Reparação
histórica
A emblemática decisão do STF de
rejeitar a tese do ‘marco temporal’ é uma reparação histórica aos povos
originários (e, por extensão, aos quilombolas).
Desde o golpe de 2016 contra Dilma (e a farsa da ‘Leva
Jeito’, da republiqueta de Curitiba, mediante ‘festa da cueca’ para tirar Lula do
páreo em 2018,
com o inominável de fantoche),
as elites retrógradas deste país-continente sentem-se como nos tempos da casa
grande e da senzala, acima da lei. Só que não.
Este país-continente tem leis e, sobretudo, tem
História. Depois da farra cometida entre 2016 e 2022, quando o Povo Brasileiro
deu o seu veredicto soberano e optou pelo Estadista e enviou o inominável para
o lugar de onde jamais deveria ter saído, os pontos estão sendo colocados sobre
os is. Parabéns, parabéns, parabéns!
Um a um, os ardis da casa grande vêm desmoronando,
como castelo de areia. Se tivessem um pingo de sensatez, esses senhores que
alardeiam pedigree nobiliário (muitas
vezes comprados de sangues azuis
embolorados em franca decadência) pediriam desculpas ao Povo Brasileiro pelos
flagrantes erros (para não dizer crimes) cometidos por pura soberba, arrogância
explícita.
Trata-se de histórica reparação aos povos
originários (e, por extensão, aos quilombolas, resguardadas as especificidades
legais) a mais recente decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de rejeitar a
tese do ‘marco temporal’ (invencionice de advogados chegadinhos às chicanas
jurídicas), por 9 a 2 (curiosa e sugestivamente dos dois ministros nomeados
pelo inominável).
Considerada inconstitucional pelo STF, a tese do
‘marco temporal’ pretendia mudar a interpretação do Artigo 231 da Constituição
Federal de 1988. Para os advogados do estado de Santa Catarina, que originaram
esse recurso à mais alta Corte do País, o artigo 231 está sendo descumprido
pelo fato de os indígenas não mais estarem vivendo dentro de suas tradições. Sem
procedência, porque não há como ‘congelar’ os costumes e dissociá-los da
sociedade hegemônica, que acaba impondo suas culturas sobre as dos povos
originários. E já aparecem ruralistas em tom de chantagem falando em perdas
bilionárias e ameaçadores a dizer que eles bancarão a ‘aprovação’ de emenda
constitucional para, como de hábito, impor a sua vontade, como se estivéssemos
no tempo da política café com leite.
Não satisfeitos, deputados da frente do agro
apresentaram projetos de lei enxertando parágrafos ao artigo 231 da
Constituição Cidadã para impor seus interesses, bem como ao Estatuto do Índio,
promulgado durante o regime de 1964 (precisamente em 1973), em que o direito
originário à terra é reconhecido aos povos originários, isto é, os indígenas.
Essas aberrações jurídicas foram aprovadas a toque de caixa na Câmara Federal e
agora estão no Senado da República, mas a esta altura dos acontecimentos não há
mais ‘clima’ para o estupro à Constituição Federal de 1988, até porque não é
atribuição do Poder Legislativo a homologação de terras, caso a caso, e muito
menos das unidades da federação, como também foi tentado no apagar das luzes da
ditadura.
Só não enxerga quem não quer: em 1988, a
Assembleia Nacional Constituinte promoveu a grande transição para o Estado
Democrático de Direito, sob o sábio comando do saudoso Doutor Ulysses Guimarães
(odiado pelas mesmas elites que, feito répteis, apoiaram os golpes de 1964
contra João Goulart, por meio de Carlos Lacerda e Castelo Branco, e de 2016
contra Dilma Rousseff, por meio de Eduardo Cunha, Vilas-Boas e o centrão que
insiste em se manter no poder, e Lula, por meio da ‘Leva Jeito’ e sua bizarra ‘festa
da cueca’).
Enquanto o centrão (criado por Roberto Cardoso
Alves na Constituinte para defender os interesses do regime de 1964, em conluio
com outros reacionários) focava sua obsessiva tropa nas questões de reforma
agrária e direitos sindicais, de modo a brecar ao máximo avanços significativos
no desenvolvimento da agricultura familiar e distribuição de renda, o movimento
indígena, com o apoio de antropólogos, educadores e religiosos progressistas de
diversas denominações, deram sua importante contribuição para assegurar
dignidade aos povos indígenas, afrodescendentes e pessoas com deficiência.
O Deputado José Carlos Saboia (então PMDB-MA), da
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Deficientes e Minorias, como um
dos sub-relatores dessa subcomissão temática, foi um dos membros que ouviram os
clamores indígenas, acampados no Auditório Nereu Ramos para reivindicar por
seus direitos. Embora enfrentando pressões de garimpeiros e mineradoras, a
subcomissão conseguiu resgatar a proteção às terras indígenas constante do
Alvará Régio de 1680 e a recepção do princípio do indigenato no limiar do século XX pelo Ministro João Mendes Júnior,
da Suprema Corte brasileira. Tida como uma questão menor, o centrão só dera
atenção à temática depois da emblemática sessão plenária de votação da
totalidade da Constituição Cidadã, às vésperas de sua promulgação.
