Ao comemorar seus 25 anos,
Mohamed parecia estar se despedindo de nós pela maneira com que agira naquela sexta-feira,
como nosso Pai observara em sua primeira crônica de homenagem ao Primogênito
que partira precoce e tragicamente.
Sexta-feira, 25 de janeiro de 1974. Até parecia
que Mohamed soubesse que era seu último aniversário entre nós. Acordara mais
cedo que de hábito e fizera um pedido bem diferente do que lhe era peculiar.
Nossos Pais o atenderam nesse pedido. Quando se eternizou, oito meses depois,
nosso Pai observou esse episódio em sua primeira crônica de homenagem póstuma
ao Primogênito, publicada no Diário de
Corumbá e em Presencia, de La Paz,
dois jornais que também se tornaram eternos.
Eram anos de chumbo, inclusive na Bolívia, onde
ele interrompera contra sua vontade o curso de Sociologia na Universidad Mayor
de San Andrés, em La Paz. O sangrento golpe de agosto de 1971 capitaneado pelo
facínora Hugo Banzer Suárez, que pusera em recesso as universidades durante
vários anos, o impelira a fazer Psicologia no Centro Pedagógico de Corumbá, então
da Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), onde encontrara um elevado
número de conterrâneos cursando licenciaturas de Pedagogia, Ciências e
Psicologia, pelas mesmas razões que ele: recesso imposto pela ditadura às
atividades universitárias.
Desde que começara aquele fatídico ano, em que o
regime de 1964 comemorava seus dez anos com uma avalanche de spots ufanistas e
eventos escolares comemorativos sem perder os propósitos doutrinários da
‘segurança nacional’, um clima estranho rondava nosso lar: no início do ano,
vizinhos muito queridos, como Seu Jubiraci, Filho de Dona Eusébia e Esposo de
Dona Benedita, cuja casa dava de fundo à pensão de nossos Pais, fora vítima de
bala perdida numa madrugada em que a polícia dizia perseguir criminosos em fuga.
E não demorou muito para que, na madrugada de 11 de março, dia de aniversário
de nossa Mãe, uma balaceira em que o alvo era o nosso lar e o pretexto era de
que alguém andava com pedras arremessando contra telhados vizinhos, insinuando
que fosse logo Mohamed, que comigo dormíamos nas noites quentes pantaneiras no
quintal. Só se identificaram depois que nosso Pai revidara com cinco tiros de
sua Smith & Wesson calibre 32,
devidamente registrada, uma relíquia que o acompanhava desde seus tempos de
mascate na Amazônia boliviana.
Eram os ‘hômi’, feito jagunços, fazendo tiro ao
alvo com a certeza da impunidade: aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da
lei. Consigna dos nefastos facínoras que, sem concurso e sob os piores
critérios republicanos, lotavam as repartições policiais pelo país. Se anos anteriores
as blitze da Polícia do Exército se demoraram a tentar entender como um modesto
comerciante pudesse ter uma biblioteca imponente e se detivessem a tentar ler
línguas estranhas, como árabe, francês, espanhol e inglês, doravante a guerra
estava declarada, sob pretexto de nosso saudoso Pai ter encabeçado um movimento
que pretendia apaziguar as noites violentas que ensanguentavam a ex-Feira
Boliviana, como então era denominado aquele perímetro próximo à antiga estação
ferroviária boliviana (e depois da Estação Ferroviária Internacional, a partir
de 1968).
Embora pacata, Corumbá nos anos de chumbo
experimentara uma, digamos, vida paralela, para a qual nosso sábio Pai sempre
nos advertia: muito cuidado com as aparências, não se deixem encantar pelo
dourado dos confetes. Creio que um ditado árabe. Daí porque todos nós éramos
criteriosos com compromissos fora dos escolares (ou, no caso de Mohamed,
universitários). Mesmo assim, a partir de então, não foram poucos os assédios
provocativos da Veraneio da Polícia Civil quando ele se dirigia a pé ao Centro
Pedagógico, que havia poucos anos se instalado na atual Unidade I do atual
Campus Pantanal da UFMS. Na volta, sempre não faltava a carona de Amigos ou
colegas de turma.
Esse assédio, dissimulado porque o então delegado
regional de Polícia havia sido professor de Matemática meu e de Educação Moral
e Cívica de minhas Irmãs e conhecia a Família, fazia com que Mohamed tomasse as
suas precauções. Experiente, ele havia sido dirigente estudantil boliviano desde
os tempos de secundarista. Aliás, ele e meu Irmão Muslim, que permanecera em
Cochabamba para cursar Medicina na Universidad Mayor de San Simón, onde também
foi destacado dirigente estudantil. Além de meu Pai, bastante politizado, os
nossos Irmãos mais velhos exerciam naturalmente uma liderança que incomodava os
‘paus-mandados’ das ditaduras.
