quarta-feira, 30 de outubro de 2024

OUVIDOS MOUCOS

Ouvidos moucos

Em tempo: Chaves nada tem com a personagem do humor mexicano e Aquino muito menos com o governador mato-grossense do início do século XX.

Porto de Burácom, ano de 1024 de Nosso Senhor Jesus Cristo. No ocidente, Idade Média; na Arábia, Iluminismo. Chaves, 40 anos mais velho que Aquino, apercebe-se que passara desesperadoramente à toa os melhores dias de sua existência a formar os mais novos com base nos Clássicos, que de todas as formas possíveis ‘traduzira’ para melhor compreensão das novas gerações, mesmo tendo conhecido o trágico fim de Sócrates, cuja condenação o fez tomar cicuta por ‘perversão’ de jovens incautos nas ‘perigosas’ searas do saber.

Não que os usurpadores do poder terrenal e celestial não conhecessem o rico legado grego milênio antes. Os mosteiros estavam repletos de obras ‘pagãs’ e ‘heréticas’, tomadas de incautos descumpridores das normas estabelecidas. Eles precisavam demarcar seu total domínio, ainda que tirânico e contrário ao que Jesus Cristo ensinara no Novo Testamento. Afinal, por meio das Cruzadas e do que viria a ser a ‘Santa’ Inquisição, estavam todos de acordo de que ‘hereges’ e ‘pagãos’ seriam, sem comiseração ou clemência, levados à fogueira, à trepanação, ao esquartejamento, ao calabouço, ao desterro.

Quem tiver conhecido a obra do compositor cubano Alejandro ‘Virulo’ García e seu irreverente LP “La Génesis Según Virulo” (em duas edições, de 1980 e 1986) vai compreender por que até o início do século XXI os artistas criativos precisavam recorrer a uma interpretação mais, digamos, leve, irreverente, dos ensinamentos bíblicos. Possível, sobretudo, por causa da quebra de paradigma pelo Papa João XXIII. Caretas, os fanáticos ‘fiéis’ e seus ‘pastores’ de meia pataca sabem patavina de Hermenêutica e de Exegese, com sua interpretação literal e cega do texto milenar, tão complexo quanto profundo.

É eloquente aquela postura de se declarar defensor intransigente da vida do embrião no ventre materno e depois de nascido o rebento que fique ao relento, à ‘própria sorte’. Isso não é novo: vem dos tempos medievais, ainda que consentissem aos membros da corte a prática de tudo que era heresia e paganismo para a plebe. Joana D’Arc que o dissesse, e não é exclusivo dos mais tarde protagonistas da Contra Reforma, mas os próprios paladinos da Reforma. Lutero, Calvino e Henrique VIII, o monarca inglês que rompeu com a Igreja porque o sumo pontífice lhe negara mais uma núpcia na promíscua vida conjugal, antes da ruptura sequer haviam questionado essa conduta.

Feita esta necessária contextualização, demos vida e voz a Chaves e Aquino, que viveram, conviveram e sobreviveram em pleno obscurantismo medieval, cuja repetição em nossos nada generosos dias é uma farsa criada pelas elites totalitaristas travestidas de liberais, no desesperado afã de dar uma sobrevida a um ‘capetalismo’ perverso e pervertido.

Aquino, de ascendência mourisca, manifesta a sua discordância na maiêutica, o que soaria como uma afronta a Chaves, que passou seus melhores dias em meio à juventude, longe da academia, crendo que com isso não estaria se contaminando dos ‘vícios’ daquele, para ele, antro de vaidosos e soberbos. A sinceridade com que o jovem pai de uma filha e que para sobreviver se dedicara ao comércio, seguindo o ofício ancestral, o deixara perplexo, mas reflexivo. Em algo ele e a sua geração falharam, e feio (e, pior, não se aperceberam em tempo). Em meio a um silêncio sepulcral de seus pares, atônitos e consternados -- afinal, o episódio ocorrera precisamente no dia em que era celebrada a memória do mártir da comunidade, cuja passagem ocorrera no ano anterior --, tenta inutilmente encontrar um fio condutor para desenvolver uma reflexão a dois ou mais.

Mas o jovem está irredutível a todos os argumentos. Deixa claro que as palavras do velho aprendiz de tutor não servem para ele, que acrescenta ser sua convicção oposta a toda a de sua comunidade. Algo o fez se desencantar com os usos e costumes avoengos e procura com todo o vigor de sua juventude se contrapor a tudo isso. Reitera com ênfase seu direito de seu livre arbítrio, que, por certo, vai mais além que a escolha do burgomestre. Está evidentemente sufocado, a um passo da proclamação de sua rebeldia, a despeito de fazer a escolha oposta a seus legítimos protestos.

Seu protesto é legítimo, mas sua opção contraditória, pensou Chaves, mas não se sentiu seguro para dizê-lo. Falta de coragem? É provável, pois os tempos eram funestos e o ódio era o combustível para retroalimentar as forças do atraso, com as quais inadvertidamente o jovem rebelde estava imbricado. Tentou, ao seu modo, todas as formas possíveis para dizer-lhe, em meias palavras, que, no fundo, concordava com a sua rebeldia, mas não com a opção feita, de fortalecer o jugo, a opressão, dos pretensos donos do mundo, das almas e das pessoas.

Embora se proclamasse conservador, defensor da ordem estabelecida, Aquino estava em pleno fulgor da desobediência. Ato de coragem, sim. Rebeldia é fundamental, sobretudo na juventude. Mas ela mal direcionada é perigosa por ser autodestrutiva, o que é nocivo para o próprio crescimento da comunidade. Em vez de ganhar adeptos nessa postura, um tanto ‘revolucionária’ em termos de evolução da sociedade, reforçaria o comportamento subserviente dos que não têm a ousadia de questionar regras atávicas.

Aquino sempre foi um menino obediente e cumpridor de seus deveres. Talvez por isso se alinhara cegamente logo com os que se pretendiam ‘donos da ordem’ também. Só não revelavam que ordem pregavam, a dos cemitérios. Seus áulicos estiveram nas Cruzadas contra o povo ancestral do jovem perdido. Perdido, sim: alinhar-se aos seus algozes não era de bom alvitre, Chaves se sentira na obrigação de dizê-lo, ainda que soasse mal. Pior, ainda que se desse mal, como se deu, sim, senhor. Coisa a que ele estava acostumado em sua teimosia de navegar contra a corrente, desde jovem, também. Porém, jamais do lado errado da história, e logo ao lado dos tiranos travestidos de ‘rebeldes’.

“A palavras loucas, ouvidos moucos”, dissera-lhe, reservadamente, um de seus pares. Chaves tinha outra postura, não dormiria bem senão insistisse, ainda que visse que se tratava de um diálogo de surdos. Sim, de surdos, porque nem ele conseguia encontrar as palavras que pudessem ter melhor acolhimento por parte do menino travesso. Travesso? Era assim que seus contemporâneos o viam, pois seu caráter questionador e irreverente não era compreendido nem pelos seus contemporâneos. Era visto como um rebelde sem causa, que não gostava de refletir, de pensar no futuro da comunidade. Um egoísta. Isso reforçava sua convicção de que não tinha qualquer compromisso com os seus, embora se sentisse pertencente ao seu meio, mas ao seu jeito.

Frustrado com o desfecho daquele não-diálogo, Chaves passou a noite lendo e relendo seus velhos apontamentos. Costumava deixar em um baú seus alfarrábios, na esperança de que pudesse um dia compilar e transformar em manual de sobrevivência de eventuais colegas de ofício. De ofício? Não, de infortúnio. Nesse dia -- além da consternação com a perda de uma Amiga e um Amigo, em lugares diferentes e circunstâncias também --, sua solene convicção de que, a despeito de não ter juntado fortuna material para os seus, se dizia em paz, pelo menos, com a sua consciência, de ter feito o melhor por aquilo em que acreditava, que escolhera como causa maior, isto é, preparar as novas gerações para um novo tempo.

Qual novo tempo, qual nada! Eram essas as palavras que ecoavam, reverberavam, ricocheteavam em seu âmago. Aquino foi apenas a ponta do iceberg, pois já havia sido tomado pela decepção com quase todos os que algum dia lhe pareceram companheiros de sina, de ofício -- naquele tempo era o companheirismo a pautar as relações dos, digamos, ousados ‘lentes’, como se pretendiam: olhar mais longe, ainda que milimetricamente... Mais que a miopia, era a soberba, a estupidez, que tomava conta do comportamento dos seus. Pelo visto, ser néscio era o comum, e a ‘normalidade’ era construída nesse sentido.

