sábado, 7 de setembro de 2024

Mohamed, 50 anos de seu silêncio

Mohamed, 50 anos de seu silêncio

Neste 21 de setembro transcorrem 50 anos da eternização de Mohamed Schabib Hany, jovem que teve a sua Vida interrompida aos 25 anos. Eram tempos sombrios e as perspectivas para desassossegados como ele tinham gosto de chumbo, censura e repressão.

Se o mês de setembro de 1973 representara para a América Latina uma tragédia sem fim (por causa do cruento golpe protagonizado pelo sanguinário general Augusto Pinochet no Chile), o de 1974, sobretudo para nossa Família, tinha gosto de chumbo e sangue. No dia em que transcorriam os 196 anos de fundação de Corumbá (sem festa, pois na semana anterior um avião se acidentara levando a óbito o comandante da 9ª Região Militar, de Campo Grande), meu Irmão Mohamed, o mais velho e ‘guru’ de todos os Irmãos e Irmãs, se eternizava, ao cair da tarde, em circunstâncias nunca esclarecidas.

Tempo de censura e repressão, a imprensa não pôde apresentar outra versão que a da polícia, que sequer investigara ou, ao menos, realizara um exame de balística. Minutos depois do traslado do corpo ao necrotério local, o caso foi encerrado como ‘suicídio’ com base em uma declaração atribuída ao ‘menor’ de apenas 15 anos, levado na mesma viatura (uma Veraneio da Polícia Civil), desacompanhado e sem qualquer orientação, logo depois do desenlace. Detalhe: o ‘menor’ era precisamente eu, em estado de choque, pois até então não tinha visto um corpo inerte, logo de alguém querido como o Irmão mais velho.

O delegado regional era um ex-professor de Matemática meu e de Educação Moral e Cívica de três Irmãs. Uma década depois fui saber que ele, bacharel em Direito, fora nomeado, dois anos antes do fatídico dia em que meu Irmão se eternizou, com o aval do poderoso e temido senador Filinto Strubing Müller, que até sua trágica morte, nas imediações do Aeroporto de Paris, fora presidente nacional da Arena, partido de sustentação do regime, do Senado Federal e do Congresso Nacional, homem forte do general Emílio Médici.

Nem o apelo de minha saudosa Mãe sensibilizara o delegado para ao menos cumprir o protocolo de um mero inquérito policial. O que dizer do ofício do general da então Segunda Brigada Mista, pessoalmente levado por minha Mãe por orientação do advogado contratado para a elucidação do caso e devolução de pertences da vítima, levados com o corpo e que teoricamente teriam sido juntados aos autos? Nem devolução de pertences, que não era o que interessava aos nossos Pais, e, pior, nem o esclarecimento das circunstâncias em que ocorrera a tragédia.

Meses antes, precisamente no aniversário de 48 anos de nossa Mãe, esse mesmo delegado agira com ardil quando uma equipe da patrulha da polícia (à época Corumbá só contava com Polícia Civil) tentara invadir, durante a madrugada, o quintal da casa de nossos Pais, como que estivesse no encalço de algum criminoso, sem mandado judicial ou contato prévio com os responsáveis pela moradia, no caso nossos Pais. Armado de um revólver Smith & Wesson 1948 calibre 32, com registro e autorização de posse, Seu Mahoma não hesitou em dar cinco disparos no rumo das lanternas, para assustar o que, no entender dele, eram assaltantes ou algo parecido. Jamais imaginou que policiais pudessem agir em arrepio da lei, sobretudo naqueles tempos em que civis deviam obediência à Polícia do Exército, que mensalmente realizava blitze noturna em toda a região em que morávamos, a Feira Boliviana, um conjunto de seis quarteirões situados nos arredores da Estação Ferroviária da Red Oriental, da Bolívia.

De março a setembro de 1974 meu Irmão confidenciara a nossos Pais que esporadicamente a viatura da ‘rádio patrulha’, como então eram chamados o Fusca e a Veraneio da Polícia Civil em Corumbá, o cercava quando, ao final da tarde, estava a caminho da faculdade ou ao retorno, à noite. Para evitar eventual arbitrariedade dos policiais, Mohamed passou a usar carona de Amigos para ir e para retornar das aulas. Bastante prudente, ele sabia dos abusos cometidos pelas autoridades durante as ditaduras na América Latina. Antes de estudar em Corumbá, ele fazia Sociologia na Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, interrompido com o recesso universitário decretado pelo coronel Hugo Banzer Suárez assim que consumou o sangrento golpe contra o seu superior, general Juan José Torres, em agosto de 1971.

A despeito de se dizer admirador de nossos Pais (a esposa, de ascendência síria, era de uma Família amiga), o delegado não só agira arbitrariamente no episódio dos agentes da Polícia Civil que invadiram sem autorização o quintal de nossa casa durante a madrugada, insinuando que nosso Irmão Mohamed era alvo de investigação nunca dada a público, como depois de sua eternização fez questão de liberar para a imprensa uma ocorrência cuja investigação não havia sido instaurada, que propiciou manchetes sensacionalistas do nível do jornal Notícias Populares, editado pelo grupo ‘Folhas’, de São Paulo.

Graças à solidariedade dos Amigos Juvenal Ávila de Oliveira, radialista na época, e João de Souza Alvarez, então repórter fotográfico, fui em sua companhia a todas as redações de jornais e rádios para deixar a versão de nossa Família, observando que o inquérito sequer tinha sido instaurado pela polícia. Por razões que desconheço (mas, obviamente, deduzo, afinal, estávamos nos anos de chumbo), somente o Diário de Corumbá, dirigido na ocasião por Carlos Paulo Pereira Junior, Filho do fundador, Amigo de meu Pai, assegurou o direito de resposta, em tom de retratação.

