Mino
Carta e o ‘Jornal da República’
O Jornalista Mino Carta, ao
lado do não menos genial Claudio Abramo, criou um diário icônico em 1979, o Jornal da República, de vida efêmera
mas exemplar, uma fonte inesgotável para a História e o Jornalismo.
O Brasil é indiscutivelmente celeiro de grandes
Jornalistas, desses com letra maiúscula, de muito talento e, sobretudo, coragem
(para enfrentar uma elite acostumada a eliminar, sem comiseração ou
comedimento, os que ousarem ‘atravessar seu caminho’).
Entre eles, em meio a verdadeiros expoentes de primeira grandeza que fizeram
escola em todo o Brasil, Mino Carta e Claudio Abramo, que, juntos e
acompanhados de colegas igualmente experientes e talentosos, protagonizaram um
singular diário que fez, aconteceu e entrou para a História.
Trata-se do Jornal
da República, diário ímpar de vida efêmera, mas icônico. Inesgotável fonte para
a História e o Jornalismo. Ganhou as bancas em 27 de agosto de 1979 e encerrou suas
atividades em 22 de janeiro de 1980, data em
que Frank Sinatra iniciou sua primeira turnê no Brasil.
Nesse começo de ano (e de década) o Brasil
assistia as primeiras reformas promovidas pelo regime de 1964, na ânsia de
prorrogar sua sobrevida: volta dos dirigentes políticos cassados, depois de
promulgada a Lei de Anistia, que não foi ampla, geral nem irrestrita. Verdadeiro
alvoroço, seguido da não menos polêmica reformulação partidária, que baniu os
dois partidos criados doze anos antes, ainda que seus dirigentes, ou melhor, os
que sobraram deles com o fim do bipartidarismo, tenham conseguido trazê-los de
volta para os pleitos eleitorais.
Depois de muitos anos em processo de digitalização
de todas as edições (124 ao todo), a Biblioteca Nacional disponibilizou o
acervo digital do Jornal da República
para quem for conhecer a excelência jornalística deste diário que, em plena
ditadura e sob pressão dos poderosos empresários concorrentes: a)
Grupo Folhas, à época no plural,
pois, além da Impress Editora e Gráfica
e da Gráfica Folha, dono de seis jornais de grande circulação: Folha, Folha da Tarde, Última Hora,
Gazeta Esportiva, Notícias Populares e A Cidade, de Santos; b)
Grupo Estado, além das emissoras de
rádio Eldorado AM e FM, da gráfica e da editora de listas telefônicas OESP, dono
do Estadão, Jornal da Tarde e Jornal do
Esporte; c) Grupo Globo, dono de O Globo, no Rio, e Diário Popular, em São Paulo, e revistas da Rio Gráfica Editora,
além da Rede Globo de Televisão e do Sistema Globo de Rádio, e d)
Grupo Abril, dono de mais de 300
títulos de revistas, fascículos, livros e coleções, além da Gráfica Abril, Distribuidora
Abril, Círculo do Livro, Abril Cultural, Abril Educação, Abril Vídeo, Abril Tec,
editora de listas telefônicas Listel
e rede de hotéis Quatro Rodas Nordeste.
Para as gerações mais novas, vamos dedicar os
próximos dois parágrafos para uma breve descrição da trajetória de cada um
deles.