A simplicidade, espontânea, mas provocadora aos
olhos da repressão velada e impiedosa existente no cosmopolita centro comercial
que despertava a cobiça dos novos ‘donos do poder’, ex-udenistas em sua
maioria, que tentavam ‘exorcizar’ os resquícios trabalhistas que predominavam
no imaginário política da população corumbaense. Aqueles dez anos de existência
do regime não foram fáceis para os gendarmes e títeres dos generecos de
Brasília: Corumbá sempre fora um bastião da vanguarda política brasileira, onde
senão os mais importantes sindicatos, os mais numerosos e mobilizados
escreveram os primeiros passos da esquerda no Centro-Oeste brasileiro, tais
como os dos marítimos, carroceiros, comerciários, estivadores, ferroviários,
bancários, garções e trabalhadores da construção civil.
Até o mais popular e pujante time de futebol era
ligado à categoria profissional que mais incomodava a ditadura, o Marítimo,
então tetracampeão de futebol do Centro-Oeste do Brasil. Somente anos depois,
por meio do agora saudoso e querido Amigo Professor Fausto Mato Grosso, soube
que a resistência ao regime de 1964 em Corumbá foi a maior de Mato Grosso (uno
à época), mais que em Cuiabá. Para a esquerda, que se unira contra o regime
ditatorial, era uma questão de honra defender Corumbá das tentativas de
cerceamento de toda espécie causada pelos paus-mandados da ditadura. Se a
resistência mantinha seus ‘olhos’ atentos, imaginem os arapongas, muito bem
pagos...
O querido Amigo, Seu Arlindo Diniz, Pai da
Professora Denise Campos Diniz, me contara que seu Cunhado, Ibrahim Ismael
(Irmão do conhecido comerciante Júlio Emílio Ismael, dono da ‘Casa Botafogo’,
mais tarde presidente local da Arena por conta de seus vínculos com o deputado
Armando Anache e seu padrinho político, senador Filinto Müller) fora um dos
aprisionados no navio-prisão Guarapuava, do Serviço de Navegação Bacia do Prata
S/A, estatal de navegação que substituiu o Loide Brasileiro nas águas
interiores do Centro-Oeste. Com ele, o escritor e dono do emblemático Hotel
Luzia (onde hoje é o Hotel Lincoln), saudoso Amigo Adolpho Jorge da Cunha (autor
de uma trilogia sobre os poaieiros de Mato Grosso, que tive a honra de conhecer
na Editora Joruês, em São Paulo, ao lado de José Paulo Netto, então editor de
Internacional da Voz da Unidade), Seu
Juquinha (Senhor Guinemer Gomes da Silva, Pai do Professor Gabriel Stálin Gomes
da Silva), Senhor Pedro Lins (o vereador mais votado pelo trabalhismo) e mais
tarde o Doutor Amorésio de Oliveira (advogado eleito deputado estadual, mas
esquecido pelos Camaradas).
Cinquenta anos depois, as hordas de hienas
odientas estão à espreita, depois da ressaca de um desgoverno de delirantes
terraplanistas que fizeram, em poucos anos, com que o País retrocedesse 50
anos, ou mais. Talvez 100, pois o desserviço prestado em nome de falsa patriotada
causou feridas profundos no tecido social pátrio, coisa que levará anos para se
recompor. Enquanto isso, as pessoas que mantiveram sua lucidez incólumes ainda
que sob intensa ameaça dos delirantes tentam remendar como podem os cacos de
uma sociedade totalmente alvoroçada e com traumas indizíveis.
Parodiando o querido e saudoso Gonzaguinha (Luiz
Gonzaga Junior, talentoso Filho do Rei do Baião, com quem pudemos compartilhar
momentos memoráveis no início da década de 1980 graças aos Companheiros do movimento
estudantil por três vezes), fico com a pureza da contemplação dos felinos, é a Vida,
é a Vida... Véspera do cinquentenário do último aniversário de nosso Irmão
Mohamed, dois gatinhos de minhas Irmãs, Manolito e Pietra, no dia 24 de janeiro
de 2024, foram flagrados por nossa Irmã Wadia contemplando por quase meia hora
o quadro que nosso saudoso Pai pediu a uma querida Amiga artista plástica
chilena, María Estela Martínez, que fizesse com base em uma foto de meu Irmão e
a foto do flamboyant que ele eternizou em suas crônicas feita pelo querido
Amigo João de Souza Alvarez antes que ruísse pelo tempo. É a imagem, sem
edição, que está no topo do texto.
Ahmad
Schabib Hany
Um comentário:
Por favor, "garçons" em vez de (putz!) "garções". Há outros dois erros perceptíveis, mas não me lembro. E não adianta atribuir ao "corretor" do aplicativo, porque foi barriga de revisor, nos dois sentidos...
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