sábado, 2 de setembro de 2023

MINO CARTA E O 'JORNAL DA REPÚBLICA'

Mino Carta e o ‘Jornal da República’

O Jornalista Mino Carta, ao lado do não menos genial Claudio Abramo, criou um diário icônico em 1979, o Jornal da República, de vida efêmera mas exemplar, uma fonte inesgotável para a História e o Jornalismo.

O Brasil é indiscutivelmente celeiro de grandes Jornalistas, desses com letra maiúscula, de muito talento e, sobretudo, coragem (para enfrentar uma elite acostumada a eliminar, sem comiseração ou comedimento, os que ousarem ‘atravessar seu caminho’). Entre eles, em meio a verdadeiros expoentes de primeira grandeza que fizeram escola em todo o Brasil, Mino Carta e Claudio Abramo, que, juntos e acompanhados de colegas igualmente experientes e talentosos, protagonizaram um singular diário que fez, aconteceu e entrou para a História.

Trata-se do Jornal da República, diário ímpar de vida efêmera, mas icônico. Inesgotável fonte para a História e o Jornalismo. Ganhou as bancas em 27 de agosto de 1979 e encerrou suas atividades em 22 de janeiro de 1980, data em que Frank Sinatra iniciou sua primeira turnê no Brasil. Nesse começo de ano (e de década) o Brasil assistia as primeiras reformas promovidas pelo regime de 1964, na ânsia de prorrogar sua sobrevida: volta dos dirigentes políticos cassados, depois de promulgada a Lei de Anistia, que não foi ampla, geral nem irrestrita. Verdadeiro alvoroço, seguido da não menos polêmica reformulação partidária, que baniu os dois partidos criados doze anos antes, ainda que seus dirigentes, ou melhor, os que sobraram deles com o fim do bipartidarismo, tenham conseguido trazê-los de volta para os pleitos eleitorais.

Depois de muitos anos em processo de digitalização de todas as edições (124 ao todo), a Biblioteca Nacional disponibilizou o acervo digital do Jornal da República para quem for conhecer a excelência jornalística deste diário que, em plena ditadura e sob pressão dos poderosos empresários concorrentes: a) Grupo Folhas, à época no plural, pois, além da Impress Editora e Gráfica e da Gráfica Folha, dono de seis jornais de grande circulação: Folha, Folha da Tarde, Última Hora, Gazeta Esportiva, Notícias Populares e A Cidade, de Santos; b) Grupo Estado, além das emissoras de rádio Eldorado AM e FM, da gráfica e da editora de listas telefônicas OESP, dono do Estadão, Jornal da Tarde e Jornal do Esporte; c) Grupo Globo, dono de O Globo, no Rio, e Diário Popular, em São Paulo, e revistas da Rio Gráfica Editora, além da Rede Globo de Televisão e do Sistema Globo de Rádio, e d) Grupo Abril, dono de mais de 300 títulos de revistas, fascículos, livros e coleções, além da Gráfica Abril, Distribuidora Abril, Círculo do Livro, Abril Cultural, Abril Educação, Abril Vídeo, Abril Tec, editora de listas telefônicas Listel e rede de hotéis Quatro Rodas Nordeste.

Para as gerações mais novas, vamos dedicar os próximos dois parágrafos para uma breve descrição da trajetória de cada um deles.

O Jornalista Mino Carta, atual diretor de redação de CartaCapital, é criador e primeiro diretor de redação do revolucionário Jornal da Tarde para a família Mesquita, de O Estado de S.Paulo, em 1965. Antes, criou e dirigiu, em 1963, a Quatro Rodas e, em 1968, a Veja para a família Civita, da Editora Abril, onde permaneceu até 1976, quando Roberto Civita lhe propôs correspondência jornalística em qualquer lugar do mundo, onde quisesse, em troca da direção da Veja, sob pressão do então ministro Armando Falcão, da Justiça do general Ernesto Geisel, o que valeu aos donos da Abril um empréstimo bilionário da Caixa Econômica e a ampliação dos negócios, incluindo a criação da rede de hotéis Quatro Rodas Nordeste, editoras de livros didáticos (cujo ápice foi a aquisição da Ática e Scipione anos depois) e cursos pré-vestibulares (incorporados mais tarde ao Sistema de Ensino Anglo). Mino rompeu com Roberto Civita e partiu para o confronto ao criar a IstoÉ, a Senhor, a IstoÉ/Senhor e anos depois a CartaCapital, em sociedade com colegas e amigos, como os emblemáticos Raymundo Faoro, jurista, ex-presidente da OAB; Fernando Moreira Salles, banqueiro, diretor do Unibanco, hoje Itaú; Fabrizio Fasano, empresário de hotelaria, gastronomia e bebidas, e Domingo Alzugaray, ex-diretor Comercial da Editora Abril e ex-sócio na Editora Três de seu irmão Luis Carta (ex-diretor da revista Realidade e ex-diretor Editorial da Abril) e que mais tarde fundou, com Fasano, a Carta Editorial, responsável por publicações de excelência editorial internacional e pioneiro no ingresso ao exigente mercado ibérico.