O Jornalista Mino Carta, atual diretor de redação
de CartaCapital, é criador e primeiro
diretor de redação do revolucionário Jornal
da Tarde para a família Mesquita, de O
Estado de S.Paulo, em 1965. Antes, criou e dirigiu, em 1963, a Quatro Rodas e, em 1968, a Veja para a família Civita, da Editora
Abril, onde permaneceu até 1976, quando Roberto Civita lhe propôs correspondência
jornalística em qualquer lugar do mundo, onde quisesse, em troca da direção da Veja, sob pressão do então ministro
Armando Falcão, da Justiça do general Ernesto Geisel, o que valeu aos donos da
Abril um empréstimo bilionário da Caixa Econômica e a ampliação dos negócios,
incluindo a criação da rede de hotéis Quatro
Rodas Nordeste, editoras de livros didáticos (cujo ápice foi a aquisição da
Ática e Scipione anos depois) e cursos pré-vestibulares (incorporados mais
tarde ao Sistema de Ensino Anglo). Mino rompeu com Roberto Civita e partiu para
o confronto ao criar a IstoÉ, a Senhor, a IstoÉ/Senhor e anos depois a CartaCapital,
em sociedade com colegas e amigos, como os emblemáticos Raymundo Faoro,
jurista, ex-presidente da OAB; Fernando Moreira Salles, banqueiro, diretor do
Unibanco, hoje Itaú; Fabrizio Fasano, empresário de hotelaria, gastronomia e bebidas,
e Domingo Alzugaray, ex-diretor Comercial da Editora Abril e ex-sócio na
Editora Três de seu irmão Luis Carta (ex-diretor da revista Realidade e ex-diretor Editorial da
Abril) e que mais tarde fundou, com Fasano, a Carta Editorial, responsável por
publicações de excelência editorial internacional e pioneiro no ingresso ao
exigente mercado ibérico.
O Jornalista Claudio Abramo, eternizado em 1987, foi
secretário de redação de O Estado de
S.Paulo, depois secretário, diretor, correspondente e conselheiro da Folha de S.Paulo, que transformou em
jornal de verdade em plena ditadura. Sob a sua
direção, o principal jornal da família Frias rompeu com o ranço provinciano
submisso às hordas fascistas do regime de 1964. Para se ter uma ideia da
promiscuidade entre empresários e os órgãos de repressão, a Folha da Tarde, do mesmo grupo,
funcionou nos anos de chumbo como centro suplementar da repressão (a redação do
vespertino era cheia de ‘x-9’, isto é, policiais que se passavam por
jornalistas, como os que sequestraram no meio da noite o Jornalista Vlado
Herzog), além de os donos terem colaborado com paramilitares na Operação
Bandeirantes para o transporte, em sua frota de carros, de corpos de vítimas da
tortura e de execuções sumárias do DOI-CODI, DOPS, Esquadrão da Morte e Comando
Le Coq (estes dois, grupos paramilitares). Com carta-branca do publisher Octavio Frias de Oliveira,
Abramo não só contratou os melhores Jornalistas, analistas e colaboradores de
seu tempo, como investiu na reforma gráfica e editorial, quando foram criados
novos cadernos semanais, em especial o irreverente Folhetim, para o qual os ex-integrantes de O Pasquim Tarso de Castro, Fortuna, Luiz Gê, Angeli, Jota, Miguel
Paiva, Marta Alencar, Sérgio Augusto, Paulo Francis e Newton Carlos foram
contratados e tiveram total liberdade para produzir e editar o suplemento. Por
conta da ousadia dos Jornalistas mais atirados, sobretudo Plínio Marcos,
Fortuna e Tarso de Castro, o irascível chefe da Segurança Pública de São Paulo,
coronel Antônio Erasmo Dias, invadiu a redação do jornal por causa da
publicação da coluna em branco do cronista Lourenço Diaféria na Ilustrada, num ato de solidariedade ao
Jornalista preso por supostamente ter ofendido a memória do Duque de Caxias em uma
homenagem a um sargento morto ao salvar criança na iminência de ser atacada por
uma ariranha em um lago de parque urbano. Claudio Abramo, Tarso de Castro e
Plínio Marcos foram demitidos, e em seu lugar assumiu o controvertido
reacionário Boris Casoy, ex-assessor de imprensa da família Frias, além dos
extraordinários Mylton Severiano da Silva e Nelson Merlin para produzir o Folhetim, sob a chefia direta de Boris
Casoy, verdadeiro feitor do jornal que Abramo havia revolucionado. Não demorou muito,
e o irreverente suplemento trocou a equipe que o produzia e foi perdendo a
simpatia do público ao adotar nova linha editorial (copiada do carrancudo Suplemento Cultural, do Estadão), tomado de resenhas literárias
e ensaios acadêmicos, o que levou o Folhetim
a ser fechado. Durante o tempo em que Abramo esteve fora da Folha, dedicou-se às artes plásticas.
