domingo, 7 de abril de 2024

ATÉ SEMPRE, ZIRALDO!

Até sempre, Ziraldo!

Mais que cartunista, ilustrador, cartazista, chargista, caricaturista, desenhista, humorista, jornalista, escritor e dramaturgo alado e talentoso, Ziraldo é expressão maior da inteligência brasileira e sua oposição ao regime de 1964 foi criativa e irreverente, exemplar para a sociedade civil, que tinha uma referência familiar no combate ao arbítrio, à censura e ao autoritarismo.

Atônitos ficamos todos pela eternização do gigante brasileiro de todos os tempos, Ziraldo Alves Pinto, ‘Pai’ da Turma do Pererê, Menino Maluquinho e, obviamente (aos de minha geração ou mais velhos), Jeremias, o Bom, um homem incapaz de fazer qualquer maldade, com o qual, em plena ditadura, Ziraldo criticava a sociedade e o regime militar. Assim como todos os meus Sobrinhos nascidos no Brasil, meus Filhos também apreciam esse genial crítico da sociedade contemporânea e outrora símbolo da luta contra a ditadura já não tão lido nas escolas, a despeito da diversidade de obras geniais infanto-juvenis.

Para as atuais gerações, é o ABZ do Ziraldo, da TV Brasil e reproduzida nas redes públicas Educativa e Cultura por este Brasil afora, o que vem rápido à lembrança, além da série de dezenas de episódios de Menino Maluquinho, da TV Educativa do Rio de Janeiro, décadas atrás. No entanto, com o ABZ se tornou conhecido do grande público, já idoso mas com cabeça conectadíssima à nossa realidade, de fazer inveja a muitos jovens tidos como formadores de opinião. Lamentavelmente, os golpistas em 2016, como era de se esperar, o tiraram do ar com a maior desenvoltura. Qual o argumento? Corte de gastos... Mas um detalhe, o ABZ do Ziraldo era uma produção independente que não onerava os cofres da União nem dos estados. É a velha história: Ziraldo incomoda a todo golpista, e ponto final.

Meu primeiro contato com o universo dos quadrinhos, ainda criança, recém-chegado à Corumbá de todos os povos e culturas, foi com o Ziraldo, que na época editava a sua revista Turma do Pererê na Editora O Cruzeiro, a mesma que publicava a decana das revistas semanais, ao estilo da Life, toda ilustrada. Alfabetizado em casa, as revistas em quadrinhos foram a melhor forma de aprender o português, pois em casa se falava árabe (tínhamos chegado do Líbano havia pouco tempo) e espanhol (afinal, de família boliviana, meu saudoso Pai nunca nos deixou sem estudar espanhol e ler sobre a História da Bolívia, além das aulas de árabe, que ele mesmo fazia questão de dar).

Essa revista, totalmente em cores, competia com todas as demais, importadas dos Estados Unidos, pela beleza dos traços e a temática toda baseada na realidade brasileira. A Mata do Fundão, local em que eram ambientadas as histórias, equivaleria à imaginária Patópolis de Walt Disney ou à africana ficcional Bangallia (não confundir com Bengali, na Ásia) de Fantasma, ‘o espírito que anda’, de Lee Falk e Ray Moore, mais tarde comprada pela poderosa DC Comics dos Estados Unidos. A revista chamara tanto a atenção, que diversas editoras estadunidenses, italianas e argentinas (onde até hoje há tradição de histórias em quadrinhos e um grande número de criadores e desenhistas de renome internacional), no afã de obter direitos autorais para editá-la em seus países, procuraram Ziraldo na época.