Pensar, refletir, ter empatia, manifestar solidariedade, caminhar junto... Não, isso pode estar em baixa, mas não desapareceu. É verdade que os impérios conseguiram sedimentar a falsa ideia de que a realização é individual, que só o mais hábil é que se estabelece. Mas ainda há uma, ainda que tênue, oportunidade para mudar o rumo das novas gerações, que não passam de vítimas inconscientes de sua própria tragédia. E cabe, sim, aos que ainda têm um mínimo de noção e cordura o dever de insistir para que caminhem em outras vias, sejam quais forem, mas não na vala comum do esgoto, onde os ratos que vivem da escória estão a saciar sua gana, sua cobiça por chorume...

Se valeu a pena para Chaves ter vivido a disseminar questionamentos? Não sabemos, não saberemos. Como não saberemos se a legítima rebeldia juvenil de Aquino o levou a realizar seu objetivo. Dizem os do seu tempo que, na ânsia de perenizar seu domínio sobre a face da Terra, os obscurantistas medievais se valeram de pessoas de bons propósitos para como abutres lhes tirar a alma e transformá-las em seres desalmados a vagar sem destino pelos recônditos do mundo então conhecido, em vida, em plena existência. Ou quem foram os monstros em forma humana que destruíram as civilizações originárias na América, África, Ásia, Oceania e até da própria Europa? Ler, estudar, refletir é o caminho, que se faz ao caminhar, como disse Antonio Machado, o poeta sevilhano que sabiamente o ensinou.

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 22 de outubro de 2024

UM ANO SEM DONA MARIA TAQUES E JADALLAH SAFA

Um ano sem Dona Maria Taques e Jadallah Safa

No mesmo dia em que a querida Dona Maria Petrona, Matriarca e Cidadã a toda prova, descansou eternamente aos 95 anos, o igualmente querido Camarada Jadallah Suleiman era vencido, aos 65 anos, em sua derradeira luta depois de ter sofrido um AVC durante ato de apoio à resistência palestina em São Paulo.

22 de outubro de 2023. A Senhora Maria Petrona Torres Taques, 95 anos, descansou o sono dos justos para a eternidade, como incansável Cidadã à frente de seu tempo, verdadeira Matriarca, Mãe de prole de oito Irmãos que tive a honra de conhecer e de cuja Amizade sincera privar, sobretudo do Amigo-Irmão Luiz Taques, Jornalista e Escritor com letras maiúsculas, e da Tilma Torres Taques, Enfermeira aposentada. Igualmente, nessa data foi vencido pelo AVC, depois de resistir por algumas semanas, o também Amigo-Irmão de décadas Camarada Jadallah Suleiman Safa, 65 anos, incansável ativista político e comerciante -- até porque nunca viveu da política, do poder, mas de seu trabalho, da luta --, imigrante palestino, chegado ao Brasil pela Corumbá de todos os povos e culturas, quando tive a honra de conhecê-lo e a toda a sua Família e com quem estruturamos a solidariedade ao povo palestino em Mato Grosso do Sul.

É impactante perder ao mesmo tempo uma Amiga e um Amigo muito queridos e que são referência, ao menos nos últimos quarenta anos, nesta cosmopolita cidade que sintetiza não só a diversidade biológica, por ser o coração do Bioma Pantanal e da América do Sul, mas toda humanidade: eis que são habitantes daqui povos originários, afrodescendentes, quilombolas, migrantes de diversas regiões do Brasil, imigrantes bolivianos, paraguaios, argentinos, peruanos, chilenos, gregos, turcos (sim, da Turquia), armênios, portugueses, italianos, espanhóis, britânicos, franceses, alemães, russos, ucranianos, japoneses, árabes -- isto é, palestinos, sírios, libaneses, líbios, jordanianos, marroquinos, egípcios e tunisianos -- etc.

Dona Maria Petrona -- nome, aliás, da editora fundada por Luiz Taques e Esposa, em sua homenagem -- é nascida em Corumbá, na década de 1920, de Mãe e Pai gaúchos, vindos na maior mobilização popular da história do Brasil, a Coluna Prestes. Conhecia quase todos os remanescentes e descendentes dos integrantes -- cunhados pela imprensa elitista da época de ‘revoltosos’ --, cuja expressiva parcela ficou no então Mato Grosso uno. Não nos esqueçamos de que o líder, capitão Luiz Carlos Prestes, ao negociar a repatriação de todos os membros do multitudinário contingente oriundo de diferentes estados, assegurou uma indenização pelo governo de Getúlio Vargas, parte dela doada à Sociedade Beneficente de Corumbá, que permitiu a construção da ‘ala nova’ do Hospital de Caridade, conforme constava da placa de bronze que nos anos de chumbo foi retirada pelos alcoviteiros do fascismo.

Jadallah Safa, recém-chegado a Corumbá, depois de integrar a diáspora palestina em tenra idade [contara-me, tão logo o conheci, que saíra criança de sua Kafermalik, situada na província de Ramallah, na Cisjordânia, no contingente de refugiados palestinos do pós-guerra de 1967, em que os árabes, sob a liderança de Gamal Abdel Nasser, perderam boa parte do território da Palestina milenar, além da Península do Sinai, do Egito, e das Colinas de Golã (ou Jolan, na pronúncia síria)]. Em um portunhol com sotaque árabe, explicara a mim e aos Amigos que integravam um grupo de esquerda latino-americana seu interesse por conhecer melhor as culturas da América Latina e, sobretudo, do Brasil, País que soube acolher irmãmente todos os refugiados que aportaram nos últimos três séculos, mas que em cuja história colonial lusitana traz a vergonha da escravização de milhões de africanos e do saque e morticínio de centenas de povos originários.

Dona Maria Petrona conhecia como pouquíssimos a história da Coluna Prestes, da Corumbá cosmopolita que em cuja infância testemunhou e da história recente da Corumbá privada da liberdade nos anos de chumbo, sob a qual criou seus Filhos como Mãe prudente para que nenhum bajulador das botas opressoras ousassem contra a sua querida prole. Ao lado do Senhor Narciso Taques, que depois de se aposentar do Ministério dos Transportes foi um dos primeiros choferes de carro de praça, como se soíam chamar os dignos profissionais do táxi, eis que Corumbá foi uma das cidades pioneiras também nesse serviço. Seu Narciso se eternizou bem cedo, cabendo à Matriarca assumir sozinha a formação dos Filhos e Filhas (inclusive do mais Velho, que era da primeira cônjuge, falecida, de seu Companheiro de Vida, de sonhos e lutas).

Jadallah, em sua breve permanência em Corumbá (pouco menos que 10 anos), a despeito da dificuldade inicial de falar fluentemente em português, dava um jeito de se relacionar de forma altiva e proativa. Foi assim que construímos uma sólida e leal Amizade, o que permitiu realizar palestras-debate com estudantes das séries finais do ensino fundamental e médio, bem como com universitários e profissionais liberais em Corumbá e Ladário. Ao lado dele, e com a plena contribuição (ele era defensor do trabalho coletivo) dos Amigos Yahya Mohamad Omar, Najeh Abdel Mohd Mustafá (na época presidente da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira), Nasser Safa Ahmad e dos saudosos senhores Khamis Abdallah Suleiman, Soubhi Issa Ahmad e meu saudoso Pai Mahoma Hossen Schabib, sob a qualificada coordenação da querida Amiga-Camarada Elenir Lena Machado de Mello e do incansável trabalho do querido Carlos Augusto Canavarros, da Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina, por mais de três meses, na Biblioteca Pública Estadual Dr. Gabriel Vandoni de Barros, nas dependências da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, o glorioso ILA, sob a sábia direção-geral do saudoso Doutor Lécio Gomes de Souza e assessoria do também saudoso Poeta Rubens de Castro.

