana, para poder
entregar-se a seu grande amor já em idade madura, determinara-se uma vida
modesta e discreta a extremo. Ainda que dissessem que possuía laços com altas
esferas do regime de 1964, por causa de seu progenitor e homônimo, coronel da
Polícia Militar de São Paulo, ele era alvo de desconfianças e constrangimentos
nos restritivos
meios sociais, dominados então por serviçais da ditadura.
Como alunos/as do período vespertino da Escola
Estadual Julia Gonçalves Passarinho, eu e os/as queridos/as Amigos/as João de
Souza Alvarez, Juvenal Ávila de Oliveira, Benedito Jesus Silva da Cruz e a hoje
saudosa Maria Bernadete da Cruz Benites, em 1974, surpreendemo-nos com ele, não
apenas pela habilidade e competência no exercício da docência, mas pela
receptividade, cordura e generosidade no relacionamento com os/as alunos/as.
Declaradamente corintiano (sua Variant cor abóbora tinha no vidro traseiro um timão superlativo,
contrastando com sua discrição profissional), recebia em casa os/as alunos/as
que o procurassem por quais motivos fossem. Nas diversas vezes que “invadi” sua
modesta moradia para levar-lhe textos para revisão, muitos dos quais com
opinião diametralmente oposta às dele, jamais demonstrou qualquer
contrariedade, pelo contrário, sempre cordial e receptivo, um verdadeiro
“gentlemen”, não inglês, mas paulistano, como gostava de ser reconhecido desde
que aportou às terras pantaneiras, já em discreta decadência, processo que se
acentuou com a desastrosa divisão do Pantanal Mato-grossense, fato hoje
irrefutável diante da sucessão de ações arbitrárias e destituídas do necessário
bom-senso e da sinceridade democrática.
Além de ter incentivado atividades
extracurriculares, como um jornal interescolar (o saudoso “O Clarim Estudantil”, de vida efêmera,
por conta dos tempos difíceis em que vivíamos) e um ciclo de palestras-debate
com profissionais universitários de diferentes perfis (para ajudar na escolha
pelos/as alunos/as da gama de cursos universitários), o Professor Otaviano
promovia debates por meio de dissertações (como são chamadas as redações em que
o/a aluno/a emite opinião sobre o tema proposto) e interpretações com temas
instigantes (“A corrida espacial versus
a fome no mundo”, ou poesias censuradas como
“Roda-viva”, de Chico Buarque de Holanda, “E agora, José”, de
Carlos Drummond de Andrade, ou “Rosa de
Hiroshima”, de Vinícius de Moraes).
Mais que mero Professor (insisto: com letra
maiúscula), foi um incentivador de talentos e ampliador de horizontes num tempo
em que cometer essa ousadia tinha um elevado custo -- a própria Vida --, como
ocorreu com muitos/as
contemporâneos/as
dele pelo Brasil afora. Como uma luz a cintilar intensamente, ainda que de modo
efêmero (afinal, o que são 19 anos para uma escola pública com o nível dessa
que não conheci pessoalmente, mas testemunhei pelas redes sociais suas
iniciativas e conquistas, dignas do patrono que o acaso lhe propiciou?), o Professor Otaviano
Gonçalves da Silveira Junior é mais uma vez silenciado, mas, por certo, não
demorará para, como uma fênix, teimosa e generosamente, nos dar o ar de sua graça
por meio desses/as professores/as desassossegados/as e dos/as alunos/as dos 8 aos 80 (e uns) anos (como o Senhor Wilson Gomes, na
verdade hoje com 90 anos, que entre 2008 e 2010 cursou o EJA do ensino médio,
quando fez o bonito testemunho “Por que escolhi esta escola”, a seguir).
Ahmad Schabib Hany
POR QUE ESCOLHI ESTA ESCOLA
“Todo ser humano necessita evoluir enquanto estiver
vivendo. Quem não evolui, passa todo tempo da sua vida na obscuridade, trabalha
contra si próprio.
“Existe uma lei de causa e efeito que resulta na
realidade da vida. Ninguém pode ter razão de se lamuriar do destino ingrato que
o castiga sadicamente, se outrora deixou que a vida passasse docemente.
“O que me levou a escolher esta Escola para estudar
não foi propriamente voluntária, porque eu tinha procurado matrícula em outras,
mas logo que aqui cheguei, fui recebido com amabilidade e ainda me perguntaram
se era para meu neto.
“Ficaram admirados, mas me aceitaram como aluno.
Estou contente, pois os professores são muito dedicados e educados. A escola
que eu desejo terminar o ensino médio é esta mesmo. Aqui há respeito e
educação.”
Depoimento: Senhor Wilson Gomes (80 anos em 2009) –
Aluno da 2ª fase – Ensino médio. (Extraído das redes sociais de ex-integrantes
do inesquecível educandário.)
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