Manifestação
intempestiva
O comandante da Marinha, com a
sua manifestação intempestiva, não contribui para o apaziguamento castrense. A
volta para os quartéis, em caráter incondicional e efetivo, é indispensável para
a manutenção do Estado Democrático de Direito: na história do Brasil não cabe
às forças armadas poder moderador nem de tutela.
Que o setor castrense precisa agir com parcimônia
e máximo rigor em suas funções e prerrogativas constitucionais, não há a menor
dúvida, e isso está fora de qualquer discussão. É a Constituição de 1988 que
deixou bastante claro, depois de 21 anos sob autoritarismo, ilegalidades e a penca
de arbitrariedades do regime de 1964, desde a prática recorrente e sistemática
da tortura até o desaparecimento de corpos de pessoas que não tinham qualquer pendência
com o Estado e muito menos com a Justiça.
Aos negacionistas de plantão, adeptos do mantra do
revanchismo e da conspiração à torta e direita, não custa lembrar o extenso
documento produzido, ainda na década de 1990, pelo relator do STM (Superior Tribunal Militar),
jurista Flávio da Cunha Flores Bierrenbach, destacando a inconsistência
jurídica e falta fundamentação constitucional das acusações contra cidadãos
comprovadamente inocentes que tiveram suas vidas transtornadas sem qualquer razão
à luz da legalidade. Bem entendido, isso quando não foram reduzidos a
cadáveres, desovados com identidades falsas e laudos forjados por médicos
legistas, tão criminosos quanto os executores.
Quando os três Poderes, por meio de seus
respectivos titulares, reiteraram de modo eloquente, em 9 de janeiro de 2023,
a defesa incondicional do Estado Democrático de Direito consignado na Carta
Constitucional promulgada pelo Senhor Diretas, Deputado Ulysses Guimarães, em 6
de outubro de 1988, não pairaram dúvidas de que o papel das instituições
castrenses precisava ser recomposto após a virulenta gestão do ex-capitão
desatinado desde seus anos juvenis e que por um ardil acabou cacifado para a
Presidência da República, a despeito de ser comprovadamente desqualificado para
relevante cargo.
Mesmo assim, o atual comandante da Marinha
incorreu em manifestação intempestiva ao se imiscuir em tramitação na Comissão
de Cultura da Câmara dos Deputados sobre a inclusão de João Cândido Felisberto
(cujo epíteto é Almirante Negro ou Mestre-sala dos Mares, na composição de João
Bosco e Aldir Blanc eternizada na voz de Elis Regina durante os anos de chumbo). Na
verdade, esta é a versão liberada pela censura, pois a primeira versão
simplesmente foi vetada em sua totalidade pelos ídolos dos que hoje se reputam paladinos
da ‘liberdade de expressão’ (sic):
“Faz muito tempo nas águas da Guanabara / O
dragão do mar reapareceu / Na figura de um bravo feiticeiro / A quem a história
não esqueceu / Conhecido como o Navegante Negro / Tinha a dignidade de um
mestre-sala / E ao acenar pelo mar / Na alegria das regatas / Foi saudado no
porto / Pelas meninas francesas / Jovens polacas / E por batalhões de mulatas /
Rubras cascatas jorravam das costas dos santos / Entre cantos e chibatas /
Inundando o coração do pessoal do porão / Que a exemplo do feiticeiro gritava
então / Glória aos piratas, às mulatas, às sereias / Glória à farofa, à
cachaça, às baleias / Glória a todas as lutas inglórias / Que através de nossa
história / Não esquecemos jamais / Salve o Navegante Negro / Que tem por
monumento / As pedras pisadas no cais / Mas salve / Salve o Navegante Negro /
Que tem por monumento / As pedras pisadas no cais / Mas faz muito tempo...”
(João Bosco e Aldir Blanc, 1974, versão interpretada por Elis Regina, com ‘faz
muito tempo’ em vez de ‘há muito tempo’ e ‘pelas meninas francesas’ em vez de ‘pelas
mocinhas francesas’, na segunda versão de João Bosco e Aldir Blanc.)
Belíssima composição,
digna da parceria imortal desses dois gigantes da MPB. Na voz da inesquecível
Elis Regina, então, tornou-se um clássico do cancioneiro brasileiro. Isso tudo
em pleno período de truculência da (mal)ditadura, nos anos de chumbo. João
Cândido Felisberto era vivo e pôde ouvi-la, ainda que sua saúde mental já
estivesse fragilizada, em decorrência de tantos atos de injustiça desde 1910, embora tivesse sido
anistiado logo depois da revolta, vitoriosa ao reconhecer a ilicitude do
castigo, degradante e cruel. Mas o estigma contra o Almirante Negro continua a
rondar a sua memória.
Nomeado pelo Presidente Lula no início de seu
atual mandato legitimamente conquistado pela vontade da maioria do eleitorado
nacional e contra o qual muitos servidores públicos com e sem farda tentaram um
golpe em 8 de janeiro, violando grave e acintosamente a disciplina e a
hierarquia militar, inclusive oficiais de altas patentes. Nesta semana, o Almirante
de esquadra Marcos Sampaio Olsen criticou em nota oficial o projeto de lei que
inclui no panteão de heróis e heroínas do Brasil o nome do líder da Revolta da
Chibata, João Cândido Felisberto, ocorrida em 1910, contra a tortura e os castigos físicos
cometidos por oficiais da Marinha a praças afrodescendentes e pobres, um
evidente castigo herdado do tempo da escravidão e que perdurara até aquela
ocasião.
