Cidade-Primavera
Em 245 anos, Corumbá conheceu o
apogeu e o ostracismo, e nem por isso perdeu essa sua graça, de sempre ser
Cidade-Primavera. Única no Planeta, tem em seu Povo lindo e generoso a sua
riqueza maior, além de estar no coração do Pantanal e da América do Sul.
O ambiente primaveril faz Corumbá de todos os
povos e de todas as graças (apropriando-me de um epíteto atribuído pelo saudoso
e querido Amigo, Seu Augusto César Proença) única e encantadora. Desde antes de
sua fundação, por ordem do capitão-general Luiz de Albuquerque Mello Pereira e
Cáceres (tanto Corumbá quanto Cáceres foram fundadas com ata devida e oficialmente
lavrada), esta região sempre foi de intercâmbio e trocas entre as diferentes populações
que habitavam o coração do Pantanal e da América do Sul.
A exuberância, registrada em bico de pena pelo artista
plástico Hércules Florence, da Expedição Langsdorff, corrobora a diversidade
biológica e étnica desde sempre existente na região, além da vocação histórica
de território de encontros entre os povos Guató, Guarani e os do império
Incaico. A generosidade dos povos originários soube acolher com hospitalidade
os europeus que, por diferentes razões, migraram para a região -- no entanto, a
reciprocidade nem sempre existiu da parte dos forasteiros e sua índole
colonizadora (não nos esqueçamos dos bandeirantes e das incursões castelhanas
desde a chegada dos ‘brancos’) foi fator de temores pelas populações nativas.
A cobiça dos colonizadores trouxe cizânia,
opressão e saque, muito saque. Uma das rotas de incursão à lendária Eldorado (‘El
Dorado’), a região que abriga Corumbá e Cáceres foi uma das estratégias para
impedir a presença castelhana, com a construção de fortes, entre eles o de Coimbra
e Príncipe da Beira, além da fundação das duas cidades irmãs, hoje vinculadas a
diferentes estados, com a divisão de Mato Grosso, em 1977. E antes de ganhar
projeção intercontinental como entreposto comercial, Corumbá foi palco da
guerra contra o Paraguai, tendo sido incendiada e tomada entre 1865 e 1867.
Entre 1873 e 1929, Corumbá conheceu o esplendor econômico e o reconhecimento
cultural, o que a tornou cosmopolita a despeito de ser uma cidade do interior e
recorrentemente eclipsada pelo provincianismo prevalente nas elites políticas
sul-mato-grossenses.
Tenho o privilégio de ser corumbaense por opção,
porque consciente do valor histórico e cultural desta cidade que causa muita
inveja aos provincianos que se viram transformados em citadinos, desconhecedores
de sua história e, sobretudo, sem identidade cultural. Não que sejam destituídos
de lastro cultural, mas porque renegam suas origens étnicas Guarani e
afrodescendentes. É o chamado complexo de vira-latas: procuram pela internet brasões
de imaginárias raízes ‘nobiliárias’ emboloradas e depauperadas, em vez de
valorizar a real riqueza cultural dos povos originários e dos afrodescendentes
trazidos à força pela cobiça colonial, que endinheirou grotões incultos
transformados em néscios déspotas.
Pode até parecer piegas, mas é autêntico: Corumbá
é um verdadeiro Porto Seguro, um Paraíso na Terra, para os que aqui aportaram.
E nós, que permanecemos aqui, temos o dever de fazer com que os beneficiários e
beneficiárias desta terra de encantos sejam os e as corumbaenses das camadas
populares, trabalhadores e trabalhadoras humildes, que com generosa hospitalidade
acolheram, colaboraram sem recalque e permitiram o êxito, o sucesso dos
empreendimentos realizados. Ou alguém tem dúvida de que o trabalhador e a
trabalhadora corumbaense, além de laboriosos, são os que mais torcem pelo êxito
de seus patrões, ainda que muitos deles muitas vezes não lhes assegurem
direitos básicos e, sobretudo, reconhecimento e valor humano?
Como descendente de imigrantes árabes (da região a
partir de 1942 chamada de República do Líbano) e com ascendência boliviana,
tenho gratidão, reconhecimento e profunda identificação com o Povo Corumbaense.
E sei que, de fato, são árabes de diferentes etnias e nacionalidades os que deixaram
marcas bem evidentes na Corumbá da segunda metade do século XX. Como o
Sociólogo e Professor Lejeune Mirhan pesquisou, sobretudo a etnia surianes, é
protagonista dos maiores empreendimentos. Salim Kassar com o Edifício IOSA,
Farjalla Anache com o Edifício Anache e o ‘Anache Velho’ (ao lado da antiga
sede da Rádio Clube de Corumbá Ltda.) e Karim Mali com o Edifício
Sírio-Libanês, Edifício Pantanal e a Galeria Luiz de Albuquerque (inaugurada
nas festividades do Bicentenário de Corumbá). Além disso, indústrias pioneiras
como o Moinho Mato-grossense e a Fiação Mato-grossense de Domingos Sahib e
Salim Kassar, além da primeira empresa siderúrgica dos irmãos Nelson e Roberto
Chamma.
