quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

AO CINQUENTENÁRIO DOS 25 ANOS DE MOHAMED



Ao cinquentenário dos 25 anos de Mohamed

Ao comemorar seus 25 anos, Mohamed parecia estar se despedindo de nós pela maneira com que agira naquela sexta-feira, como nosso Pai observara em sua primeira crônica de homenagem ao Primogênito que partira precoce e tragicamente.

Sexta-feira, 25 de janeiro de 1974. Até parecia que Mohamed soubesse que era seu último aniversário entre nós. Acordara mais cedo que de hábito e fizera um pedido bem diferente do que lhe era peculiar. Nossos Pais o atenderam nesse pedido. Quando se eternizou, oito meses depois, nosso Pai observou esse episódio em sua primeira crônica de homenagem póstuma ao Primogênito, publicada no Diário de Corumbá e em Presencia, de La Paz, dois jornais que também se tornaram eternos.

Eram anos de chumbo, inclusive na Bolívia, onde ele interrompera contra sua vontade o curso de Sociologia na Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz. O sangrento golpe de agosto de 1971 capitaneado pelo facínora Hugo Banzer Suárez, que pusera em recesso as universidades durante vários anos, o impelira a fazer Psicologia no Centro Pedagógico de Corumbá, então da Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), onde encontrara um elevado número de conterrâneos cursando licenciaturas de Pedagogia, Ciências e Psicologia, pelas mesmas razões que ele: recesso imposto pela ditadura às atividades universitárias.

Desde que começara aquele fatídico ano, em que o regime de 1964 comemorava seus dez anos com uma avalanche de spots ufanistas e eventos escolares comemorativos sem perder os propósitos doutrinários da ‘segurança nacional’, um clima estranho rondava nosso lar: no início do ano, vizinhos muito queridos, como Seu Jubiraci, Filho de Dona Eusébia e Esposo de Dona Benedita, cuja casa dava de fundo à pensão de nossos Pais, fora vítima de bala perdida numa madrugada em que a polícia dizia perseguir criminosos em fuga. E não demorou muito para que, na madrugada de 11 de março, dia de aniversário de nossa Mãe, uma balaceira em que o alvo era o nosso lar e o pretexto era de que alguém andava com pedras arremessando contra telhados vizinhos, insinuando que fosse logo Mohamed, que comigo dormíamos nas noites quentes pantaneiras no quintal. Só se identificaram depois que nosso Pai revidara com cinco tiros de sua Smith & Wesson calibre 32, devidamente registrada, uma relíquia que o acompanhava desde seus tempos de mascate na Amazônia boliviana.

Eram os ‘hômi’, feito jagunços, fazendo tiro ao alvo com a certeza da impunidade: aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei. Consigna dos nefastos facínoras que, sem concurso e sob os piores critérios republicanos, lotavam as repartições policiais pelo país. Se anos anteriores as blitze da Polícia do Exército se demoraram a tentar entender como um modesto comerciante pudesse ter uma biblioteca imponente e se detivessem a tentar ler línguas estranhas, como árabe, francês, espanhol e inglês, doravante a guerra estava declarada, sob pretexto de nosso saudoso Pai ter encabeçado um movimento que pretendia apaziguar as noites violentas que ensanguentavam a ex-Feira Boliviana, como então era denominado aquele perímetro próximo à antiga estação ferroviária boliviana (e depois da Estação Ferroviária Internacional, a partir de 1968).

Embora pacata, Corumbá nos anos de chumbo experimentara uma, digamos, vida paralela, para a qual nosso sábio Pai sempre nos advertia: muito cuidado com as aparências, não se deixem encantar pelo dourado dos confetes. Creio que um ditado árabe. Daí porque todos nós éramos criteriosos com compromissos fora dos escolares (ou, no caso de Mohamed, universitários). Mesmo assim, a partir de então, não foram poucos os assédios provocativos da Veraneio da Polícia Civil quando ele se dirigia a pé ao Centro Pedagógico, que havia poucos anos se instalado na atual Unidade I do atual Campus Pantanal da UFMS. Na volta, sempre não faltava a carona de Amigos ou colegas de turma.

Esse assédio, dissimulado porque o então delegado regional de Polícia havia sido professor de Matemática meu e de Educação Moral e Cívica de minhas Irmãs e conhecia a Família, fazia com que Mohamed tomasse as suas precauções. Experiente, ele havia sido dirigente estudantil boliviano desde os tempos de secundarista. Aliás, ele e meu Irmão Muslim, que permanecera em Cochabamba para cursar Medicina na Universidad Mayor de San Simón, onde também foi destacado dirigente estudantil. Além de meu Pai, bastante politizado, os nossos Irmãos mais velhos exerciam naturalmente uma liderança que incomodava os ‘paus-mandados’ das ditaduras.

