A
Revolução dos Cravos e nosso Primeiro de Maio
O que tem a ver conosco a Revolução
dos Cravos, que acabou com mais de quatro décadas da ditadura salazarista em
Portugal há 50 anos: dez anos depois, em 25 de abril de 1984, a
Emenda Dante de Oliveira, das Diretas-já, abalava as estruturas do regime de
1964, que em menos de um ano já acabara.
Nos versos de nosso grande Chico Buarque, em
‘Tanto Mar’, temos uma crônica sonora e eloquente do que foi para nós a
Revolução dos Cravos, que mandou os fascistas lusitanos para aquele lugar, do
qual jamais deveriam ter saído. Abaixo, a letra da segunda versão, de 1978,
escrita em parceria com o pai do compositor, o Historiador Sérgio Buarque de
Holanda, em tom mais melancólico, por conta da virada de mesa pós-revolução:
“Foi bonita festa, pá / Fiquei contente / Inda
guardo renitente / Um velho cravo para mim / Já murcharam tua festa, pá / Mas
certamente / Esqueceram uma semente / Em algum canto de jardim / Sei que há
léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá /
Navegar, navegar / Canta a primavera, pá / Cá estou carente / Manda novamente /
Algum cheirinho de alecrim...”
Em 25 de abril de 1974 -- portanto, 50 anos atrás --, o povo
português dava um basta rotundo aos facínoras encastelados havia mais de quatro
décadas, desde o obscuro período entre guerras (1917-1939). Aliado dos
fascistas e nazistas, de triste memória, António Salazar e sequazes
transformaram em uma currutela oligárquica a emblemática República de Portugal,
duramente conquistada em 1910,
mas sempre sob o assédio da cobiça da realeza, que sonhava com a volta às
benesses do poder, até o tiro de misericórdia dado por Salazar, em 1932. O
martírio vivido pelo povo português não se limitara ao território lusitano, mas
a todas as populações dos países sob domínio colonial (Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial, na África, e Goa,
Macau e Timor Leste, na Ásia).
Em 1964, o
então principal líder civil do golpe militar de 1º de abril no Brasil, governador
Carlos Lacerda (UDN), da Guanabara, estivera em Portugal, tendo sido recebido
com honras de chefe de Estado. Em discurso na sede do Conselho de Governo,
Lacerda manifestara apoio incondicional à ditadura obscurantista em seu
tirânico combate à luta anticolonial em Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e
Moçambique. Ironicamente, um dos principais fatores do sucesso da Revolução dos
Cravos, além do desgaste de uma ditadura longeva e cujo líder morrera quatro
anos antes, foi o sentimento popular português contra as ações repressivas da
ditadura portuguesa em sua desesperada perseguição aos patriotas angolanos,
moçambicanos, cabo-verdianos e guinéus que lutavam por sua independência.
O fim da
ditadura salazarista se deu com a deposição do todo-poderoso Marcello Caetano,
um ‘civil’ que era um misto de Emílio Garrastazu Médici e Luiz Antônio da Gama
e Silva (aquele ‘civil’ que consolidou o poder dos militares em 1968, quando a Junta
Militar impediu que o vice-presidente Pedro Aleixo assumisse diante do
impedimento de Arthur da Costa e Silva, por problemas de saúde). Estimado(a)
leitor(a), imagine para qual país ele partiu em seu exílio? O Brasil, recebido
com honras de chefe de Estado, dadas as semelhanças dos regimes tirânicos e totalitários,
com facínoras como o nefasto coronel Ustra, ídolo do inominável (e agora
inelegível). Uma das tantas vergonhas históricas que temos em registro, para
que ninguém venha com... “mi-mi-mi”!
E que
fique claro: a Revolução dos Cravos foi liderada por um general -- sim, um
general anticolonialista --, o General António Spínola, que preparou o país
para a democracia plena sem qualquer mordaça, e em seis meses entregou aos
civis, em meio a controvérsias, é verdade. Como em toda transição, houve muita
discórdia e exacerbação em seu breve governo, mas o saldo indiscutível foi o
fim de uma ditadura de características perversas. Diferente de Castelo Branco,
Costa e Silva e Médici, Spínola não só tinha convicções democráticas como
também tinha compreensão de geopolítica, em plena guerra fria, sendo contrário
à continuidade do colonialismo de Portugal em quatro dos cinco continentes do
Planeta.
Um país
como Portugal, cuja história foi marcada por reinos déspotas tirânicos e em seu
breve período republicano o golpe militar seguido de uma ditadura parlamentar
imposta pela ultradireita representada por António Salazar, era de se esperar
um hiato de insubordinação geral das massas depois de décadas de repressão
tirânica. Salazar, diga-se aos mais jovens, é comparável a ninguém menos que
seus contemporâneos Benito Mussolini, Adolf Hitler e Francisco Franco. Alguém
que conhece famílias portuguesas que migraram durante o salazarismo para o
Brasil tem histórias tétricas para contar, como o Senhor Manuel Avelino,
querido Amigo que migrou primeiro para a Argentina e pela Bacia do Prata chegou
a Corumbá.