Em sua longeva e lúcida existência nesta dimensão, Dona Maria soube ensinar com sábia maestria valores humanos de grande transcendência. Como diz o provérbio árabe, regras mudam com o passar dos tempos, mas princípios são imutáveis, por isso a base da evolução das sociedades e da espécie humana. Jamais me esquecerei que, já idosa, fez questão de me acompanhar, lado a lado, no cortejo fúnebre de minha saudosa Mãe Wadia Al Hany de Schabib, segurando literalmente minha mão, como a me dar o conforto maternal preciso e precioso no momento em que eu despedia minha Progenitora. Jamais esquecerei de seu gesto de profunda empatia, solidariedade e, sobretudo, Amizade. Eu que, pelas ironias da Vida, não consegui chegar a tempo de despedi-la em sua derradeira caminhada, mas que a trago presente, sempre, pois é uma das minhas referências existenciais.

Por onde Jadallah residiu e trabalhou -- Canoas (RS), João Monlevade (MG) e São Paulo -- soube marcar, espontânea e abertamente, seu legado de generosa e sincera resistência e resiliência, além de organizar coletivos. Não perdia tempo em discussões estéreis (aliás, como meu Pai): insistia que não vale a pena perder tempo com quem ‘sabe tudo’, pois, o papel de quem tem que transformar o mundo, transformar a sociedade predadora e do sucesso a qualquer preço, é disseminar como quem semeia em campos férteis, para as pessoas libertas do preconceito e do jugo, da opressão, e especialmente para as novas gerações, a quem cabe conduzir pelos próximos anos o que estamos deixando para elas. Em quase dez anos de convívio, nunca o vi perder as estribeiras, o que deixava muitos provocadores ainda mais raivosos com ele.

Dona Maria Petrona e Jadallah Suleiman, dois Amigos que me ensinaram muito, mas muito mesmo. Cada qual ao seu modo generoso e único. Personalidades iluminadas e humildes, como o Peregrino que a Vida me presenteou como Pai. Sem que lhe perguntasse, tanto Dona Maria como Jadallah me davam a resposta que precisava, de modo prático e sincero. Pena que eu não os tivesse apresentado um para o outro, pois não tenho dúvida que teriam gostado muito terem se conhecido. Coincidentemente, também não pude me despedir de Jadallah quando esteve em Corumbá, por alguns dias (no início de 2023), apesar das várias tentativas feitas por ele para nos encontrarmos.

Decorrido o primeiro ano da eternização de Dona Maria e de Jadallah (não para confortar minha consciência de procrastinador inveterado), concluo que não me despedi de cada um deles porque os tenho presentes em meu cotidiano. Como poucos outros e outras, entre eles meus saudosos Pais e meu Irmão mais velho, há algo, sempre, que me os traz à lembrança por algum episódio ou fala sábia que calou fundo em meu âmago. É que assim são os seres únicos, imensos e generosos: impregnam em nós os seus grandes valores que os trazemos para sempre dentro de nosso consciente, como a nos orientar o tempo todo.

Com todo o respeito pelos tantos e tantas Amigas e Amigos cultivados com muito afeto e sinceridade, mas a Vida está se tornando insípida e profundamente árida com a eternização desses Gigantes de Alma que atravessaram a dimensão para iluminar nossa lúgubre e insana existência, em que seres bizarros de comportamento insólito e ganancioso teimam em se apossar e destruir o que resta de um planeta tão generoso e uma humanidade, apesar de espoliada e oprimida, tão diversa e cativante. Que, pois, esses seres de Luz nos mantenham lúcidos e racionais para continuarmos a jornada, que só vale a pena continuar a levá-la na certeza de que o raiar de um novo tempo está a surgir, com a intensa luz de seres que se eternizaram abnegada e generosamente, como viveram, na humildade e no anonimato.

Até sempre, Dona Maria Petrona! Até sempre, Jadallah Safa! Obrigado por terem existido! Obrigado, Corumbá, por ter sido o sagrado Paraíso na Terra a nos oportunizar verdadeiros seres humanos de uma dimensão gigantesca!

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 15 de outubro de 2024

PADRE ERNESTO SAKSIDA, 107 ANOS

Padre Ernesto Saksida, 107 anos

A memória seletiva das elites políticas ignora as obras sociais deixadas pelo sacerdote esloveno que escolheu Corumbá para realizar seu projeto de Vida.

Neste dia 15 de outubro, também Dia do Professor e da Professora, o saudoso e querido Padre Ernesto Saksida estaria completando 107 de nascimento. Em 13 de março de 2013, quando se eternizou depois de perder a luta contra a pneumonia que o levou à internação no CTI do Hospital de Caridade, seu projeto de Vida estava vicejante e alvissareiro porque ele, presente, à frente e vigilante, não deixava de contatar os benfeitores europeus que, desde a sua gênese, foram os responsáveis pelo financiamento das obras sociais criadas e mantidas por mais de cinco décadas sob a sua direção.

Preocupado desde fins da década de 1990 com o porvir do complexo educacional inspirado no legado de Dom Bosco, ele contatou um pequeno grupo de apoiadores discretos com os quais tinha a liberdade de fazer algumas revelações. As primeiras reuniões foram feitas na residência do Senhor Jorge Katurchi e foram poucos os convidados, pois se preocupava por eventuais inconfidências, cujas repercussões poderiam desanimar os benfeitores que até então eram informados de tudo por meio de cartas. Milhares de cartas, respondidas por uma equipe de colaboradores, sempre sob sua supervisão meticulosa. Essa era a fonte de financiamento de uma iniciativa pioneira que mudou a Vida de milhares de famílias de Corumbá, Ladário e Puerto Suárez (Quijarro, na época era uma estação ferroviária que viria a ser emancipada como município em 1977).

Ele revelara que, quando começou sua obra social no início da década de 1960, não foram poucas as famílias amigas que tentaram demovê-lo de seu projeto, usando os mais insólitos argumentos. Isso o levou a viajar a São Paulo e Rio de Janeiro para participar de programas de auditório e com isso sensibilizar a alta sociedade brasileira situada nas duas maiores cidades do País. Depois de algumas longas viagens pelo Brasil, também não deu certo. Foi então que lhe ocorreu viajar à Europa e disputar com outros destinatários da ajuda cristã a diversas nações, sobretudo na África, e assim criar as organizações de apoio à sua obra.

Mas houve os que o haviam apoiado, entre eles o saudoso Senhor João Gonçalves Miguéis (que com ele fundara anteriormente a LEMAC, Legião Mato-grossense dos Amigos da Criança), o Doutor Salomão Baruki (com quem fundara um jornal, a Folha da Tarde), o Senhor Jorge Katurchi e o Senhor Walmir Provenzano (com quem fundara a União dos Ex-alunos de Dom Bosco, UEDB), além do Professor José Ferreira de Freitas (primeiro diretor da então Escola Estadual Rural Alexandre de Castro e autor de mais de dez livros sobre a obra social do Padre Ernesto, quem mais tarde o elegeu e reelegeu deputado estadual, o que o levou a se mudar para Cuiabá, onde acabou fazendo sua carreira, tanto na política como no magistério universitário). Também os saudosos Senhor Ale Hamie, comerciante e relevante doador, o Protético e Pastor Hernán Guerrero e o pecuarista Lino Viegas.

Participaram também, sobretudo na primeira fase, o advogado Antônio Vitor Lima Baptista (Filho do Amigo de décadas, o advogado José Feliciano Baptista Neto, que, além de ajudar junto com o Doutor Salomão na escolha do nome, assinou a petição de registro da entidade junto ao cartório) e o senhor José Batista de Pontes (esposo da Professora Camila de Pontes, que ao lado da Professora Norma de Souza foi uma das duas primeiras professoras da Escola Alexandre de Castro, no tempo em que funcionou na casa de Dona Catarina). As articulações políticas que acompanharam a segunda fase da fundação do CENPER (Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental) foi fator de afastamento de muitos dos apoiadores da primeira fase, que se sentiram alijados do processo.

Muito me surpreendeu a capacidade de articulação política do Padre Ernesto. Embora ele tivesse me pedido que, como facilitador desse processo, coordenasse esse trabalho muito desgastante, revelou-se extremamente hábil quando as coisas foram caminhando para um lado, digamos, inusitado. Ele já estava acostumado com isso, até porque ocorrera o mesmo na fundação da Cidade Dom Bosco, no início da década de 1960. A mesma elite política que aconselhou o sacerdote salesiano a não se envolver com a inclusão social era a mesma que disputava sua parceria, até porque se aproximavam as eleições de 2004.