Mino e Abramo já haviam trabalhado praticamente
juntos na sede do Estadão, entre 1964
e 1966, quando um criou a edição vespertina (Jornal da Tarde) e o outro foi secretário de redação e ajudou a
modernizar o matutino da família Mesquita. Mais tarde, quando ambos estavam sem
emprego, também estiveram juntos numa edição mensal da Editora Símbolo (jornal
especializado em literatura e cultura, o Leia
Livros) com o editor Emir Machado Nogueira e a colunista Terezinha Monteiro,
de Panorama, criada na década de 1960
na Folha Ilustrada por Jeronymo
Monteiro, pai de T. Monteiro (como ela assinava) e primeiro diretor da Editora
Abril (conforme consta dos gibis de Walt Disney da década de 1950), renomado
Pai da Ficção Científica brasileira. Além disso, os dois Jornalistas desde
jovens se dedicaram às artes plásticas, como geniais pintores, autores de telas
valiosíssimas.
Os quase cinco meses de existência do Jornal da República foram suficientes
para mostrar que um diário independente pode transformar a sociedade. Não foram
poucos os jovens e leitores maduros que mudaram seu modo de enxergar a
realidade brasileira ao ler e seguir esses dois Jornalistas. Assim como a IstoÉ de Mino Carta fez a primeira
reportagem de capa sobre Luiz Inácio Lula da Silva, o JR foi o primeiro diário a publicar um artigo de opinião do
sindicalista que se transformou no primeiro estadista brasileiro do século XXI
(antes, a Folha sob a direção de
Abramo e a edição setorial de Eduardo Matarazzo Suplicy publicou, em debate
sobre sindicalismo e economia brasileira, depoimentos integrais de Lula e outros
dirigentes sindicais, inclusive patronais, como Luiz Eulálio Bueno Vidigal, da
FIESP). Basta navegar no portal da Biblioteca Nacional e selecionar a página ‘Hemeroteca
Digital Brasileira’, preencher os espaços de busca com o nome do jornal, o
período que quiser e tema ou autor. A propósito, há duas outras coleções tão
importantes quanto à de que tratamos neste texto: a coleção digital completa do
Correio da Manhã, carioca, o primeiro
diário de circulação nacional a enfrentar a ditadura, e que por isso acabou
levado ao fechamento depois de 70 anos de circulação, e a do Jornal do Brasil, um dos jornais mais
emblemáticos do Rio de Janeiro na resistência ao regime de 1964, que encerrou
suas atividades centenárias em 2010, depois de ter sido vendido à ARCA, do
magnata Ary Carvalho, comodatário do Última
Hora (de Samuel Wainer) do Rio durante a ditadura.
Com essa façanha, Mino Carta conseguiu demonstrar
que no Brasil há espaço para um jornal do porte dos vinculados à corte desde o
tempo da política café-com-leite, tais como as dinastias Mesquita, Marinho,
Frias e, até pouco tempo atrás, Civita, sem falar nas famílias provincianas que
fazem tabela com aquelas (anterior ao getulismo, que teve ao menos dois grandes
meios, o Última Hora, de Samuel
Wainer, e a Rede Tupi com os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, ao
qual a icônica revista O Cruzeiro era
vinculada). A era tecnológica contribuiu para o barateamento dos custos de
produção, de modo que até uma rede de televisão alternativa à da família
Marinho cabe neste país de dimensões continentais, mas sem vínculos com seitas e
quadrilhas organizadas.
Mais que registrar, com muita gratidão e uma ponta
de nostalgia, a trajetória do Jornal da
República, é preciso divulgar e valorizar grandes Jornalistas e seu digno
legado para o Jornalismo, a História e, sobretudo, a Cidadania e o Estado de
Direito, cuja conquista foi possível graças ao seu incansável empenho e coragem.
Ahmad
Schabib Hany
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