quarta-feira, 18 de setembro de 2024

UFPantanal: mais que sonho, necessidade premente

UFPantanal: mais que sonho, necessidade premente

Adesão da sociedade civil e científica vem crescendo a passos largos, enquanto hesitação, em vez de entusiasmo, divide docentes e discentes do CPAN/UFMS.

Eis que titubeio, hesitação, é o que tem demarcado os espaços imaginários entre alunos/as e docentes-pesquisadores/as do CPAN/UFMS, mas fico lisonjeado ao ver que há expressivo número de professoras e professores entusiastas, mais engajados. Por quê? Elas e eles, docentes, sabem -- porque conhecem -- a importância desta região, independentemente da área de estudo a que se dedicam, para a soberania tecnocientífica brasileira e para o desenvolvimento estratégico regional, nacional e continental. Mais: a instalação de um centro de pesquisas de referência é bom para a população regional e de interesse geopolítico em tempos de afirmação do protagonismo do Brasil, seja como potência regional ou como membro do concerto das nações como agente da paz, do desenvolvimento soberano e do combate à fome.

Porque é alvissareiro o novo paradigma de universidade, inclusiva e inovadora, liberta do burocratismo imposto pelo famigerado Acordo MEC-USAID, de 1968, que vem atravancando o desenvolvimento tecnocientífico há diversas décadas -- na verdade, desde o início da redemocratização do Brasil, em 1985, pois, à exceção dos governos dos presidentes Lula e Dilma, nenhum ministro da Educação pós-Nova República teve sucesso nas diferentes tentativas de resgatar o papel de vanguarda na pesquisa pelas universidades tradicionais --, uma das razões da letargia e do individualismo reinantes na academia brasileira. Até porque a adoção de ranking na produção e no desempenho acadêmicos leva a um perigoso ‘pragmatismo’ que se reflete em quase todas as universidades brasileiras.

Não há exagero ao afirmar que as pesquisas pioneiras em diversas áreas do conhecimento não só em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul começaram com pesquisadores instalados no então Centro Pedagógico de Corumbá (da Universidade Estadual de Mato Grosso) e depois no Centro Universitário de Corumbá (da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Há duas semanas, resgatamos o pioneirismo dos docentes pesquisadores Cláudio de Almeida Conceição, Wilson Uieda e Masao Uetanabaro. Todos eles das ciências biológicas. Agora iremos citar o pioneirismo na História, com os docentes pesquisadores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, desde início da década de 1970.

Casal que veio bem jovem a Corumbá, ambos dedicados à História, não só estruturaram o curso de licenciatura, mas sistematizaram a História Regional e, sobretudo, iniciaram um importante processo de pesquisa ousado e metódico em todo o sul de Mato Grosso. Tive a honra e o prazer de conhecer o Professor Valmir Corrêa em 1975, quando eu ainda estava no segundo ano do ensino médio, no antigo Centro Educacional Julia Gonçalves Passarinho, e o saudoso Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, titular de Língua Portuguesa e de Literatura, nos orientou para que fizéssemos uma enquete com os alunos da escola sobre a divisão de Mato Grosso, ainda em cogitação. Por recomendação dele, fomos até o CPC/UEMT para saber fazer a enquete e a pessoa indicada era o Professor Valmir Corrêa.

Em 1978, quando iniciei o curso de licenciatura em Letras, no período vespertino, tive um contato maior com ele: o Centro de Estudos Históricos Ricardo Franco, embora restrito ao alunado de História, me cativava muito, tendo participado de algumas de suas atividades. Mesmo deslumbrado com o nível do ensino no CPC, eu já estava com planos de, ao final daquele ano, antes da instalação do governo de Mato Grosso do Sul, ir trabalhar em algum jornal, mesmo porque o Amigo Edson Moraes, referência de nossa geração, trabalhava no Tribuna, do Jornalista e Deputado Sérgio Cruz. Antes de me mudar para Campo Grande, doei ao Professor Valmir uma hemeroteca modesta, com jornais de Corumbá, Ladário, Cuiabá, Campo Grande, São Paulo, Rio de Janeiro, La Paz, Cochabamba, Trinidad, Santa Cruz de la Sierra, Assunção, Buenos Aires, Madri, Cairo e Beirute, em português, espanhol, inglês e francês.

A revista acadêmica Dimensão, editada por uma equipe de docentes do CPC, traz síntese das primeiras pesquisas dos Professores Valmir e Lúcia, além de outros pesquisadores, obviamente, em que consta de catalogação de jornais corumbaenses do final do século XIX e início do século XX, bem como a descrição do movimento do entreposto comercial de importância continental. Com a participação do Professor Gilberto Luiz Alves, do curso de Pedagogia e igualmente pioneiro em História da Educação, Valmir e Lúcia realizaram a justificativa para o tombamento do Casario do Porto em 1986, uma luta iniciada em 1978 por causa da demolição de três prédios históricos do centro de Corumbá: Cine Santa Cruz (onde hoje está a agência local do Bradesco), Intendência Municipal (onde estava situada a sede do Café Néctar) e a Rádio Difusora Mato-grossense S/A (em frente à agência local do Banco do Brasil).