Como o até então presidente da Comissão Pró-fundação do CENPER, Seu Jorge Katurchi, declinara-se da presidência da entidade, o mesmo tendo feito o Doutor Salomão Baruki, habilmente os dois Amigos de décadas do Padre Ernesto foram, aos poucos, convencendo o sacerdote salesiano a aceitar a proposta de que o então desconhecido, para o Padre Ernesto, Ruiter Cunha de Oliveira fosse o primeiro presidente do CENPER. Não foi fácil, pois Ruiter sequer tinha sido aluno da Cidade Dom Bosco, e sobretudo o experiente Padre Ernesto não o conhecia e dera um jeito de se informar junto a velhos Amigos.

Antes mesmo de que as pessoas cujos nomes integraram a primeira diretoria executiva do CENPER imaginassem ser chamadas para compor a chapa a ser proclamada na assembleia-geral de fundação, o trabalho de convencimento do Padre Ernesto foi um ritual rigoroso. Ele nos dissera que estava dando uma chance às famílias amigas de outrora que mudassem seu olhar sobre os excluídos de sua própria cidade. E foi assim. Metódico, resiliente e determinado, o criador da Cidade Dom Bosco não só se empenhou na criação dessa como de mais duas entidades, como a constituir um tripé de sustentação do conjunto de sua obra social pioneira e de caráter interdisciplinar.

Somente quando as associações de benfeitores da Europa começaram a enviar respostas com a aquiescência da estratégia em construção -- uma entidade nos moldes da nova legislação brasileira de 1999 relativa às OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) -- é que ele passou a realizar as reuniões nas dependências da Cidade Dom Bosco. Nesse meio tempo o Padre Carlos Estremera, diretor da Cidade Dom Bosco, foi transferido e em seu lugar veio o agora saudoso Padre Oswaldo Scotti, grande entusiasta da iniciativa dos apoiadores do Padre Ernesto. Esse entusiasmo, reiterado pelo também saudoso Padre Pasquale Forin, titular da Paróquia de São João Bosco e seu Irmão de Congregação Salesiana, permitiu que mais duas entidades fossem constituídas nesse ínterim: o Clube dos Amigos do Padre Ernesto, presidido pelo também saudoso Doutor Lamartine Costa, e a União dos Ex-Alunos da Cidade Dom Bosco (UEACDB), cuja primeira diretoria foi escolhida a dedo pelo Padre Ernesto entre ex-alunos mais próximos dele.

Conhecedor de seu prestígio perante a população corumbaense, o Padre Ernesto não só afiançou seu apoio ao novo integrante da Família Salesiana em Corumbá, como o levou a fazer um compromisso de honra, de que os primeiros presidentes do CENPER, pelo valor, pelo significado desse prestigiado cargo (encargo social), seriam apoiados pelo antecessor à sua sucessão também no âmbito político-administrativo. A primeira a sucedê-lo seria (no CENPER foi) uma professora, filha de um grande Amigo seu que por ironia da Vida, se eternizara no dia em que era realizada a primeira festa de promoção da entidade. Embora todos os integrantes da direção da entidade tivessem votado pelo adiamento da festa, os preparativos, já bastante adiantados, fizeram com que tivessem que mudar de decisão, em meio ao constrangimento e à consternação.

Lembro-me como hoje, horas antes da realização da festa, o recém-empossado presidente do CENPER teve que assumir o compromisso de apoiar a Filha do Amigo como candidata à sua sucessão, não só da entidade, mas na prefeitura, caso ele viesse a ser eleito. Aliás, o Padre Ernesto nunca teve dúvida: ele era convicto de tudo o que o levava a fazer. Contudo, o lado político não correspondeu, e muito menos no tocante ao reconhecimento do ex-presidente da Comissão Pró-fundação do CENPER, mesmo contra a vontade de Seu Jorge, como assessor especial junto ao gabinete do prefeito. Convencido pelo próprio sacerdote salesiano, como Amigo de décadas, ele teve que aceitar, mas o ato de nomeação nunca chegou, nem no primeiro mandato, muito menos no segundo...

Ao contrário do Padre Ernesto, que honrara todos os compromissos assumidos pública ou reservadamente, as elites políticas locais simplesmente ignoraram esses compromissos, tanto que quando o célebre GENIC [CENIC para as novas gerações] pediu socorro, ninguém se habilitou a apoiar uma iniciativa que o fizesse permanecer em suas atividades centenárias. Todos os atuais atores do mais recente processo eleitoral estavam ocupando cargos, senão eletivos, de grande influência política, que teriam salvo o quase centenário colégio salesiano da Frei Mariano. Ficam os registros. É a tal ‘vontade política’...

Como o Padre Ernesto sempre destinou a festa de seu aniversário para todos, emblemático dia que é, dedicaremos o parágrafo derradeiro à categoria profissional com a qual mais trabalhou ao longo de sua Vida, pois ele mesmo era Professor.

Feliz Dia do Professor e da Professora! Mais que comemoração, merecida ainda que imotivada, é dia de reflexão e luta, porque só com muito empenho, estudo, coerência e organização é que a categoria tão importante para a conquista da soberania científica e tecnológica do Brasil haverá de ser reconhecida e respeitada pelos feitores, digo, gestores de plantão. E não adianta esperar que o Governo Federal, na pessoa do grande estadista Lula, faça milagres, porque até ele está refém do nefasto centrão, verdadeiro câncer da democracia ao lado do fascismo -- travestido de parasitismo rentista, neoliberalismo entreguista, fanatismo religioso sionista --, que tomou conta de grande parcela da população do Planeta. Menos oficialismo, burocratismo, servilismo, individualismo, identitarismo, soberba e autossuficiência: precisamos de empatia, solidariedade e coletivismo. Alvíssaras, alvíssaras, temos cérebro e consciência de classe!

Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

CARTA AO SENHOR JORGE KATURCHI

Carta ao Senhor Jorge Katurchi

Em seu aniversário natalício, a missiva a um Amigo que a Vida me presenteou ao lado de Dom José, Padre Pasquale e Padre Ernesto.

 

Corumbá, Paraíso na Terra, 11 de outubro de 2024.

Querido Amigo,

Feliz aniversário natalício, ao lado de Dona Anna Thereza, Mário Márcio, Dona Rosa Maria, Dona Amélia e Seu José, além dos tantos Amigos e Amigas que, com seu dom ímpar de cultivar Amizades sinceras, reuniu ao longo de sua trajetória nesta dimensão!

Confesso que desde que o senhor partiu não consigo ir à sua residência, ainda que minha consciência me instigue a visitar José Eduardo, com quem troco esporadicamente breves mensagens pelo aplicativo de celular. Mas ultimamente tenho visto o Zequinha, por acaso, é verdade, ocasiões em que vou ao centro da cidade, quando me dá notícias da Doutora Tereza e Família e de meu ex-professor, o Doutor Luiz Carlos.

Em rápida passagem pela frente do prédio da gloriosa Casa Katurchi tive a forte sensação de tê-lo visto sentado a sorrir, como sempre, na entrada do emblemático armazém cujo escritório foi sala de visitas que durante décadas abrigou os anseios genuínos de Corumbá, Ladário, Puerto Suárez e Puerto Quijarro. Foi a Cidadania que lhe conferiu o título de autêntico porta-voz dos clamores desta terra de todos os povos, todas as culturas e todas as graças, no dizer do saudoso Seu Augusto César Proença.

Quantas e quantas cartas fizemos juntos, ora em seu escritório, na sala de sua residência ou mesmo em casa. Na maioria das vezes, quase a totalidade, era o senhor quem assinava sozinho ou ao lado dos também saudosos Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale Forin e Padre Ernesto Saksida. Em nome do Pacto pela Cidadania ou pela Comissão Pró-fundação do Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), da qual o senhor foi presidente, mas quando se tratou de constituir a primeira diretoria executiva generosa e habilmente abriu mão, do mesmo modo que o também saudoso Doutor Salomão Baruki, Companheiro de jornada na pioneira União dos Ex-alunos de Dom Bosco, década de 1940.

Desta vez, no silêncio da sala, sou eu, sozinho, quem tenta lhe escrever, mais apagando que redigindo “estas mal traçadas linhas”. Então me lembro de sua belíssima grafia, com a qual fazíamos os rascunhos, de sua lavra, sem hesitar na ortografia. Na falta do detentor desses atributos genuínos, o computador é parceiro. No entanto, com quem dialogar para encontrar o termo ou a forma mais adequada de dizer isto ou não dizer aquilo? Nestes tempos de autossuficiência absoluta, não é fácil construir uma Amizade, dessas com letra maiúscula, cuja razão de ser era tão-somente o bem-comum. Em suas sábias palavras, o “amor por Corumbá, o amor pelo Povo Corumbaense”.