Um alivio em meio a esse sofrimento representou a solidariedade dos colegas de turma do curso de Psicologia do à época Centro Pedagógico de Corumbá da Universidade Estadual de Mato Grosso (CPC/UEMT), manifestada pelo saudoso Senhor Lincoln Gomes de Souza, também funcionário da agência local do Banco do Brasil. Seu Lincoln, tenor do coral da Igreja Matriz, conseguira autorização de Dom Ladislau Paz, Bispo Diocesano de Corumbá, para que fosse celebrada Missa de Sétimo Dia em memória de meu Irmão (na época suicida não podia ter celebração religiosa), bastante concorrida e na qual ele, com sua memorável voz de tenor, fizera questão de entoar cantos religiosos e temas líricos.

Outro gesto solidário foi de Dona Elza, esposa do popular Seu Brotinho, proprietário da quitanda próxima à pensão de nossa Família. Ela era seguidora da doutrina de Allan Kardec e, depois de consultar nossos Pais se aceitavam participar de sessão reservada na sede da União Espírita Corumbaense, foram informados de que, em mensagem recebida por um médium da entidade, meu Irmão dissera que não era suicida e que tivessem certeza de que, apesar da saudade que sentia por eles, a Família e os Amigos, ele estava bem em seu novo estágio de Vida. Além de inúmeras demonstrações de carinho e Amizade de pessoas dos mais diferentes segmentos sociais e denominações religiosas, esses gestos solidários proporcionaram um consolo para nossos Pais, que ficaram gratos com Seu Lincoln Gomes e demais colegas de curso; com Dona Elza, sua Família e seus Irmãos espíritas; com Juvenal Ávila e João Alvarez, e com a Família Nunes Pereira, proprietária do Diário de Corumbá, em que nosso Pai publicava seus artigos desde 1969, ano em que voltara a circular, depois de mais de 50 anos de interrupção.

Em La Paz e Cochabamba, onde Mohamed passou a maior parte de sua Vida, os Amigos e Companheiros do movimento estudantil e sindical também manifestaram a solidariedade altiva e ativa dos que não se curvaram ante o facínora Banzer e sua prepotência ilimitada. Em La Paz, onde ele cursara alguns anos de Engenharia Civil e depois Sociologia, o Frei Javier Luna Pizarro, ex-colega de movimento estudantil, se incumbiu de celebrar a missa em sua memória, destacando que em circunstância alguma seu Amigo e Companheiro de lutas inesgotáveis jamais seria um ‘suicida’, e desafiou as autoproclamadas ‘autoridades’ golpistas a provarem, até porque sabia que os policiais em Corumbá sequer tinham feito exame de balística. Por quê?

Cochabamba, que o acolheu ainda criança e o reencontrou jovem desassossegado nos anos 1960, foi a localidade em que em diversos setores da então cidade universitária da Bolívia homenagens e manifestações de pesar foram entoadas. O líder sindical Virgilio Céspedes, cruzenho de nascimento, foi uma das dezenas de vozes que não se constrangeram para chorar com intensidade. Fez questão de enviar um testemunho escrito ao nosso Pai em que assegurava que, em meio a inúmeras confidências, o caráter firme de Mohamed jamais permitiria um gesto suicida. Anos depois, pessoalmente, revelou a nossos Pais o rigor e a convicção com que conduzia a sua práxis transformadora.

No Líbano, igualmente, familiares, Amigos e ex-colegas do ensino médio fizeram uma noite de vigília em que poemas, crônicas e canções foram dedicadas à sua memória. Foram enviadas cinco fitas k-7 (‘cassete’) do áudio das manifestações de pesar, de solidariedade e, sobretudo, de retratação à memória daquele jovem exemplar que, nos quatro anos em que viveu no Líbano, foi líder emblemático por sua generosidade, abnegação e coragem. O professor de Filosofia, que se tornou seu Amigo, disse com todas as letras que em sã consciência Mohamed era mais um mártir do porvir libertador que não demoraria a chegar.

Havia 10 anos que nosso Pai emigrara pela segunda vez do Líbano, via Bolívia, para o Brasil, à procura de perspectivas promissoras para a nova geração de sua Família. Bastante atento às adversidades políticas no Oriente Médio, ele vislumbrara com uma década de antecedência a convulsão social que se gestava em seu país natal, em que em agosto de 1974 eclodira um conflito transformado em guerra civil que se arrastaria por mais de 25 anos, destruíra toda a infraestrutura da até então ‘Suíça do Oriente Médio’ e empobrecera a quase totalidade da população libanesa.

Nos quatro anos em que nossos Pais residiram no Líbano, de 1960 a 1963, em Ra’ssen-hache, cidade natal (departamento de Batroun, norte do Líbano) de Seu Mahoma, os oito filhos e filhas acabaram ganhando mais uma, a caçula, conterrânea do Pai. O bucólico povoado em que moramos foi cenário de uma tomada de consciência para toda a prole do casal de peregrinos em que, fosse da Amazônia ou dos Andes bolivianos, até o coração das montanhas libanesas, palpitara a consciência libertária cuja razão de ser é a Palestina milenar e seu incansável povo heroico.

“La vida no vale nada / sino es por perecer / por que otros puedan tener / lo que uno disfruta y ama.” (Pablo Milanés, ‘La Vida no Vale Nada’)

Ahmad Schabib Hany

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