A simplicidade, espontânea, mas provocadora aos olhos da repressão velada e impiedosa existente no cosmopolita centro comercial que despertava a cobiça dos novos ‘donos do poder’, ex-udenistas em sua maioria, que tentavam ‘exorcizar’ os resquícios trabalhistas que predominavam no imaginário política da população corumbaense. Aqueles dez anos de existência do regime não foram fáceis para os gendarmes e títeres dos generecos de Brasília: Corumbá sempre fora um bastião da vanguarda política brasileira, onde senão os mais importantes sindicatos, os mais numerosos e mobilizados escreveram os primeiros passos da esquerda no Centro-Oeste brasileiro, tais como os dos marítimos, carroceiros, comerciários, estivadores, ferroviários, bancários, garções e trabalhadores da construção civil.

Até o mais popular e pujante time de futebol era ligado à categoria profissional que mais incomodava a ditadura, o Marítimo, então tetracampeão de futebol do Centro-Oeste do Brasil. Somente anos depois, por meio do agora saudoso e querido Amigo Professor Fausto Mato Grosso, soube que a resistência ao regime de 1964 em Corumbá foi a maior de Mato Grosso (uno à época), mais que em Cuiabá. Para a esquerda, que se unira contra o regime ditatorial, era uma questão de honra defender Corumbá das tentativas de cerceamento de toda espécie causada pelos paus-mandados da ditadura. Se a resistência mantinha seus ‘olhos’ atentos, imaginem os arapongas, muito bem pagos...

O querido Amigo, Seu Arlindo Diniz, Pai da Professora Denise Campos Diniz, me contara que seu Cunhado, Ibrahim Ismael (Irmão do conhecido comerciante Júlio Emílio Ismael, dono da ‘Casa Botafogo’, mais tarde presidente local da Arena por conta de seus vínculos com o deputado Armando Anache e seu padrinho político, senador Filinto Müller) fora um dos aprisionados no navio-prisão Guarapuava, do Serviço de Navegação Bacia do Prata S/A, estatal de navegação que substituiu o Loide Brasileiro nas águas interiores do Centro-Oeste. Com ele, o escritor e dono do emblemático Hotel Luzia (onde hoje é o Hotel Lincoln), saudoso Amigo Adolpho Jorge da Cunha (autor de uma trilogia sobre os poaieiros de Mato Grosso, que tive a honra de conhecer na Editora Joruês, em São Paulo, ao lado de José Paulo Netto, então editor de Internacional da Voz da Unidade), Seu Juquinha (Senhor Guinemer Gomes da Silva, Pai do Professor Gabriel Stálin Gomes da Silva), Senhor Pedro Lins (o vereador mais votado pelo trabalhismo) e mais tarde o Doutor Amorésio de Oliveira (advogado eleito deputado estadual, mas esquecido pelos Camaradas).

Cinquenta anos depois, as hordas de hienas odientas estão à espreita, depois da ressaca de um desgoverno de delirantes terraplanistas que fizeram, em poucos anos, com que o País retrocedesse 50 anos, ou mais. Talvez 100, pois o desserviço prestado em nome de falsa patriotada causou feridas profundos no tecido social pátrio, coisa que levará anos para se recompor. Enquanto isso, as pessoas que mantiveram sua lucidez incólumes ainda que sob intensa ameaça dos delirantes tentam remendar como podem os cacos de uma sociedade totalmente alvoroçada e com traumas indizíveis.

Parodiando o querido e saudoso Gonzaguinha (Luiz Gonzaga Junior, talentoso Filho do Rei do Baião, com quem pudemos compartilhar momentos memoráveis no início da década de 1980 graças aos Companheiros do movimento estudantil por três vezes), fico com a pureza da contemplação dos felinos, é a Vida, é a Vida... Véspera do cinquentenário do último aniversário de nosso Irmão Mohamed, dois gatinhos de minhas Irmãs, Manolito e Pietra, no dia 24 de janeiro de 2024, foram flagrados por nossa Irmã Wadia contemplando por quase meia hora o quadro que nosso saudoso Pai pediu a uma querida Amiga artista plástica chilena, María Estela Martínez, que fizesse com base em uma foto de meu Irmão e a foto do flamboyant que ele eternizou em suas crônicas feita pelo querido Amigo João de Souza Alvarez antes que ruísse pelo tempo. É a imagem, sem edição, que está no topo do texto.

Ahmad Schabib Hany

Um comentário:

O caminho se faz ao caminhar disse...

Por favor, "garçons" em vez de (putz!) "garções". Há outros dois erros perceptíveis, mas não me lembro. E não adianta atribuir ao "corretor" do aplicativo, porque foi barriga de revisor, nos dois sentidos...