Lamentavelmente
ele se eternizou dez anos depois de sua Companheira de Vida, a querida Dona
Lídia, uma gigante cuiabana que com lealdade e muita luz acompanhou e partilhou
da luta pela sobrevivência em solo brasileiro. Ele era dono da horta-verduraria
localizada na Frei Mariano, bem em frente do ginásio e da sede social do
Riachuelo F.C. Por mais de cinquenta anos, Seu Manuel honrou seu sustento
produzindo verduras e hortifrútis a preços competitivos e bastante saudáveis.
Mais de trinta anos que se retiraram do terreno que pertence a outra família de
origem portuguesa, há plantas cultivadas por ele ainda em pé e dando frutos
generosamente.
Mas o que
interessa é que Seu Manuel, um senhor de vestes humildes e voz grave, não era
qualquer um, como muitos pensavam. Em Portugal, em plena juventude, ele fora
membro da resistência socialista à ditadura salazarista, razão pela qual a Família
decidira mandá-lo para o ‘exílio’, a fim de preservar a sua Vida. Isso ele só
contava às pessoas com as quais tinha plena confiança. Fui um dos
privilegiados, sobretudo, após as humilhações sofridas por minha Família
depois do que foi feito com a memória meu Irmão cuja Vida foi interrompida aos
25 anos. Entre 1975 e 1978 (ano que me mudei para a ‘Novacap’ para estudar e
trabalhar em redações de jornal mais estruturadas), conversávamos longamente
nos fins de tarde, depois de sua dura jornada de lavrador e antes de sair para
suas noitadas de jogo de truco com seus Amigos.
Como
poucos em Corumbá, conhecia os ‘subversivos’ e os ‘olheiros’ do regime.
Ensinou-me muito ao me alertar para certos indivíduos solícitos que vivem a
capturar informações voluntaristas soltas ao vento. Aliás, Seu Manuel Avelino
conhecia e de vez em quando fazia compras no comércio de Seu Mohamed Bazzi,
conhecido por Abu Kamel (Pai do Kamel, o Filho mais velho), libanês socialista
também Amigo de meu saudoso Pai e proprietário da Casa das Flores, na Frei
Mariano, em frente à Praça Independência. Os cachorros do regime podiam tudo,
menos impedir o raiar do sol, e assim socialistas e democratas de todo o mundo
se reencontravam em Corumbá, ainda que cercados de cuidados.
PRIMEIRO
DE MAIO PALESTINO
O Primeiro
de Maio deste ano é dedicado ao Povo Palestino, vítima de guerra de extermínio
em Gaza (como já foi em todo o território da Palestina Ocupada, inclusive
Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém). Por isso, Dia do Trabalhador
Palestino. A bem da verdade, pela primeira vez não sou convidado para a
construção coletiva de organização deste Dia Internacional dos Trabalhadores.
Deve ser porque depois do 65 anos, nesta sociedade de consumo e de ostentação,
nos tornamos ‘in’ -- invisíveis, insatisfatórios e indesejáveis --, mas, o que
importa mesmo é que o acúmulo de décadas (e não são poucas) seja levado em conta,
como, por exemplo, a celebração conjunta com as organizações operárias da
fronteira boliviana, como fizemos em 2018, e que sofreu
descontinuidade não sei por quê.
Que a Revolução dos Cravos e a trajetória de
homens do povo com consciência de classe, como os saudosos Manuel Avelino,
Mohamed Bazzi, Kaplan Hamdan [saudoso comerciante palestino, socialista
convicto], Jadallah Safa [saudoso ativista palestino], Victorio José Menéndez
[saudoso comerciante espanhol pioneiro em material de reciclagem, década de 1960),
Rubén Darío Román Vaca [saudoso administrador ferroviário boliviano,
ex-sindicalista, Pai dos queridos Amigos Rubén, Roma, Ruberth, Romeo e Rocío] e
tantos outros que habitaram Corumbá no tempo de seu cosmopolitismo, façam com
que seja realidade nosso Primeiro de Maio Palestino, como foi aprovado nas diferentes centrais
e uniões sindicais pelo mundo afora.
Em que consiste a celebração do Dia do Trabalhador
Palestino? Nada de impossível de ser organizado e realizado como as tantas
celebrações de anos anteriores. Apenas a diferença de ser voltada para a
solidariedade dos trabalhadores e trabalhadoras palestinas, de seus Filhos e
Filhas vítimas da guerra de extermínio há meses, senão anos [noticiada de
forma sórdida, cínica e mentirosa pelas agências de notícias e empresas de
comunicação de todo o mundo], e da necessidade de mobilizar pessoas livres e
solidárias para manter vívida e ativa a manifestação por cessar-fogo imediato,
condenação do estado terrorista sionista e, sobretudo, fortalecer a rede
humanitária em todo o País em defesa da Palestina e de sua população
depauperada e destituída de direitos humanos e até animais.
É certo que vivemos tempos adversos, de imprevisibilidade
absurda. Ao extremo de sermos surpreendidos por atitudes as mais inusitadas de
pessoas com quem convivemos ao longo de décadas. Mas nada justifica a omissão,
a indiferença com o que está acontecendo neste momento no Planeta: um genocídio
só comparável ao cometido pelo inominável nazista alemão [na verdade, austríaco;
e de mãe judia, sim senhor]. Viva a Revolução dos Cravos! Glória aos heróis que
tombaram na luta contra a opressão e o massacre na Palestina e em todo o
Planeta, inclusive o Brasil e a Bolívia, numa ainda que utópica celebração
conjunta!
Ahmad
Schabib Hany
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