Jamais esquecerei de diversos anúncios de instituições bancárias -- privadas, porque os novos ‘donos do poder’, tão canalhas quanto os atuais ditos ‘patriotas’, perseguiram tanto Ziraldo, a ponto de proibir a continuidade da Turma do Pererê, campeã de tiragem por edição (em torno de 120 mil exemplares por edição em 1964, antes do cancelamento da publicação, por determinação do regime), em nome da defesa da ‘tradição, família e propriedade’ --, como o do Banco da Lavoura de Minas Gerais, com os traços emblemáticos de Ziraldo e sua sutileza genial, na época pouco perceptível para um garoto de, no máximo, seis anos. A perversidade dos golpistas de 1964 atingiu de morte a publicação, que, na década de 1970, creio que 1976, quando a Editora Abril tentou reintroduzi-la ao mercado editorial infanto-juvenil brasileiro, não conseguiu mais aquela procura que, nos anos 1950 e 1960, a revista tinha alcançado.

Mas veio o troco, em conta-gotas. Primeiro, ao lado de Millôr Fernandes na emblemática Pif-paf, coluna transformada, depois de sua demissão da O Cruzeiro em 1963, em revista quinzenal em maio de 1964 e que reuniu em seu elenco de artistas gráficos, desenhistas, ilustradores, cartunistas e jornalistas nomes como Eugênio Hirsh, Claudius Ceccon, Sérgio Porto [o imortal Stanislaw Ponte Preta], Rogério Fortuna, Jaguar e Emmanuel Vão Gogo [heterônimo do próprio Millôr]. Por conta da ‘Operação Limpeza’, desencadeada no pós-golpe de 1964, todas as publicações foram proibidas, e para assegurar a continuidade os veículos impressos tiveram que se dirigir, um a um, até o Ministério da Justiça para obter a licença do que viria a ser a Divisão de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal até o final do regime de 1964 -- ou seja, março de 1985, vinte e um anos depois.

Em 1968, quando dez colegas fizeram uma homenagem póstuma a Stanislaw Ponte Preta (o mesmo Sérgio Porto com quem Ziraldo já tinha trabalhado na Pif Paf, em 1964, ao lado de Millôr, Fortuna, Claudius e Jaguar), por meio da publicação em capa dura intitulada Dez em Humor, nascera o embrião do que viria a ser a maior publicação satírica da história do Brasil, tendo como foco o combate ao regime militar: O Pasquim, semanário irreverente que revolucionou o jornalismo brasileiro. Além dos jornalistas, ilustradores, desenhistas, chargistas, cartunistas, caricaturistas, humoristas, poetas e compositores citados anteriormente, vieram a se agregar ao carro-chefe da Editora Codecri (irreverente sigla de Comitê de Defesa do Crioléu), instalada em Ipanema, os geniais Tarso de Castro, Marta Alencar, Ciça (Companheira de Ziraldo), Henfil, Sérgio Augusto, Sérgio Cabral, Fausto Wolf, Paulo Francis, Ivan Lessa, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Zélio Alves Pinto (Irmão de Ziraldo), Nani, Luscar, Carlos Leonam, Ruy Castro, Caulos, Luiz Roza, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Prósperi, Miguel Paiva e Manoel ‘Ciribeli’ Braga. Aos poucos, foram compondo uma verdadeira plêiade de combatentes pela liberdade de expressão e democracia plena.

Contraditoriamente, depois da edição do Ato Institucional nº 5 [o temido AI-5, que acabou com o pouco de garantias constitucionais existentes até 13 de dezembro de 1968], pela Junta Militar que praticamente depôs o marechal Costa e Silva sob pretexto de ‘não mais ter condições de saúde para governar’ e impediu o vice-presidente Pedro Aleixo, um civil, de assumir a Presidência da República, O Pasquim passou a ser referência de todas as pessoas desejosas da volta da democracia. Em junho de 1969, quando finalmente a primeira edição sai às bancas, a tiragem era de apenas 28 mil exemplares e, em menos de seis meses, em dezembro do mesmo ano, a tiragem saltou aos 250 mil exemplares, pra ninguém botar defeito. Minha Irmã que na época queria fazer Jornalismo [depois acabou optando por Direito], passou a colecionar os exemplares que conseguiam chegar às bancas, pois a Censura muitas vezes recolhia os exemplares nas distribuidoras, antes de chegar às bancas. Quanto maior a perseguição, maior a credibilidade e a procura dos exemplares.

