domingo, 24 de setembro de 2023

REPARAÇÃO HISTÓRICA

Reparação histórica

A emblemática decisão do STF de rejeitar a tese do ‘marco temporal’ é uma reparação histórica aos povos originários (e, por extensão, aos quilombolas). Desde o golpe de 2016 contra Dilma (e a farsa da ‘Leva Jeito’, da republiqueta de Curitiba, mediante ‘festa da cueca’ para tirar Lula do páreo em 2018, com o inominável de fantoche), as elites retrógradas deste país-continente sentem-se como nos tempos da casa grande e da senzala, acima da lei. Só que não.

Este país-continente tem leis e, sobretudo, tem História. Depois da farra cometida entre 2016 e 2022, quando o Povo Brasileiro deu o seu veredicto soberano e optou pelo Estadista e enviou o inominável para o lugar de onde jamais deveria ter saído, os pontos estão sendo colocados sobre os is. Parabéns, parabéns, parabéns!

Um a um, os ardis da casa grande vêm desmoronando, como castelo de areia. Se tivessem um pingo de sensatez, esses senhores que alardeiam pedigree nobiliário (muitas vezes comprados de sangues azuis embolorados em franca decadência) pediriam desculpas ao Povo Brasileiro pelos flagrantes erros (para não dizer crimes) cometidos por pura soberba, arrogância explícita.

Trata-se de histórica reparação aos povos originários (e, por extensão, aos quilombolas, resguardadas as especificidades legais) a mais recente decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de rejeitar a tese do ‘marco temporal’ (invencionice de advogados chegadinhos às chicanas jurídicas), por 9 a 2 (curiosa e sugestivamente dos dois ministros nomeados pelo inominável).

Considerada inconstitucional pelo STF, a tese do ‘marco temporal’ pretendia mudar a interpretação do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Para os advogados do estado de Santa Catarina, que originaram esse recurso à mais alta Corte do País, o artigo 231 está sendo descumprido pelo fato de os indígenas não mais estarem vivendo dentro de suas tradições. Sem procedência, porque não há como ‘congelar’ os costumes e dissociá-los da sociedade hegemônica, que acaba impondo suas culturas sobre as dos povos originários. E já aparecem ruralistas em tom de chantagem falando em perdas bilionárias e ameaçadores a dizer que eles bancarão a ‘aprovação’ de emenda constitucional para, como de hábito, impor a sua vontade, como se estivéssemos no tempo da política café com leite.

Não satisfeitos, deputados da frente do agro apresentaram projetos de lei enxertando parágrafos ao artigo 231 da Constituição Cidadã para impor seus interesses, bem como ao Estatuto do Índio, promulgado durante o regime de 1964 (precisamente em 1973), em que o direito originário à terra é reconhecido aos povos originários, isto é, os indígenas. Essas aberrações jurídicas foram aprovadas a toque de caixa na Câmara Federal e agora estão no Senado da República, mas a esta altura dos acontecimentos não há mais ‘clima’ para o estupro à Constituição Federal de 1988, até porque não é atribuição do Poder Legislativo a homologação de terras, caso a caso, e muito menos das unidades da federação, como também foi tentado no apagar das luzes da ditadura.

Só não enxerga quem não quer: em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte promoveu a grande transição para o Estado Democrático de Direito, sob o sábio comando do saudoso Doutor Ulysses Guimarães (odiado pelas mesmas elites que, feito répteis, apoiaram os golpes de 1964 contra João Goulart, por meio de Carlos Lacerda e Castelo Branco, e de 2016 contra Dilma Rousseff, por meio de Eduardo Cunha, Vilas-Boas e o centrão que insiste em se manter no poder, e Lula, por meio da ‘Leva Jeito’ e sua bizarra ‘festa da cueca’).

Enquanto o centrão (criado por Roberto Cardoso Alves na Constituinte para defender os interesses do regime de 1964, em conluio com outros reacionários) focava sua obsessiva tropa nas questões de reforma agrária e direitos sindicais, de modo a brecar ao máximo avanços significativos no desenvolvimento da agricultura familiar e distribuição de renda, o movimento indígena, com o apoio de antropólogos, educadores e religiosos progressistas de diversas denominações, deram sua importante contribuição para assegurar dignidade aos povos indígenas, afrodescendentes e pessoas com deficiência.

O Deputado José Carlos Saboia (então PMDB-MA), da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Deficientes e Minorias, como um dos sub-relatores dessa subcomissão temática, foi um dos membros que ouviram os clamores indígenas, acampados no Auditório Nereu Ramos para reivindicar por seus direitos. Embora enfrentando pressões de garimpeiros e mineradoras, a subcomissão conseguiu resgatar a proteção às terras indígenas constante do Alvará Régio de 1680 e a recepção do princípio do indigenato no limiar do século XX pelo Ministro João Mendes Júnior, da Suprema Corte brasileira. Tida como uma questão menor, o centrão só dera atenção à temática depois da emblemática sessão plenária de votação da totalidade da Constituição Cidadã, às vésperas de sua promulgação.