Ao lado de Dom José, Padre Pasquale e Padre Ernesto, não foram poucas as insólitas, para muitos, iniciativas que beneficiaram a população que o senhor tanto amou. Não as citarei, até porque não era de seu proceder a inconveniência. Discreto, como os demais Amigos referidos, o senhor protagonizou uma série de iniciativas que se tornaram realidade, mas engenheiros de obras feitas se encarregaram de ‘apadrinhá-las’, sem qualquer senso ético, até porque se há algo em falta nestas e outras plagas é exatamente essa práxis.

Há um provérbio árabe que, em tradução ligeira, recomenda o comedimento. Aliás, se a memória não me falha, o senhor tinha um quadro com a tradução do provérbio completo em seu escritório. Por essa razão não enveredarei pelas agruras daquilo que deveria ser ápice da celebração cidadã e da qual o senhor sem nunca ter sido candidato era referência para os generosos e sinceros protagonistas da história deste que é o Paraíso na Terra, uma das inúmeras concordâncias que solidificaram a nossa Amizade, respeitando sempre nossas diferenças de pontos de vista.

Pois é, Seu Jorge, tempos difíceis estes. Nem nos álgidos tempos de 1964 havia tamanha soberba, intolerância. A propósito, lembro-me de uma de suas máximas: a ignorância faz do ser humano um tirano convicto. Até parece que os ‘cavaleiros do Apocalipse’ estão a anunciar o indizível, a ponto de as labaredas criarem um cenário tétrico e submeterem pessoas, animais, plantas e seres microscópicos (estes ainda desconhecidos pela ciência humana) a uma sufocante atrocidade inaudita.

O senhor foi poupado de tamanho desamor, querido Amigo. Não imagino qual o desespero seu ao assistir às imagens dantescas do Paraíso que tanto amou e pelo qual, aliás, há quase vinte anos, quando ainda era governador seu amigo de Porto Murtinho e seu secretário de Segurança Pública frequentava a sua residência para levar as demandas regionais, entre as quais a dotação no Corpo de Bombeiros, em Corumbá, de brigada aérea de combate a incêndio no Pantanal. Muitos, na época, acharam a reivindicação visionária, para dizer o mínimo, eis que o tempo se encarregou de provar sua providencial antevisão.

E o que dizer, então, da tragédia incessante que há mais de um ano reduz a humanidade a pedaços de corpos, escombros de lares e fragmentos da civilização? Sempre em nome de uma cínica ‘democracia’ e de inusitado combate ao ‘terrorismo’, cometem-se crimes de guerra em que grávidas, bebês, crianças, adolescentes, jovens, mulheres e idosos são condenados à morte sem o devido processo legal, pelo simples fato de serem palestinos ou amigos dos palestinos. Gaza, Cisjordânia e Jerusalém; agora Beirute, Damasco e Bagdá; nos próximos dias Teerã e Áden; depois talvez Cairo e Trípoli. Não esqueço sua indignação ao assistirmos pela televisão à soberba dos ‘donos do mundo’.

Como expressão eloquente do cosmopolitismo corumbaense de sua juventude, o senhor foi quem soube traduzir o vigor da miscigenação, a resiliência originária, a perenidade afrodescendente e o aporte do migrante transfronteiriço e do imigrante ultramarino que, a despeito da opressão do componente colonial de saque e tirania, converteram o coração do Pantanal e da América do Sul em Paraíso na Terra, que com a ciência e os saberes dos povos tradicionais sobreviverá. E mais: não tenho dúvida de que, neste momento em que a Cidadania clama ao Governo Federal pela Universidade Federal do Pantanal, o senhor estaria, mais uma vez, na vanguarda do movimento.

Estas pugnas cidadãs haverão de continuar enquanto houver sinceridade e determinação entre as pessoas que constituem as novas gerações, muitas delas inspiradas na trajetória generosa de seres humanos que, como o senhor, abriram mão das benesses do poder para empreender uma interminável jornada cujas conquistas serão desfrutadas por quem virá depois de nós.

Seu Jorge, querido Amigo, obrigado por ter existido e por estar eternamente no coração e em pensamento ao lado de seres estimados que desde sempre têm atuado no anonimato diuturnamente para a construção de uma sociedade mais justa e um mundo melhor!

Com carinho e saudade,

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Che Guevara, donde nunca jamás se lo imaginan


Minuto 37: lección para los burocretinos y luego la verdadera face de la ONU, al igual que la OEA, siempre a servicio de los Estados Unidos y sus socios.

domingo, 6 de outubro de 2024

ETERNO FLAMENGUISTA E TERNO SÍRIO CORUMBAENSE

Eterno Flamenguista e terno Sírio Corumbaense

Corumbaense por opção, Flamenguista a toda prova e defensor da República da Síria, o Senhor Ali El Seher descansou no sétimo dia, depois de trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar incessantemente. Recebeu em Vida a mais honrosa homenagem, o livro-vídeo bilingue Logo Ali, da escritora Ana Lucia Almeida Dichoff com a colaboração de Salim Haqzan e Omar Faris.

Até depois de aposentado o imigrante sírio mais corumbaense e flamenguista que conheci não parou de trabalhar. Como se diz em Corumbá, trabalhou duro! E descansou no sétimo dia, sábado, 5 de outubro, em Campo Grande, aos 80 anos. Vai agora ao encontro de sua eterna amada, Dona Berenice, que está, há dois anos, à sua espera.

Chegou em plena juventude, não porque quisesse: a guerra incessante desde a nefasta criação do Estado sionista pela ONU, em 1947 [em novembro daquele ano foi decidida, sem consultar o povo milenar, a partilha da Palestina, então colônia da Grã-Bretanha], o fez sair de sua Tartus, cidade milenar na costa do Mar Mediterrâneo, no limite do Líbano, porto dos mais importantes da República da Síria.

Comerciante, daqueles que sabem cativar seu cliente, e ao chamá-lo de Amigo é uma declaração de amor, sincera, nada de hipocrisia. Cativante para celebrar Amizades, foi cativado por Corumbá, pelo Flamengo e por Dona Berenice, sua Companheira de Vida, Mãe de todos os Filhos, e de quem teve que se despedir dois antes de sua eternização.

Incansável, afável, sincero e, sobretudo, espontâneo. Tive a honra de conhecê-lo quando eu era criança, acompanhando meu saudoso Pai, que depois de cumprir seus compromissos no centro da cidade, visitava o Senhor Soubhi Issa Ahmad, da Casa Estrela, e, ao lado, Seu Ali El Seher, na Casa Tartous [assim estava grafado no letreiro da loja, onde abundavam brinquedos e produtos esportivos], na Delamare com a XV de Novembro. Seu Soubhi era palestino, mais velho, calvo e também alto. Seu Ali, sírio, jovem com cabelo alinhado, um bigode abundante e sorriso espontâneo. Inesquecível, sobretudo pelo particular sotaque sírio [muito parecido ao libanês do norte na pronúncia do árabe], meio cantado.

Por causa do conflito israelo-árabe, desde criança o que mais ouvia nas conversas entre os adultos árabes era a causa palestina. Época em que Gamal Abdel Nasser presidia a RAU (República Árabe Unida, com a Síria e o Iraque), era ainda mais forte a resistência pró-palestina que em nossos dias. É que o pan-arabismo nasserista promovia um sentimento de Unidade Árabe para vencer o sionismo, e isso incomodava as potências ocidentais, ex-metrópoles coloniais de todos os continentes. Seu Soubhi, palestino; Seu Ali, sírio; meu Pai, libanês, e por aí árabes de todas as nacionalidades se irmanavam na causa.

Nos anos 1970, logo depois da eternização do grande líder árabe Abdel Nasser, era comum entre os imigrantes árabes se reunirem ora na loja de um, ora na casa de outro, enfim, de uma forma fraternal e muito solidária. Num desses convites, em horário comercial [até porque meu Pai era dono de uma pensão e trabalhava até dez da noite, não podendo sair de casa por conta dos hóspedes, em sua maioria turistas europeus e estadunidenses que atravessavam a Bolívia rumo a Cuzco, na chamada Rota do Sol, caminho dos Incas] o grupo de Amigos (além dos Senhores Ali e Soubhi, os Senhores Mohamad Bazzi, ‘Abu Kamel’, da Casa das Flores; Kablan Hamdan, da Casa Ramallah, e Emílio Sayeg, da Casa Brasil) tem seu primeiro contato com uma publicação, em árabe e inglês, da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), chamada ‘Falastin Thawra’, da qual se tornam assinantes.