Pouco antes da Constituinte, precisamente em 1984
(ano da emblemática campanha pelas Diretas-Já, por causa da emenda Dante de
Oliveira, saudoso deputado mato-grossense que conviveu na Câmara dos Deputados
com os deputados Plínio Barbosa Martins e Sérgio Cruz, à época todos PMDB), o
jurista José Affonso da Silva explica o vocábulo jurídico indigenato didaticamente: “... o indigenato não se confunde com a
ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da
posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título
adquirido. O indigenato é legítimo por si.” Citado pela Professora Manuela
Carneiro da Cunha, que apresentou a reedição fac-similar do livro do Ministro
João Mendes Júnior em agosto de 1988, o jurista José Affonso da Silva analisa
em profundidade o entendimento do membro da mais alta corte que há um século
encerrou seu serviço ao Brasil com contribuições em diferentes setores do
Estado de Direito.
Quem, como minha geração, acompanhou os exaustivos
trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte lembra e tem consciência de que
essa temática havia sido pacificada, como muitas outras, tanto na Comissão de
Sistematização como, sobretudo, no Plenário da Constituinte, de saudosa
memória. Sob a batuta do grande Ulysses Guimarães, Mário Covas e Fernando Gasparian,
de um lado, e Roberto Cardoso Alves e Carlos Sant’Anna, de outro, foi aprovada a
íntegra da Constituição Federal de 1988, não havendo pretexto para criar
jabutis, como é de costume de uma elite que se acha acima da lei, acostumada a
impor a sua vontade a qualquer preço.
Essa ladainha de ‘segurança jurídica’ não passa de
conto do vigário. Os abutres do mercado nos anos 1980 e 1990, usando esse
pretexto como mantra para as ‘privatizações’ (que não passaram de ‘privataria’,
como as que vimos acontecer bem perto de nós, vide Enersul e UMSA/CVRD), lesaram o erário, contribuintes,
trabalhadores e, sobretudo, consumidores, como até a presente data vemos de
modo recorrente. A ‘segurança jurídica’ só beneficia especuladores, como
Benjamin Steinbruch, Eike Batista, donos dos bancos Vetor, Factual et caterva.
Isso acontece desde os tempos das famigeradas ‘simonetas’ ou ‘polonetas’ de
Mário Henrique Simonsen, e do Banco Halles, Delfin, Comind, BNH et caterva do
poderoso Maurício Rangel Reis, engolido pelo não menos poderoso Simonsen.
A propósito, o covarde atentado contra a líder
quilombola e Ialaorixá Mãe Bernadete, do Quilombo Pitanga de Palmares, em
Simões Filho, área metropolitana de Salvador, Bahia, e a criminosa imolação do
casal de líderes espirituais indígenas Guarani-Kaiowá na aldeia Guassuty, em
Aral Moreira, Mato Grosso do Sul, é manifestação expressa da impunidade que
ronda as atividades ‘justiceiras’ das elites endinheiradas brasileiras desde os
tempos coloniais, de triste memória. Não é novidade, em MS, a polícia concluir
celeremente que as motivações do crime contra líderes indígenas são
‘passionais’ (sic). Foi dado desfecho
igual à (não) elucidação do cinicamente covarde atentado contra o líder Guarani
Marçal de Souza, há exatos 40 anos, quando eram evidentes os vínculos dos
criminosos com donos de áreas rurais em flagrante invasão de terras indígenas à
espera de demarcação.
Em 1985 e 2022, a sociedade civil derrotou a
ditadura e seus ‘cães’ (com todo respeito pela espécie canina -- em particular
ao cão de resgate Thayron, atropelado no Rio Grande do Sul, onde ajudava nas
buscas por vítimas dos temporais que assolaram o Sul --, que a natureza fez
leais companheiros), e na intentona de 8 de janeiro de 2023 desbaratou seus Tonton Macoutes e congêneres. Não há por
que temê-los: os cidadãos não amarelam, ao contrário do inominável (agora
inelegível) que vive a surtar e a defecar pelo cérebro, tamanha a ‘bravura’ do
‘patridiota’ genocida. Não se esqueça, leitor, todo fascista é covarde, e age
feito hiena -- êta espécie traiçoeira! --, em matilha, de tocaia.
O verdadeiramente imortal Poeta Manoel de Barros,
que tive a honra e o prazer de conhecer pessoalmente graças à generosidade do
Amigo-Irmão Jornalista Luiz Taques, já o disse com profundo conhecimento de
causa, em 1961 (‘Compêndio para o uso dos pássaros’, parte 11): “A maior riqueza dos homens é a sua
incompletude.” É verdade que muitos não entenderão, mas a maioria,
constituída por pessoas simples, que leem a alma (e por isso amam Manoel de
Barros e se identificam com ele), entendem. E isso basta. Mas para aqueles que
a natureza não dotou de sensibilidade, a tradução é que só consegue aprender (e
evoluir) aquele que tem noção de seus limites, tem humildade para crescer e
conviver com os outros e, sobretudo, sabe que “um mais um é sempre mais que
dois” (Beto Guedes e Ronaldo Bastos, ‘Sal da Terra’, 1981).
Ahmad
Schabib Hany
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