Mas por que condenar João Cândido, líder da
Revolta da Chibata, de 1910, pela coragem e bravura de enfrentar os
desmandos dos governos oligárquicos da Velha República que não haviam banido
práticas hediondas, do tempo da escravidão de triste memória, quando a lei que
amparava essa prática repulsiva já havia sido revogada?
Por que um comandante de
uma das armas se insurgir intempestivamente contra projeto de lei que tramita
há anos no Congresso Nacional -- é bom que se diga que o projeto, que iniciou
no Senado da República, já tramitou e foi aprovado pelo plenário daquela casa
--, quando ele, como membro de um Governo de Reconstrução Nacional, cônscio do papel
histórico de assegurar equilíbrio e parcimônia dos setores castrenses,
irresponsavelmente atiçados por seres totalitaristas que tentaram de tudo para
romper a ordem democrática, mas que felizmente não tiveram competência e discernimento
para consumar tal projeto, próprio de fascistas, facínoras, terroristas?
Quem está por trás desse
conjunto de ações orquestradas para indispor o frágil equilíbrio duramente
construído pelo Presidente Lula para efetivar seu projeto de responsabilidade
social, responsabilidade fiscal e responsabilidade política? É nesta última
responsabilidade que se sustentam todos os ocupantes de cargos institucionais
do Governo Federal, sob a égide da constitucionalidade, dos valores
civilizatórios e sobretudo da soberania popular. A soberania -- popular,
nacional, tecnológica e alimentar -- é, aliás, a pedra angular em que se fundamenta
a estratégia deste Governo de Reconstrução Nacional.
Isso cheira, sim,
chantagem, revanchismo, licenciosidade daqueles que apostam no quanto pior
melhor. Felizmente o comandante da Marinha tem currículo em que sua trajetória
o referenda como militar institucionalista e rigorosamente focado nas
atividades-fim de seu ofício. No entanto, essa manifestação intempestiva,
provavelmente levada a efeito para atender ao seu público interno, não coaduna
com a sua prerrogativa de membro de um governo de pacificação e de
apaziguamento de um setor que só não chegou às vias de fato em 8 de janeiro
porque diversos atores políticos e militares entraram em cena nos bastidores,
inclusive as altas esferas diplomáticas junto à Casa Branca.
Como comandante da
Marinha, é sabedor de que desde quando a política entrou na caserna pela porta
dos fundos, à sorrelfa, a disciplina e a hierarquia ficaram comprometidas, e
por isso ele tem que ser o primeiro a dar o exemplo à tropa e aos vários escalões
do oficialato, de modo a assegurar o equilíbrio institucional e desintoxicar o
pensamento comum da caserna, impregnado pela ideologia fascista disseminada
pelos seguidores do inominável e seu séquito de negacionistas e obscurantistas
irresponsáveis.
Não se trata de opção, e
muito menos favor: é obrigação, dever histórico. A política que fique no
ambiente político. E agir com comedimento e prudência é não dar combustível às
labaredas espalhadas pelos quatro cantos do país. Lealdade e consciência com a
Nação, com o Estado Democrático de Direito, com a História. Até porque, mesmo
que tenha se tratado de um ato de insubordinação aquela revolta liderada por
João Cândido Felisberto, naquele período histórico era recorrente que o jovem
oficialato de todas as forças fosse às ruas defender nova ordem institucional,
pois o ambiente estava todo eivado da lúgubre promiscuidade dos ‘coronéis’ (‘caciques’
políticos regionais, em sua maioria donos de terras que tratavam a coisa
pública como extensão de suas propriedades, como se privada fosse) que mancharam de sangue os primórdios da vida
republicana.
À exceção
de alguns então jovens oficiais rebelados nos idos da década de 1920, como Luiz
Carlos Prestes quando um dos líderes da Coluna Prestes (entre 1924 e 1928), a
grande maioria dos generais e altos oficiais que participaram do golpe de 1º de
abril de 1964 eram ex-integrantes do Movimento Tenentista ou da própria Coluna
Prestes. Alguns já fora da caserna, em plena atividade política, como no caso
do cuiabano Filinto Strubing Müller, que de aliado de Getúlio Vargas encerrou
sua vida pública (e privada, pois morreu em seu aniversário de 73 anos no
desastre aéreo de Orly, na França)
como homem-forte -- líder da Arena no Congresso Nacional, depois presidente da
Arena, do Senado e do Congresso Nacional -- de Garrastazu Médici, um dos mais
temidos generais-presidentes do ciclo de 1964, cujo grupo da linha-dura não
hesitou em apear o vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo, para impor uma
junta militar cujo líder era o depois presidente de fato Médici.
Desde o dia em que as
urnas mostraram seu repúdio rotundo ao golpismo fascista em 2022, as hordas de hienas que atentam contra o Estado Democrático de
Direito, patrimônio do Povo Brasileiro, não são poucas e sequer agem com
moderação, como a esgarçar o tecido social e a tênue baliza da garantia
constitucional vigente. Não se pratica o ‘patriotismo’ atentando contra os
valores democráticos, estes sim sagrados e acima de qualquer dogma ou
relicário. Em nome da Democracia, pelo Brasil, é hora de somar na defesa dos
valores democráticos consignados na Carta Constitucional de 1988.
Ahmad
Schabib Hany
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