No início da década de 1980, quando das reuniões para a fundação da SOBENCO (Sociedade Beneficente Muçulmana de Corumbá), árabes de todas as nacionalidades estavam unidos em torno dessa nova entidade, de finalidade beneficente e cultural. Lá estava o mesmo grupo, mas já sem a participação dos senhores Bazzi e Sayeg, que retornaram ao Líbano por razões familiares, e em seu lugar chegaram os Senhores Ale Hamie e Adam Taha, entre um número bem maior de membros da Comunidade Árabe de Corumbá e de Ladário. E a resiliente participação do Senhor Ali El Seher era uma constante, como o fora enquanto foi vizinho da Mesquita da Fé, situada em frente à sua residência, na Rua Delamare.

Em toda manifestação de solidariedade ao Povo Palestino, lá estava Seu Ali presente. Sua maneira de ser única o tornava cativante e confortador. Quando o mundo inteiro foi vítima da propaganda sionista-colonial, durante as chamadas ‘revoluções coloridas’ -- entre elas a nefasta ‘primavera árabe’, que nada tinha de primavera e muito menos de árabe --, sua bravura e determinação, de modo solitário, o revelou um eloquente defensor da República da Síria, o último bastião da resistência árabe ao sionismo, que como câncer se espalha pelo mundo com a mesma voracidade das pragas impiedosas. Toda semana ele oferecia ao leitor do Correio de Corumbá, durante o tempo em que pôde fazê-lo, antíteses firmes e corajosas contra a propaganda reinante em toda a imprensa corporativa.

Dessa mesma forma, seu comportamento como Pai e Companheiro de Vida foi inspirador, pois não só incentivou todos os Filhos para estudar, como os preparou para uma sociedade muito diferente da sua, e hoje, como gaivotas a voarem muito alto, lhe proporcionou uma realização do tamanho daquele gigante de palavras doces e olhar meigo. Foram tantas décadas em que esse imigrante sírio que fez de Corumbá seu Paraíso na Terra que a sua eternização deixa um vazio impossível de ser preenchido nas próximas gerações. Porque Seu Ali é único e insubstituível, em todas as dimensões humanas.

Tanto é verdade, que a sensível e atenta escritora corumbaense Ana Lucia Almeida Dichoff o tornou eterno por meio de um livro-vídeo com a participação de um descendente de sírio como Salim Haqzan e de um imigrante palestino como Omar Faris. Coisa que somente em Corumbá acontece: em Vida e desinteressadamente uma escritora capta a percepção de um emblemático imigrante que povoou o cotidiano cosmopolita corumbaense durante décadas. Uma homenagem repleta de humanidade e sensibilidade que permitiu que ‘Logo Ali’ abrisse uma nova perspectiva para muitos contemporâneos que, mesmo encontrando e ‘cruzando’ o tempo todo com ele pelas ruas, nunca se haviam apercebido do conteúdo humano nesse transitar fortuito.

No dizer do grande escritor libanês [mas sírio no tempo em que viveu] Gibran Khalil Gibran, “a simplicidade é o último degrau da sabedoria”. Pois, com essa simplicidade sábia e todo o tempo presente, Seu Ali El Seher sobreviveu, viveu e conviveu com a maestria do doutos e a singeleza dos peregrinos, a espalhar amor e esperança entre os seus contemporâneos, como tantos semelhantes que povoaram a Corumbá de todos os povos, todos os sonhos e todas as lutas [e aqui peço licença ao querido Amigo e Professor Valmir Batista Corrêa, autor do livro cujo título é ‘Corumbá, terra de sonhos e lutas’, já em segunda edição, e Amigo de Seu Ali desde que chegara ao coração do Pantanal, no início da década de 1970].

Não conseguindo me despedir pessoalmente dele, repetirei o modo com que fazia questão de se referir a mim quando nos encontrávamos, sempre casualmente: “Ya khol [ô Irmão], Você é feliz pelas raízes que tem: segue em frente, porque nunca está sozinho...” Sou eu quem diz agora, e não para meramente citá-lo, mas por saber que sua Família não estará sozinha jamais, eis que as suas raízes são profundas e sábias. De eterno Flamenguista, e terno Sírio Corumbaense. Até sempre, Seu Ali El Seher, e obrigado por ter existido!

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 1 de outubro de 2024

AOS 110 ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

AOS 110 ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

MAHOMA HOSSEN SCHABIB (1º/10/1914 – 04/07/1996)

Texto republicado a propósito dos 110 anos de nascimento do incansável Peregrino que a Vida nos presenteou. 

Se estivesse vivo, o Peregrino que a Vida generosamente nos presenteou como Pai estaria completando 100 anos nesta quarta-feira, dia 1º de outubro de 2014.

Nascido no dia em que eclodira a Primeira Guerra Mundial na bucólica e formosa Rasen-Hache (província de Batroun), no Líbano, o incansável Peregrino chamado Mahoma Hossen Schabib ficara órfão de Mãe, dona Maquie Madi, aos 5 anos de vida. O Pai, Hussein Schabib, não quisera que os sete filhos (quatro meninas e três meninos) tivessem madrasta. Como caçula, coube às irmãs, bem mais velhas, cuidar dele. Por influência do primo mais velho, matemático e poeta Scandar Shalak, alfabetizara-se precocemente, e logo fora para o internato na distante Damasco (capital da Síria), onde concluíra com destaque os níveis fundamental e médio.

Ele contava, emocionado, que tivera o privilégio de ver a comoção popular quando da chegada do corpo do imortal poeta libanês Gibran Khalil Gibran (autor de “O Profeta”, entre outras obras) a Damasco para as homenagens póstumas na Síria e Líbano, quando professores participaram como oradores das celebrações ecumênicas. Igualmente, narrava com indisfarçável indignação sobre a repressão, pelos gendarmes franceses, ao movimento juvenil sírio contrário à opressão colonialista em meados da década de 1920, em que milhares de intelectuais e universitários foram torturados e mortos sem piedade, logo por aqueles que se diziam agentes da civilização e do progresso ao substituir o igualmente obscurantista e opressor império turco-otomano, de triste memória.

Obstinado, não sossegara enquanto não transpusesse as fronteiras políticas da Arábia, dividida à época pelos impérios britânico e francês (Líbano e Síria, colônias francesas; Palestina e Egito, colônias britânicas). Para tanto, passou-se por beduíno e atravessou todo o território da Palestina (ainda livre da ocupação sionista), pela fronteira do sul do Líbano e chegar, por Gaza, ao Cairo, no Egito, para cursar Filosofia na milenar Universidade Al-Azhar -- fechada em 1954, início do governo de Gamal Abdel Nasser, por causa de seus arqui-inimigos da Irmandade Islâmica, contrária ao Estado laico implantado pelo maior estadista árabe dos últimos cinco séculos. Mas ele (meu Pai) não pôde concluir o curso universitário por causa da eclosão da Segunda Guerra Mundial: o Egito era colônia da Grã-Bretanha e o ardil colonialista obrigava os jovens mais instruídos ao alistamento militar -- uma acintosa forma de eliminar a juventude inquieta porque esclarecida, feito bucha de canhão.

Mesmo a contragosto, acabou interrompendo os estudos no final do curso (1939), aceitando o conselho de seu irmão mais velho, Ale Hossen Schabib (que, naturalizado boliviano, virou Alejandro Hossen, pois, como em todo país hispânico, o primeiro sobrenome é o que conta). Esse irmão havia emigrado para a América no fim da Primeira Guerra Mundial e, depois de incursionar pela Amazônia brasileira, decidira estabelecer-se na Bolívia, de onde custeava os estudos do irmão caçula, além de ajudar a família com o que fosse possível naquele período de miséria e tragédias no Hemisfério Norte. A sua esperança -- e consolo -- era que a guerra não levasse muito tempo e que ele não demorasse a retornar ao Cairo para concluir seus estudos e seguir seu projeto de vida no Oriente Médio.