Depois da prisão de parte da turma, Tarso de Castro e Millôr Fernandes se engalfinham por detalhes na produção de uma das edições, e O Pasquim sofre um desfalque lamentável com a saída de Tarso, sua mulher Marta Alencar e mais alguns membros fundadores do jornal. Muitos anos depois, vão criar, com o dramaturgo Plínio Marcos, um alternativo paulistano chamado , que lamentavelmente sucumbe depois de algum tempo com as contas não fechando. Essa mesma turma, em 1975, é convidada pelo Jornalista Claudio Abramo, diretor de redação da Folha de S.Paulo e responsável pela transformação daquele jornalão, a criar o caderno de cultura da Folha, mas sem o hermetismo embolorado do provincianismo do Estadão. E assim, Tarso de Castro e Fortuna, fundadores de O Pasquim no Rio de Janeiro, aterrissam na Alameda Barão de Limeira, 425, e fundam uma paródia chamada Folhetim, que circula sem problemas por quase dois anos, até tropas da polícia do Coronel Antônio Erasmo Dias, secretário da Segurança Pública de São Paulo, invadirem a redação do jornal e, pelo gesto de intransigência do titular da Segurança, os Jornalistas Tarso de Castro e Marta Alencar acabam por ser demitidos e contratado o emblemático Mylton Severiano da Silva, o Miltainho, ex-editor-executivo da revista Realidade, que tenta driblar o assédio político de Boris Casoy (malufista que substituiu Abramo na direção de redação da Folha) e faz de tudo para recontratar ao menos Plínio Marcos e Fortuna no Folhetim, o que lhe custa o emprego ao afrontar Casoy.

Ziraldo, sempre generoso, usava a sua tinta nanquim para levantar bandeiras de causas justas do Brasil e do Planeta. Fosse em O Pasquim ou na revista Bundas (esse nome foi feito para contrapor-se às frivolidades de celebridades ligadas ao provincianismo das elites brasileiras -- isso em meados da década de 1990, mais de 25 anos antes da volta dos que não foram, como o inominável, agora inelegível), fosse editor ou coeditor, deu um jeito de trazer velhos e idôneos companheiros de ofício, como Fausto Wolf, autor de “Palestinos -- ‘judeus’ da Terceira Guerra Mundial”, para a cobertura de temas mais complexos, como o conflito israelo-árabe, ou simplesmente a Questão Palestina, com mais de 80 anos de destaque no noticiário internacional.

Emprestou também o seu talento para ilustrar autores da literatura, inclusive infantil, na qual ele também atuava desde a juventude. O Poeta Manoel de Barros, cuiabano em cuja infância viveu na Corumbá cosmopolita de meados do século XX e na Campo Grande nova Capital, teve as ilustrações de um de seus livros feitas por Ziraldo, em 2001: “O fazedor de amanhecer”, editada pela Salamandra. Pascoal Soto, editor de Salamandra, revela na contracapa do livro em sua primeira edição a resposta do Poeta, ainda em 2000, quando a editora comunicou o Poeta que conseguiu que Ziraldo, morando fora do Brasil, aceitasse o desafio: “Se o Ziraldo topou fazer a ilustração, eu também ficarei ilustre.” [Luiz Taques, que privou da Amizade do Poeta, foi quem me deu essa dica, ao saber da eternização do ‘Pai’ do ‘Menino Maluquinho’.]

A eternização de Ziraldo empobrece o País, já tão depauperado de pessoas iluminadas, eis que hoje abundam as e os recalcados. Felizmente ainda resistam pessoas de luz e de amor, como disse Manoel de Barros nessa mesma obra, que “se a gente não der o amor, ele apodrece em nós”. Imaginem a festa que deve estar sendo o reencontro de Ziraldo com Manoel de Barros e tantos outros parceiros de Vida, como Henfil, Tarso, Plínio, Millôr, Francis, Fortuna, Stanislaw, Nani... Até sempre, Ziraldo, e obrigado por ter existido!

Ahmad Schabib Hany

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