A artista plástica Marlene Terezinha Mourão, a querida Peninha, convidada pela Irmã Sofia para trabalhar como professora no saudoso Ginásio e Escola Normal Imaculada Conceição (GENIC), trocou Coxim e Campo Grande por Corumbá e deu uma guinada em sua Vida. Em tom bastante descontraído, Peninha conta que, anos depois, foi convidada pelo Doutor Salomão Baruki para dar aula no Instituto Superior de Pedagogia, no prédio do então Grupo Escolar Luiz de Albuquerque (mais tarde, transformado no ILA, no governo derradeiro de Mato Grosso uno, em que o corumbaense Cássio Leite de Barros era governador e Salomão Baruki deixara a vice-reitoria para ser secretário de estado de Educação e Cultura).

Professora de Introdução à Metodologia Científica até 1974, a criadora de Maria Dadô foi colega dos professores Gilberto, Valmir, Lúcia e Masao, com quem tinha uma relação bem descontraída (em 1977, todos eles estavam nas diferentes edições da Grifo, revista mato-grossense editada em Campo Grande pela Edimat. Mesmo sem saber, Peninha era uma seguidora do método de Paulo Freire com a sua pedagogia libertária e descomplicada, em um tempo de censura e muita tortura. Ela justificava não ler jornais, porque havia muita mentira, não mostravam a verdade, porque a censura prévia não deixava que saísse nada que não fosse do interesse dos governantes. Foi assim que vim saber que meu Irmão Mohamed, eternizado 50 anos atrás, fora seu aluno e, curiosamente, ela ainda se lembrava dele, de seu jeito irreverente -- provocador, até -- para a época.

Amiga da Professora Lígia, Filha do Professor Salomão Baruki, Peninha retorna para o CPC, desta vez como técnica do ‘Seção de Multimeios’ (hoje, multimídia), depois de ter sido secretária do vice-reitor da UEMT, Doutor Salomão, que assinara a sua carteira de trabalho numa das substituições ao Professor João Pereira da Rosa, primeiro reitor da UEMT e, com a federalização, de sua sucedânea, UFMS. Para ela, não se trata apenas da assinatura do empregador, senão de autógrafo de um homem público muito querido, com quem conviveu apesar da diferença de pontos de vista, tanto que até hoje mantém uma Amizade fraternal com a Professora Lígia Baruki e Melo, sua correligionária e confidente.

Mar, Marlene Mourão ou simplesmente Peninha é prima do igualmente talentoso poeta e compositor coxinense Zacarias Mourão, o célebre autor de “Pé de Cedro” eternizado há algumas décadas com pouca idade. Humilde, não gosta dessas associações a celebridades, pois ama o anonimato. Mas a autora de “Pacu era um peixe feliz que nadava nas águas do Rio Paraguai” foi prefaciado pelo Poeta Manoel de Barros sem tê-lo pedido: ele ficara encantado com o conto-poema que ela enviara por correio em 1987, mas que só publicou em 2002, graças ao Fundo de Investimento Cultural criado no governo do correligionário José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT.

Além de docente universitária e técnica de ‘multimeios’, a querida e talentosa Peninha é artista plástica, caricaturista, cartunista, poeta, escritora, ativista cultural e Mãe-Avó de Luiz Eduardo, Felipe, Leonardo e Helô, a Netinha. Ama o óleo, a aquarela e, sobretudo, o bico de pena. Não por acaso, suas ilustrações são presença obrigatória em livros do ex-colega Gilberto, em edições da década de 1980 e em sua coleção para a Associação dos Bibliófilos do Instituto Cultural Gilberto Luiz Alves (ICGLA), em 2023, inaugurada com “Pantanal da Nhecolândia: pecuária e modernização tecnológica”, Volume 1 da coleção. Há poucos dias, o ICGLA promoveu o lançamento do Volume 2, coautoria de Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, “A produção de charque e de tanino no sul de Mato Grosso: cenários e dilemas”, coedição do ICGLA com a Editora Maria Petrona, de Londrina.

As universidades são feitas por humanos e para humanos. Uma sociedade que se pretende moderna e desenvolvida não pode abrir mão de criar uma universidade inovadora, ousada e inclusiva. O progresso não vem por acaso: é fruto do esforço realizado por seres humanos esclarecidos e libertos. Assim, em plena fronteira, o coração do Pantanal e da América do Sul, do Sol e do Sal -- como solenemente agasalhou o legítimo Festival da América do Sul a partir de 2004 -- manterá o cosmopolitismo / vanguardismo com que marcou na história, na memória e, sobretudo, na Vida. UFPantanal não é sonho, é necessidade urgente.

Ahmad Schabib Hany

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