 

OUTRA CULTURA, NOVOS DESAFIOS

Mas não foi bem assim. Para começar, foi uma verdadeira epopeia chegar até a América do Sul, atravessando dois oceanos num barco de cruzeiro da companhia italiana de navegação Costa, o “Ana C”. Aportou em Arica, no Chile, após a travessia do Canal do Panamá com as suas comportas deslumbrantes. Em seguida, voou literalmente sobre a Cordilheira dos Andes até chegar a La Paz, a mais de três mil metros de altura, e seguir em outro voo até a capital do departamento de Beni, Trinidad, na Amazônia boliviana, para finalmente conhecer o irmão mais velho com quem só se relacionara até então por cartas -- afinal, ele partira quando meu Pai era de colo. Adaptar-se à vida de mascate num país de cultura totalmente diferente da sua foi outra proeza. Com a ajuda do irmão que era como Pai, procurou estabelecer-se num povoado menor, Magdalena, para capitalizar-se e logo ganhar autonomia financeira. Mas as adversidades (entre elas, o naufrágio de seu batelão carregado de mercadorias) o fizeram descapitalizar-se e quase lhe custaram a própria vida, em 1940, que ele passara a grafar como “0000” (quatro zeros), pois os prejuízos o fizeram voltar à estaca zero.

Perseverante, em cinco anos -- praticamente o período da sangrenta guerra que acabou com a inocência da humanidade --, entre a disciplina nos estudos (não abandonara o hábito de estudar, nem quando atingiu a terceira idade, lendo sistematicamente no mínimo quatro horas diárias) e no trabalho, aprendeu a arte do comércio e dois novos idiomas (espanhol e inglês), e logo era detentor de um capital monetário respeitável. Por essa razão, o irmão que fazia as vezes de Pai o aconselhara a ir se preparando para casar-se. Coincidência ou não, nessas incursões como mascate havia conhecido um dentista muito popular, de nacionalidade libanesa, o assim chamado doutor José (Yussef) Al Hany, Pai de dez filhos (seis meninas e quatro meninos) com uma única companheira, a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, afável, culta e hospitaleira.

O doutor Hany, druso (ou derzi, religião espiritualista oriental); a dona Guadalupe, católica, de Pai maronita (variação libanesa de catolicismo cujo sacerdote pode se casar). Meu Pai, muçulmano. Como os árabes, a exemplo dos brasileiros, vivem e celebram a diversidade, não demorou muito para que a mais velha das filhas, a bela Wadia Hany Ascimani, decorrido algum tempo, viesse a contrair núpcias com o jovem imigrante. Não é demais dizer que naquela época, entre os árabes, não era tão acirrada a intolerância religiosa de hoje, alimentada pelas potências ocidentais dentro da ignóbil lógica do “dividir para reinar”, iniciada com a imposição do Estado sionista no território da Palestina em 1948, como perniciosa reparação dos danos causados pelos europeus nazistas em território europeu, e que nada têm a ver com os árabes, estes também vítimas dos abusos colonialistas até a presente data.

Casaram-se em abril de 1948 (ironicamente três semanas antes da formalização, pelas potências mundiais, do Estado de Israel), uma relação conjugal que durou 48 anos e dois meses (meus Pais já planejavam comemorar suas bodas de ouro, quando uma parada cardíaca interrompeu, em 1996, seus projetos comuns de Vida). Mas essas quase cinco décadas, como em tudo na Vida, não foram um mar de rosas, pois tiveram altos e baixos. Os primeiros cinco anos de vida conjugal, sim, por conta da estabilidade econômica então reinante na Bolívia, foram tranquilos: minha Mãe aprendeu logo as habilidades comerciais, tendo-se tornado referência nos negócios crescentes da família. Deixaram a Amazônia depois do nascimento da segunda filha, indo residir na chamada cidade-jardim boliviana, Cochabamba, localizada num formoso vale da Cordilheira dos Andes e com excelente qualidade de vida, cultura e cosmopolitismo.

 

VOLTA ÀS ATIVIDADES INTELECTUAIS

Nesse importante centro cultural boliviano, até por conta da estabilidade da economia familiar, meu Pai decidiu retomar os estudos na Bolívia, e não demorou muito para que exercesse com maestria o jornalismo, além de conduzir um programa radiofônico sobre a cultura árabe e as relações com a América Latina. (Era um período de efervescência política em todo o mundo: além da consolidação do socialismo como alternativa real para todos os povos vítimas do saque e da exploração de suas riquezas naturais e de sua gente, na Bolívia viviam-se as transformações decorrentes do triunfo da Revolução de 1952 boliviana, e na Arábia espalhavam-se os ideais de Nasser, um dos jovens líderes da Revolução de 1952 egípcia, que acabou com o jugo pró-inglês do rei Faruk no Egito e mudou os rumos do povo árabe disperso em 22 Estados divididos pelo Ocidente e das nações do Terceiro Mundo no século XX, ao fundar, com Broz Tito, Jawaharlal Nehru e Chu En-Lai, o Movimento dos Países Não Alinhados.) Talvez a excessiva visibilidade tivesse exposto muito meu Pai diante de adversários poderosos, até então desconhecidos, que se valeram da crise sociopolítica e econômica na Bolívia para desencadear contra ele uma série de ações judiciais e fragilizá-lo comercial e economicamente. Em meio a uma avalanche inflacionária de mais de nove mil por cento ao ano, no início da década de 1960, meus Pais decidiram vender todo o seu patrimônio, construído com muito esforço ao longo de três décadas, a fim de reunir o máximo possível para adquirir as passagens para dez pessoas (dois adultos e oito crianças) de trem e navio a fim de retornar ao Líbano, onde nasceu a caçula dos filhos e permanecemos por quase quatro anos. Nesse meio tempo, meu Pai cobriu para a Rádio Cairo em espanhol, uma revista árabe-chilena chamada “Mundo Árabe” e uma edição em espanhol da revista brasileira “O Cruzeiro” a luta pela independência das nações árabes do norte da África (Argélia, Líbia e sobretudo o Egito, que passara a se denominar República Árabe Unida, um Estado confederado com a Síria e o Iraque, mas que não durou muito por conta das investidas ocidentais e de seus fantoches dos reinos, emirados e sultanatos árabes, temerosos de que a experiência socialista de Nasser no Egito irradiasse para os demais países do Oriente Médio).

Como o jornalismo não lhe proporcionara o suficiente para o sustento de uma família de onze pessoas (nove crianças e adolescentes), meu Pai lançara mão de suas últimas economias para tentar se estabelecer com um restaurante na segunda maior cidade libanesa, Trípoli (capital da província de Batroun), em sociedade com um primo que já fora seu sócio na fronteira da Bolívia com o Brasil (Guajará Mirim, Rondônia), Hussein Khalil Schabib. Entre as atividades comerciais e a agricultura (nas terras herdadas do Pai), tentou se recuperar financeiramente, mas decidiu por retornar para a América do Sul, pois o clima político no Líbano não lhe inspirava bons augúrios. Ele pressentira, pela insustentabilidade do cotidiano do cidadão comum libanês, a revolta das camadas populares contra as oligarquias libanesas, fato que eclodiu em 1974 com a trágica guerra civil que durou duas décadas, dizimou e empobreceu a população e destruiu a infraestrutura do país após a invasão de tropas israelenses e americanas, no início da década de 1980, provocando uma série de massacres nunca antes vistos no Líbano ou qualquer outra nação árabe, à exceção da Palestina e da Argélia em sua luta pela independência (depois, sim, vimos, em maior escala, a invasão do Iraque e da Líbia – e agora na Síria – pelos mesmos gendarmes e mercenários de Israel e Estados Unidos, em pleno século XXI). 

 

A ESCOLHA DE CORUMBÁ

Nos quase 25 anos que vivera na Bolívia, inúmeras vezes viajara de avião ou trem pela região do Pantanal, tendo ficado em Corumbá por breves estadas, sobretudo depois que fixara residência em Cochabamba. Rumo a São Paulo, de onde comprava muitos itens para abastecer seu comércio atacadista, havia se encantado com o desenvolvimento desta região, que, depois da inauguração da ferrovia Corumbá – Santa Cruz de la Sierra, passou a compará-la à região de Milão pelo tronco ferroviário e a importância desse transporte para a integração do continente. Por isso, quando se decidiu por retornar para a América do Sul, sua escolha recaiu sobre Corumbá, de modo que os três filhos mais velhos (que estavam por chegar à universidade) ficassem na casa da Vovó Guadalupe e os demais não tão distantes do país que o acolhera na juventude e, a despeito das adversidades, lhe ensinara muito. Ele era muito grato ao povo boliviano por tudo que lhe ocorreu na Vida. Obviamente, como todo imigrante, amava todos os países que o acolheram. E sua relação com o Brasil foi como o coroar de seus sonhos e lutas, até pelo fato de haver feito a escolha em plena maturidade. Assim, quando se estabeleceu com um modesto comércio de armarinhos, à rua Joaquim Murtinho, plena Feira Boliviana (a poucas quadras da estação ferroviária da Red Oriental da Bolívia, à época separada por uma centena de metros da ferroviária da Noroeste), semanas antes do golpe militar de 1964, iniciava uma nova fase em sua renhida existência de Peregrino incansável.

