Até sempre, Ziraldo!
Mais que cartunista,
ilustrador, cartazista, chargista, caricaturista, desenhista, humorista,
jornalista, escritor e dramaturgo alado e talentoso, Ziraldo é expressão maior
da inteligência brasileira e sua oposição ao regime de 1964 foi criativa e
irreverente, exemplar para a sociedade civil, que tinha uma referência familiar
no combate ao arbítrio, à censura e ao autoritarismo.
Atônitos ficamos todos pela eternização do gigante
brasileiro de todos os tempos, Ziraldo Alves Pinto, ‘Pai’ da Turma do Pererê,
Menino Maluquinho e, obviamente (aos de minha geração ou mais velhos), Jeremias, o Bom, um homem incapaz de fazer qualquer maldade, com o qual, em plena
ditadura, Ziraldo criticava a sociedade e o regime militar. Assim como todos os
meus Sobrinhos nascidos no Brasil, meus Filhos também apreciam esse genial
crítico da sociedade contemporânea e outrora símbolo da luta contra a ditadura
já não tão lido nas escolas, a despeito da diversidade de obras geniais infanto-juvenis.
Para as atuais gerações,
é o ABZ do
Ziraldo, da TV Brasil e
reproduzida nas redes públicas Educativa e Cultura por este Brasil afora, o que
vem rápido à lembrança, além da série de dezenas de episódios de Menino
Maluquinho, da TV Educativa do Rio
de Janeiro, décadas atrás. No entanto, com o ABZ se tornou conhecido do grande público, já idoso mas com cabeça
conectadíssima à nossa realidade, de fazer inveja a muitos jovens tidos como
formadores de opinião. Lamentavelmente, os golpistas em 2016, como era de se esperar, o
tiraram do ar com a maior desenvoltura. Qual o argumento? Corte de gastos...
Mas um detalhe, o ABZ do Ziraldo era uma produção independente que não
onerava os cofres da União nem dos estados. É a velha história: Ziraldo
incomoda a todo golpista, e ponto final.
Meu primeiro contato com o universo dos
quadrinhos, ainda criança, recém-chegado à Corumbá de todos os povos e culturas,
foi com o Ziraldo, que na época editava a sua revista Turma do Pererê na
Editora O Cruzeiro, a mesma que publicava a decana das revistas semanais, ao
estilo da Life, toda ilustrada. Alfabetizado em casa, as revistas em
quadrinhos foram a melhor forma de aprender o português, pois em casa se falava
árabe (tínhamos chegado do Líbano havia pouco tempo) e espanhol (afinal, de família boliviana,
meu saudoso Pai nunca nos deixou sem estudar espanhol e ler sobre a História da
Bolívia, além das aulas de árabe, que ele mesmo fazia questão de dar).
Essa revista, totalmente
em cores, competia com todas as demais, importadas dos Estados Unidos, pela beleza
dos traços e a temática toda baseada na realidade brasileira. A Mata do Fundão,
local em que eram ambientadas as histórias, equivaleria à imaginária Patópolis
de Walt Disney ou à africana ficcional Bangallia (não confundir com Bengali, na
Ásia) de Fantasma, ‘o espírito que anda’, de Lee Falk e Ray
Moore, mais tarde comprada pela poderosa DC Comics dos Estados Unidos. A
revista chamara tanto a atenção, que diversas editoras estadunidenses,
italianas e argentinas (onde até hoje há tradição de histórias em quadrinhos e
um grande número de criadores e desenhistas de renome internacional), no afã de
obter direitos autorais para editá-la em seus países, procuraram Ziraldo na
época.
Jamais esquecerei de
diversos anúncios de instituições bancárias -- privadas, porque os novos ‘donos
do poder’, tão canalhas quanto os atuais ditos ‘patriotas’, perseguiram tanto
Ziraldo, a ponto de proibir a continuidade da Turma do Pererê, campeã de tiragem por edição (em torno de 120 mil exemplares por edição em 1964, antes do cancelamento da
publicação, por determinação do regime),
em nome da defesa da ‘tradição, família e propriedade’ --, como o do Banco da
Lavoura de Minas Gerais, com os traços emblemáticos de Ziraldo e sua sutileza
genial, na época pouco perceptível para um garoto de, no máximo, seis anos. A
perversidade dos golpistas de 1964 atingiu de morte a publicação, que, na
década de 1970, creio que 1976,
quando a Editora Abril tentou reintroduzi-la ao mercado editorial
infanto-juvenil brasileiro, não conseguiu mais aquela procura que, nos anos 1950 e 1960, a revista tinha alcançado.
