Dona
Cerise, protagonista à frente de seu tempo
A eternização da Senhora Cerise
de Campos Barros, semana passada, nos abalou profundamente. Mais que incansável
Cidadã, a querida Dona Cerise inspirou as melhores atitudes a muitos de seus
contemporâneos.
A Senhora Cerise Delfina de Campos Barros, do alto
de sua humildade solidária, foi mais que incansável Cidadã à frente de seu
tempo: foi Mestra modesta e discreta da magnitude de sua integridade. E é dessa
dimensão o vazio que causa a sua eternização, depois de enfrentar com
estoicismo a doença que a consumiu física, mas não animicamente.
Embora tivesse ouvido do Amigo Armando Lacerda,
por diversas vezes, sobre o caráter e a generosidade de sua querida Sogra, que
para ele era como Mãe, fui conhecê-la pessoalmente por meio da querida Irmã
Antônia Brioschi, diretora do saudoso GENIC, quando estávamos no processo de
construção e legitimação do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de
Corumbá e Ladário, entre 1993 e 1994. Sua transferência ocorreria em meados de 1995.
Quando a Irmã Antônia, coordenadora provisória do
primeiro Espaço Público Não Estatal do interior do Brasil, me revelou com certa
anterioridade sobre a sua transferência para Água Clara (Mato Grosso do Sul), me apresentou a então vice-presidente da
Liga das Senhoras Católicas da Diocese de Corumbá (entidade mantenedora do
Asilo São José da Velhice Desamparada, a primeira denominação da entidade),
início de 1994.
Discreta, humilde e
detentora de uma sabedoria gigante, Dona Cerise me disse que preferia ser
chamada apenas pelo nome. Pedi desculpas, mas disse que não conseguiria, pois
ela era a verdadeira Mestra para todos nós. Com emblemático sorriso, me
consentiu, então, manter a minha reverência por ela. Era marcante a sua
discrição, com a qual chegava a todos os meios, não só de Corumbá e de Ladário,
mas no estado e em Mato Grosso, seu estado natal.
Sua humildade era
espontânea. Não se permitia soslaios, e em seu proceder a sinceridade era o
alicerce de sua caminhada. Passos firmes, seguros, mas com a leveza de uma alma
generosa e liberta de protocolos. Uma verdadeira Cristã, com letra maiúscula.
Sua solidariedade era incondicional, como sua Amizade: feliz os que ao longo de
sua iluminada existência tiveram a sorte e o privilégio de partilhar com ela um
sentimento espontâneo, forte como o seu caráter.
Quando a conheci, entre
1993 e 1994, as reuniões eram áridas e extremamente meticulosas no âmbito do
que viria a ser o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais, até porque
a então Promotora de Justiça (depois Procuradora) Doutora Sara Francisco da
Silva, solicitara muita objetividade e transparência na formação daquele
coletivo de entidades regionais. A Doutora Sara, à medida da disponibilidade de
tempo permitido, costumava aparecer de surpresa, afinal o Ministério Público
era o responsável pela fiscalização do processo de escolha dos membros dos
futuros conselhos de políticas públicas, ainda em construção.
Dona Cerise era a
vice-presidente da saudosa e igualmente querida Dona Julieta Nemir Marinho,
gigantes à frente do Asilo São José. Incansável, era a primeira a chegar às
reuniões e última a sair. Nunca reclamou do tempo ou de eventuais divagações de
colegas de entidades coirmãs, receosas de mudanças decorrentes da Constituição
Federal de 1988. Porque a extinção da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e
de fundos a ela vinculados causou certa preocupação aos dirigentes de entidades
assistenciais em todo o país.
À frente de seu tempo, Dona Cerise não se abalava.
Ela dizia que todas as suas iniciativas tinham sustentabilidade porque não
estavam condicionadas às fontes oficiais, muito disputadas pelas entidades. Sempre
recorrera ao livro-de-ouro e ao bazar para alavancar ações, em que pessoas de
seu círculo familiar e de amizade davam suporte quando necessário. Mas sempre
pensou coletivamente: solidária e entusiasticamente estava, lado a lado, com
todas as pessoas que atuavam naquele segmento. Nada de competição, mas
cooperação, sempre.
Credibilidade e reputação são marcas indeléveis de
todo o seu proceder, tanto à frente da entidade que dirigiu por décadas como de
tantas outras iniciativas, sobretudo dentro da Igreja Católica, da qual foi
protagonista de emblemáticas iniciativas existentes até a atualidade. Diversas
iniciativas, como no Cenáculo da Rosa Mística, era a mentora pioneira e
querida. Muito querida.
É luz. Inspiração. Ainda que sua discrição
tipicamente pantaneira estivesse indissociável de seu comportamento, o devir
dos dias, a convivência afetiva e sincera, fez com que sua presença fosse
crescendo naturalmente. O amor que irradiava a tornava imprescindível. Sua
espontaneidade, única. Dias depois de ter perdido nosso saudoso Pai, ela nos fez
uma visita, memorável, que muito nos ajudou a reparar aquela dor da ausência.
Como quando celebrávamos meu casamento, lá estava ela, discreta e
luminosamente, desta vez ao lado de Dona Marli, a Companheira de Vida do Amigo
Armando Lacerda. Sempre irradiando energias positivas para a Vida. Isso fiz
questão de lhe dizer quando a encontrei numa das edições do Festival América do
Sul, com Omar e Sofia já nascidos.
Dona Cerise é das Amigas que levo para a Vida. Um
presente que a Vida me deu e, obviamente, do convívio do querido Amigo Armando
Lacerda, discreto como ela, e de Dona Marli, por quem tenho também um grato e
sincero afeto, pois ela tem a felicidade de ter em seu DNA essa marca generosa
e sincera da Matriarca que foi protagonista à frente de seu tempo.
E neste momento de profunda dor pela ausência de
uma Gigante como é Dona Cerise, nossa modesta e sincera fé-irradiação de muito
Amor, Luz e, sobretudo, Sabedoria, com os quais Dona Cerise contribuiu copiosa
e incansavelmente para mitigar as contradições de uma sociedade insensível e um
mundo tacanho.
Obrigado, Dona Cerise, por ter existido e
insistido por uma humanidade utópica em que sejamos Irmãos e construtores de
nosso porvir a despeito de tamanha injustiça, indiferença e ganância a campearem
soltas. Até sempre, Dona Cerise, Mestra da Solidariedade, Generosidade e
Sinceridade!
Ahmad
Schabib Hany
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