Pouco antes da Constituinte, precisamente em 1984 (ano da emblemática campanha pelas Diretas-Já, por causa da emenda Dante de Oliveira, saudoso deputado mato-grossense que conviveu na Câmara dos Deputados com os deputados Plínio Barbosa Martins e Sérgio Cruz, à época todos PMDB), o jurista José Affonso da Silva explica o vocábulo jurídico indigenato didaticamente: “... o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si.” Citado pela Professora Manuela Carneiro da Cunha, que apresentou a reedição fac-similar do livro do Ministro João Mendes Júnior em agosto de 1988, o jurista José Affonso da Silva analisa em profundidade o entendimento do membro da mais alta corte que há um século encerrou seu serviço ao Brasil com contribuições em diferentes setores do Estado de Direito.

Quem, como minha geração, acompanhou os exaustivos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte lembra e tem consciência de que essa temática havia sido pacificada, como muitas outras, tanto na Comissão de Sistematização como, sobretudo, no Plenário da Constituinte, de saudosa memória. Sob a batuta do grande Ulysses Guimarães, Mário Covas e Fernando Gasparian, de um lado, e Roberto Cardoso Alves e Carlos Sant’Anna, de outro, foi aprovada a íntegra da Constituição Federal de 1988, não havendo pretexto para criar jabutis, como é de costume de uma elite que se acha acima da lei, acostumada a impor a sua vontade a qualquer preço.

Essa ladainha de ‘segurança jurídica’ não passa de conto do vigário. Os abutres do mercado nos anos 1980 e 1990, usando esse pretexto como mantra para as ‘privatizações’ (que não passaram de ‘privataria’, como as que vimos acontecer bem perto de nós, vide Enersul e UMSA/CVRD), lesaram o erário, contribuintes, trabalhadores e, sobretudo, consumidores, como até a presente data vemos de modo recorrente. A ‘segurança jurídica’ só beneficia especuladores, como Benjamin Steinbruch, Eike Batista, donos dos bancos Vetor, Factual et caterva. Isso acontece desde os tempos das famigeradas ‘simonetas’ ou ‘polonetas’ de Mário Henrique Simonsen, e do Banco Halles, Delfin, Comind, BNH et caterva do poderoso Maurício Rangel Reis, engolido pelo não menos poderoso Simonsen.

A propósito, o covarde atentado contra a líder quilombola e Ialaorixá Mãe Bernadete, do Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho, área metropolitana de Salvador, Bahia, e a criminosa imolação do casal de líderes espirituais indígenas Guarani-Kaiowá na aldeia Guassuty, em Aral Moreira, Mato Grosso do Sul, é manifestação expressa da impunidade que ronda as atividades ‘justiceiras’ das elites endinheiradas brasileiras desde os tempos coloniais, de triste memória. Não é novidade, em MS, a polícia concluir celeremente que as motivações do crime contra líderes indígenas são ‘passionais’ (sic). Foi dado desfecho igual à (não) elucidação do cinicamente covarde atentado contra o líder Guarani Marçal de Souza, há exatos 40 anos, quando eram evidentes os vínculos dos criminosos com donos de áreas rurais em flagrante invasão de terras indígenas à espera de demarcação.

Em 1985 e 2022, a sociedade civil derrotou a ditadura e seus ‘cães’ (com todo respeito pela espécie canina -- em particular ao cão de resgate Thayron, atropelado no Rio Grande do Sul, onde ajudava nas buscas por vítimas dos temporais que assolaram o Sul --, que a natureza fez leais companheiros), e na intentona de 8 de janeiro de 2023 desbaratou seus Tonton Macoutes e congêneres. Não há por que temê-los: os cidadãos não amarelam, ao contrário do inominável (agora inelegível) que vive a surtar e a defecar pelo cérebro, tamanha a ‘bravura’ do ‘patridiota’ genocida. Não se esqueça, leitor, todo fascista é covarde, e age feito hiena -- êta espécie traiçoeira! --, em matilha, de tocaia.

O verdadeiramente imortal Poeta Manoel de Barros, que tive a honra e o prazer de conhecer pessoalmente graças à generosidade do Amigo-Irmão Jornalista Luiz Taques, já o disse com profundo conhecimento de causa, em 1961 (‘Compêndio para o uso dos pássaros’, parte 11): “A maior riqueza dos homens é a sua incompletude.” É verdade que muitos não entenderão, mas a maioria, constituída por pessoas simples, que leem a alma (e por isso amam Manoel de Barros e se identificam com ele), entendem. E isso basta. Mas para aqueles que a natureza não dotou de sensibilidade, a tradução é que só consegue aprender (e evoluir) aquele que tem noção de seus limites, tem humildade para crescer e conviver com os outros e, sobretudo, sabe que “um mais um é sempre mais que dois” (Beto Guedes e Ronaldo Bastos, ‘Sal da Terra’, 1981).

Ahmad Schabib Hany

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