Mas veio o troco, em
conta-gotas. Primeiro, ao lado de Millôr Fernandes na emblemática Pif-paf, coluna transformada, depois de sua demissão
da O Cruzeiro em 1963, em revista quinzenal em maio de
1964 e que reuniu em seu elenco de artistas gráficos, desenhistas, ilustradores,
cartunistas e jornalistas nomes como Eugênio Hirsh, Claudius Ceccon, Sérgio
Porto [o imortal Stanislaw Ponte Preta], Rogério Fortuna, Jaguar e Emmanuel Vão
Gogo [heterônimo do próprio Millôr]. Por conta da ‘Operação Limpeza’,
desencadeada no pós-golpe de 1964, todas as publicações foram proibidas, e para
assegurar a continuidade os veículos impressos tiveram que se dirigir, um a um,
até o Ministério da Justiça para obter a licença do que viria a ser a Divisão
de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal até o final
do regime de 1964 -- ou seja, março de 1985, vinte e um anos depois.
Em 1968, quando dez colegas fizeram uma homenagem
póstuma a Stanislaw Ponte Preta (o mesmo Sérgio Porto com quem Ziraldo já tinha
trabalhado na Pif Paf, em 1964, ao lado de Millôr, Fortuna, Claudius e
Jaguar), por meio da publicação em
capa dura intitulada Dez em Humor, nascera o embrião do que viria a ser a
maior publicação satírica da história do Brasil, tendo como foco o combate ao
regime militar: O Pasquim, semanário irreverente que revolucionou o
jornalismo brasileiro. Além dos jornalistas, ilustradores, desenhistas,
chargistas, cartunistas, caricaturistas, humoristas, poetas e compositores
citados anteriormente, vieram a se agregar ao carro-chefe da Editora Codecri (irreverente
sigla de Comitê de Defesa do Crioléu), instalada em Ipanema, os geniais Tarso
de Castro, Marta Alencar, Ciça (Companheira de Ziraldo), Henfil, Sérgio
Augusto, Sérgio Cabral, Fausto Wolf, Paulo Francis, Ivan Lessa, Chico Buarque,
Vinícius de Moraes, Zélio Alves Pinto (Irmão de Ziraldo), Nani, Luscar, Carlos
Leonam, Ruy Castro, Caulos, Luiz Roza, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Prósperi,
Miguel Paiva e Manoel ‘Ciribeli’ Braga. Aos poucos, foram compondo uma verdadeira
plêiade de combatentes pela liberdade de expressão e democracia plena.
Contraditoriamente,
depois da edição do Ato Institucional nº 5 [o temido AI-5, que acabou com o
pouco de garantias constitucionais existentes até 13 de dezembro de 1968], pela
Junta Militar que praticamente depôs o marechal Costa e Silva sob pretexto de ‘não
mais ter condições de saúde para governar’ e impediu o vice-presidente Pedro
Aleixo, um civil, de assumir a Presidência da República, O Pasquim passou a ser referência de todas as pessoas
desejosas da volta da democracia. Em junho de 1969, quando finalmente a
primeira edição sai às bancas, a tiragem era de apenas 28 mil exemplares e, em
menos de seis meses, em dezembro do mesmo ano, a tiragem saltou aos 250 mil exemplares, pra ninguém
botar defeito. Minha Irmã que na época queria fazer Jornalismo [depois acabou
optando por Direito], passou a colecionar os exemplares que conseguiam chegar
às bancas, pois a Censura muitas vezes recolhia os exemplares nas
distribuidoras, antes de chegar às bancas. Quanto maior a perseguição, maior a
credibilidade e a procura dos exemplares.