Mas, em pleno século XXI, cabe aos descendentes
dos imigrantes de todos os quadrantes do Planeta (inclusive nós, de ascendência
árabe: palestinos, sírios, surianes, libaneses, jordanianos, marroquinos,
líbios, egípcios etc) contribuir para fazer com que a generosa população
corumbaense e ladarense compartilhe dos benefícios decorrentes do progresso da
apoteótica Corumbá, desde os tempos do entreposto comercial fluvial. Até pelas
razões comerciais, quanto maior o poder aquisitivo da população, maior seu
potencial consumidor -- é o que os ancestrais ensinaram ao longo de sua
permanência na generosa América.
A exemplo dos pioneiros citados, o querido e
saudoso Amigo, Seu Jorge José Katurchi, que aportou no início da década de 1930
à cidade e ao Povo pelos quais se apaixonou, revelava com total sinceridade seu
fascínio por Corumbá e pelo Pantanal. Desde o tempo em que era solteiro e
lutava pela eletrificação total da cidade (antes da chegada da energia de
Urubupungá), sua pugna pela Zona Franca, depois pela Área de Livre Comércio, a
inclusão de Corumbá no Programa Monumenta, a valorização do patrimônio
histórico e cultural e a volta dos trens de passageiros entre Bauru, Corumbá e
Santa Cruz de la Sierra, ao lado do Amigo-Irmão Anísio Guilherme da Fonseca.
Nossa Amizade (dessas com letra maiúscula) se fortaleceu
nas sucessivas lutas em que nos envolvemos por Corumbá, por seu Povo e pelo
Bioma Pantanal. Porque Seu Jorge É dos incansáveis lutadores que não admitem
hipocrisia nem cinismo, e o que tivesse que ser feito era o que tinha que
fazer, com o maior empenho. Por conta disso rompeu com muita gente, mas não
abriu mão de seu amor por Corumbá e seu Povo. Na pandemia, durante uma de
nossas longas conversas por telefone, chegamos a cogitar fazer campanha pela
criação de um fórum de moradores das cidades pantaneiras, desde Cáceres até
Porto Murtinho, sem qualquer viés divisionista, mas de reunificação cultural e
social (porque o Pantanal é indivisível, embora a herança da ditadura tenha
prejudicado a porção centro-sul).
Finalmente, ainda criança, testemunhei o encanto
de meu querido e saudoso Pai com a Corumbá de lutas e sonhos (nas palavras do
querido Professor Valmir Corrêa), chamada de Turim latino-americana por ele. Ao
desembarcarmos do pequeno avião comercial que nos trouxe de Santa Cruz de la
Sierra, entusiasta como sempre, nos provocou (à minha querida e saudosa Mãe, à
minha Irmã Caçula e a mim), fazendo um profético brinde com o genuíno Guaraná
Maués, da Cervejaria Corumbaense: “Tentamos na Bolívia e no Líbano. Ficaremos
em Corumbá!” E ficamos: lá se vão 56 anos de intensa luta, sem arrependimento.
Nestas décadas de amadurecimento cidadão,
testemunhei momentos ímpares do palpitar de Corumbá, como entre 1974 e 1978, e
entre 1984 e 2014 (do ponto de vista da cidadania, não de campanhas publicitárias
que propalam panaceias lendárias totalmente descoladas da realidade do Bioma
Pantanal). Lamentavelmente, por razões não suficientemente elucidadas, há um
conjunto de fatores que acabam levando Corumbá a um contrafluxo (mais que
refluxo), e obviamente isso tem um componente atávico, avoengo, algo que
precisa ser superado. A questão será equacionada no dia que descobrirmos quem é
que ganha com o retrocesso, porque, como em toda correlação de forças sociais,
há sempre alguém que sai no lucro enquanto a maioria fica no prejuízo.
Embora sem maiores celebrações, em respeito à dor
da Família, Amiguinhos e vizinhos do Menino Matheus, dos Alunos, Professores e
Funcionários da Escola Cássio Leite de Barros e de todas as Famílias que
sofreram com as consequências do temporal de 12 de setembro, que o transcurso
dos 245 anos de fundação da Cidade-Primavera, tal qual fênix a renascer das
cinzas, nos permita o necessário despertar cidadão, depois dos descalabros ocorridos
em escala federal, cujo rescaldo ainda estamos por ver.
Mais que resiliência, trata-se de uma razão de ser,
de viver: Corumbá, compromisso com a Vida!
Ahmad Schabib Hany
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