Seis meses mais tarde, início da primavera de 1964, meu Pai deu início a seu projeto de trabalho (e de Vida) no coração do Pantanal e da América do Sul (era assim como ele via Corumbá, centro do bioma e do subcontinente): abrir uma sorveteria (com a solidária assessoria de um Amigo libanês, Fauze Rachid, e sua esposa boliviana Pura Ceballos de Rachid, proprietários da popular Sorveteria Superbom, e que anos depois se mudaram para Puerto Suárez) e construir uma hospedaria (pousada) com menos de uma dezena de quartos, que em pouco mais de cinco anos se transformara em referência para comerciantes bolivianos e jovens turistas de todo o mundo por causa da higiene, segurança e atenção de seu proprietário poliglota e bem informado (como recomendavam os guias turísticos pioneiros que descobriram a rota dos Incas e os safáris fotográficos do Pantanal, sem qualquer incentivo das instâncias de governo federal, estadual e municipal de todos os países sul-americanos, que viam os mochileiros barbudos como suspeitos, quer fosse como “subversivos” ou como “maconheiros”), depois de ter conseguido comprar, com o pouco que lhe restava da venda de seus bens do Líbano, uma casa modesta de um simpático casal de idosos (o senhor Afonso, português, e dona Paulina, corumbaense, irmã de uma vizinha que logo ganhou status de vovó, a dona Ventura, muito cordial e sempre presente nos primeiros anos da chegada de toda a Família).

Foi com essa modesta pousada que, por quase trinta anos, assegurou o sustento digno de uma numerosa família de nove filhos, tendo como meta dar-lhes formação universitária. Quando um amigo bem próximo lhe propôs um empréstimo para ampliar as instalações da pousada, diante do movimento e do reconhecimento de seus serviços, ele revelou que não pretendia ser dono de rede de pousadas ou fazendas, mas pai realizado por ver todos os seus filhos a concluir os seus estudos, independentemente da profissão escolhida. Obviamente que a perda do filho mais velho (ocorrida em circunstâncias não elucidadas pela polícia em 1974, que me induziu a declarar, aos 15 anos, que fora por suicídio, fato questionado por seus colegas universitários e sobretudo por um investigador de uma seguradora que por coincidência se hospedara dois meses depois da tragédia), Mohamed (ou carinhosamente “Tchítchi”), o abatera profundamente: ainda que não abandonara as metas que traçara para sua Vida, com a maior dignidade e responsabilidade, não era difícil pegá-lo lacrimejando ao ler ou conversar com jovens que lembrassem o espírito arrojado do saudoso filho.

A propósito dessa tragédia, houve quem propusesse que denunciássemos o governo do mais sanguinário, corrupto e mercenário dos ditadores bolivianos, Hugo Banzer Suárez, pela morte de nosso irmão, cuja memória foi criminosamente vilipendiada pela chefia da polícia local nos tempos nefastos da ditadura. Lembro-me como hoje que, acompanhado de dois queridos Amigos (Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de Souza Alvarez, fotógrafo à época da tragédia), visitamos quase todas as redações de jornais locais que haviam estampado a manchete sensacionalista do tipo “estudante (sic) universitário se fuzila sem deixar carta” (coisa típica de crônica policial chapa-branca, espreme-sai-sangue) a fim de esclarecer os fatos e pedir que republicassem a matéria dando-nos o direito de mostrar o outro lado dessa notícia. Alguns, obviamente, nem se deram a esse trabalho. Mas o velho Diário de Corumbá, então dirigido pelo jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior, corrigiu a notícia com o devido destaque. O Pai dele, fundador do jornal em 1969, jornalista Carlos Paulo Pereira, tinha uma relação de amizade com o meu Pai, que desde as primeiras edições colaborava com matérias de política internacional. Por conta desse gesto, a partir de então meu Pai passou a assinar também matérias de fundo espiritual, não doutrinário, em que homenageava de alguma forma meu saudoso Irmão. Talvez o artigo dele que mais tenha repercutido na década de 1970 tenha sido “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, o qual foi publicado em dois idiomas em diversos jornais do Brasil e da Bolívia.

 

A MILÃO SUL-AMERICANA

Ainda na década de 1970, por ocasião do bicentenário da fundação de Corumbá, publicou outro emblemático artigo, desta vez voltado para as perspectivas de desenvolvimento da região do Pantanal, quando explicou por que o turismo, ao lado do comércio, eram a vocação natural de Corumbá -- tendo então comparado a posição estratégica do coração do Pantanal a Milão, na Itália. Essa matéria foi levada por um turista para publicá-la num jornal espanhol e em outro italiano. Desde então, quando calhava de se hospedar algum jornalista em sua pousada, meu Pai fazia questão de entregar alguns artigos de sua autoria, autorizando-o a publicar como quisesse, ainda que sequer publicasse a autoria. Ele foi um defensor declarado de que as ideias não têm “dono”, e é um dever fazê-las circular, em benefício da humanidade.

Mas foi ao lado de outros dois imigrantes como ele -- William “Bill” Sefusatti, o ítalo-britânico dono dos barcos Califórnia, e Hermann Pettersen, alemão casado com Dona Maria, cuiabana, dono do Restaurante El Pacu, ambos localizados no Casario do Porto -- que anonimamente deu sua contribuição para a consolidação do turismo contemplativo no Pantanal entre os fins da década de 1970 e início da década de 1990, quando alguns guias de turismo pioneiros brasileiros também passaram a integrar a atividade, tais como Clóvis Brandão Carneiro, Rodrigues, Guilherme Carstens, Armando Duprat, Roberto Kassar, Joaquim, Catu, Gilberto, José Bobadilha, José Paraguaio, Johnny Índio, entre outros. De forma bem profissional, ao lado da pioneira La Barca Tours, da família Nader, o também pioneiro J. Carneiro e seu Expresso do Pantanal consolidaram de forma sustentável o turismo voltado para as famílias que vinham conhecer o bioma pantaneiro pelo majestoso Rio Paraguai.

No início da década de 1990, frustrado com a sucessão de equívocos cometidos pelos gestores do turismo em nível estadual e municipal, que em troca de favores eleitoreiros, permitiam que os chamados guias piratas prostituíssem a atividade em Corumbá, iniciou uma série de artigos sobre a importância do turismo e fazendo explícitas advertências às instâncias administrativas. Recebia telefonemas de cumprimentos “pela coragem”, mas as sugestões reiteradas para a organização da atividade na região jamais viu serem implementadas. Tanto assim, em maio de 1994 encerrou as atividades de sua modesta pousada, depois de trinta anos de trabalho ininterrupto, em protesto contra a pirataria que então tomava conta do turismo.

Para não se deprimir, fez sucessivas viagens com a minha Mãe -- ao México, onde moram um de meus irmãos, companheira e filhas; ao Líbano, onde deixou praticamente toda a Família, e à Bolívia, onde visitou a Família e amigos contemporâneos seus, ainda saudáveis -- e, quando se preparava para organizar sua “segunda lua-de-mel”, para comemorar suas bodas de ouro, faleceu subitamente, ao meio-dia de uma quinta-feira, 4 de julho de 1996, aos 82 anos incompletos.

Minha Mãe, dona Wadia, viveu mais treze anos, tendo resistido estoicamente a um câncer virulento que a silenciou sem lhe tirar o gosto pela Vida, em menos de seis meses. Internada num hospital de Campo Grande, ela deu seu último suspiro no início da manhã de uma segunda-feira, dia 15 de junho de 2009, aos 83 anos de idade. Eles tiveram nove filhos (seis mulheres e três homens) e um legado de trabalho e muita dignidade, um exemplo para todos nós que nos orgulhamos de sermos filhos seus.

Ahmad Schabib Hany

1º de outubro de 2014