Depois da prisão de
parte da turma, Tarso de Castro e Millôr Fernandes se engalfinham por detalhes
na produção de uma das edições, e O Pasquim sofre um desfalque
lamentável com a saída de Tarso, sua mulher Marta Alencar e mais alguns membros
fundadores do jornal. Muitos anos depois, vão criar, com o dramaturgo Plínio
Marcos, um alternativo paulistano chamado Já, que lamentavelmente sucumbe depois de algum tempo com as contas não
fechando. Essa mesma turma, em 1975, é convidada pelo Jornalista Claudio
Abramo, diretor de redação da Folha de S.Paulo e responsável pela transformação
daquele jornalão, a criar o caderno de cultura da Folha, mas sem o hermetismo embolorado do provincianismo do Estadão. E assim, Tarso de Castro e Fortuna,
fundadores de O Pasquim no Rio de Janeiro,
aterrissam na Alameda Barão de Limeira, 425, e fundam uma paródia chamada Folhetim, que circula sem problemas por quase dois
anos, até tropas da polícia do Coronel Antônio Erasmo Dias, secretário da
Segurança Pública de São Paulo, invadirem a redação do jornal e, pelo gesto de
intransigência do titular da Segurança, os Jornalistas Tarso de Castro e Marta
Alencar acabam por ser demitidos e contratado o emblemático Mylton Severiano da
Silva, o Miltainho, ex-editor-executivo da revista Realidade, que tenta driblar o assédio político de Boris Casoy (malufista que substituiu
Abramo na direção de redação da Folha) e faz de tudo para recontratar ao menos
Plínio Marcos e Fortuna no Folhetim, o que lhe custa o emprego ao afrontar
Casoy.
Ziraldo, sempre generoso, usava a sua tinta nanquim
para levantar bandeiras de causas justas do Brasil e do Planeta. Fosse em O
Pasquim ou na revista Bundas (esse nome foi feito para contrapor-se às
frivolidades de celebridades ligadas ao provincianismo das elites brasileiras
-- isso em meados da década de 1990, mais de 25 anos antes da volta dos que não
foram, como o inominável, agora inelegível), fosse editor ou coeditor, deu um jeito de trazer velhos e idôneos
companheiros de ofício, como Fausto Wolf, autor de “Palestinos -- ‘judeus’ da
Terceira Guerra Mundial”, para a cobertura de temas mais complexos, como o
conflito israelo-árabe, ou simplesmente a Questão Palestina, com mais de 80 anos de destaque no noticiário
internacional.
Emprestou também o seu talento para ilustrar
autores da literatura, inclusive infantil, na qual ele também atuava desde a
juventude. O Poeta Manoel de Barros, cuiabano em cuja infância viveu na Corumbá
cosmopolita de meados do século XX e na Campo Grande nova Capital, teve as
ilustrações de um de seus livros feitas por Ziraldo, em 2001: “O fazedor de amanhecer”, editada
pela Salamandra. Pascoal Soto, editor de Salamandra, revela na contracapa do
livro em sua primeira edição a resposta do Poeta, ainda em 2000, quando a
editora comunicou o Poeta que conseguiu que Ziraldo, morando fora do Brasil,
aceitasse o desafio: “Se o Ziraldo topou fazer a ilustração, eu também ficarei
ilustre.” [Luiz Taques, que privou da Amizade do Poeta, foi quem me deu essa
dica, ao saber da eternização do ‘Pai’ do ‘Menino Maluquinho’.]
A eternização de Ziraldo empobrece o País, já tão
depauperado de pessoas iluminadas, eis que hoje abundam as e os recalcados. Felizmente
ainda resistam pessoas de luz e de amor, como disse Manoel de Barros nessa
mesma obra, que “se a gente não der o amor, ele apodrece em nós”. Imaginem a
festa que deve estar sendo o reencontro de Ziraldo com Manoel de Barros e
tantos outros parceiros de Vida, como Henfil, Tarso, Plínio, Millôr, Francis, Fortuna,
Stanislaw, Nani... Até sempre, Ziraldo, e obrigado por ter existido!
Ahmad
Schabib Hany
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