O Jornalista Claudio Abramo, eternizado em 1987, foi secretário de redação de O Estado de S.Paulo, depois secretário, diretor, correspondente e conselheiro da Folha de S.Paulo, que transformou em jornal de verdade em plena ditadura. Sob a sua direção, o principal jornal da família Frias rompeu com o ranço provinciano submisso às hordas fascistas do regime de 1964. Para se ter uma ideia da promiscuidade entre empresários e os órgãos de repressão, a Folha da Tarde, do mesmo grupo, funcionou nos anos de chumbo como centro suplementar da repressão (a redação do vespertino era cheia de ‘x-9’, isto é, policiais que se passavam por jornalistas, como os que sequestraram no meio da noite o Jornalista Vlado Herzog), além de os donos terem colaborado com paramilitares na Operação Bandeirantes para o transporte, em sua frota de carros, de corpos de vítimas da tortura e de execuções sumárias do DOI-CODI, DOPS, Esquadrão da Morte e Comando Le Coq (estes dois, grupos paramilitares). Com carta-branca do publisher Octavio Frias de Oliveira, Abramo não só contratou os melhores Jornalistas, analistas e colaboradores de seu tempo, como investiu na reforma gráfica e editorial, quando foram criados novos cadernos semanais, em especial o irreverente Folhetim, para o qual os ex-integrantes de O Pasquim Tarso de Castro, Fortuna, Luiz Gê, Angeli, Jota, Miguel Paiva, Marta Alencar, Sérgio Augusto, Paulo Francis e Newton Carlos foram contratados e tiveram total liberdade para produzir e editar o suplemento. Por conta da ousadia dos Jornalistas mais atirados, sobretudo Plínio Marcos, Fortuna e Tarso de Castro, o irascível chefe da Segurança Pública de São Paulo, coronel Antônio Erasmo Dias, invadiu a redação do jornal por causa da publicação da coluna em branco do cronista Lourenço Diaféria na Ilustrada, num ato de solidariedade ao Jornalista preso por supostamente ter ofendido a memória do Duque de Caxias em uma homenagem a um sargento morto ao salvar criança na iminência de ser atacada por uma ariranha em um lago de parque urbano. Claudio Abramo, Tarso de Castro e Plínio Marcos foram demitidos, e em seu lugar assumiu o controvertido reacionário Boris Casoy, ex-assessor de imprensa da família Frias, além dos extraordinários Mylton Severiano da Silva e Nelson Merlin para produzir o Folhetim, sob a chefia direta de Boris Casoy, verdadeiro feitor do jornal que Abramo havia revolucionado. Não demorou muito, e o irreverente suplemento trocou a equipe que o produzia e foi perdendo a simpatia do público ao adotar nova linha editorial (copiada do carrancudo Suplemento Cultural, do Estadão), tomado de resenhas literárias e ensaios acadêmicos, o que levou o Folhetim a ser fechado. Durante o tempo em que Abramo esteve fora da Folha, dedicou-se às artes plásticas.

Mino e Abramo já haviam trabalhado praticamente juntos na sede do Estadão, entre 1964 e 1966, quando um criou a edição vespertina (Jornal da Tarde) e o outro foi secretário de redação e ajudou a modernizar o matutino da família Mesquita. Mais tarde, quando ambos estavam sem emprego, também estiveram juntos numa edição mensal da Editora Símbolo (jornal especializado em literatura e cultura, o Leia Livros) com o editor Emir Machado Nogueira e a colunista Terezinha Monteiro, de Panorama, criada na década de 1960 na Folha Ilustrada por Jeronymo Monteiro, pai de T. Monteiro (como ela assinava) e primeiro diretor da Editora Abril (conforme consta dos gibis de Walt Disney da década de 1950), renomado Pai da Ficção Científica brasileira. Além disso, os dois Jornalistas desde jovens se dedicaram às artes plásticas, como geniais pintores, autores de telas valiosíssimas.

Os quase cinco meses de existência do Jornal da República foram suficientes para mostrar que um diário independente pode transformar a sociedade. Não foram poucos os jovens e leitores maduros que mudaram seu modo de enxergar a realidade brasileira ao ler e seguir esses dois Jornalistas. Assim como a IstoÉ de Mino Carta fez a primeira reportagem de capa sobre Luiz Inácio Lula da Silva, o JR foi o primeiro diário a publicar um artigo de opinião do sindicalista que se transformou no primeiro estadista brasileiro do século XXI (antes, a Folha sob a direção de Abramo e a edição setorial de Eduardo Matarazzo Suplicy publicou, em debate sobre sindicalismo e economia brasileira, depoimentos integrais de Lula e outros dirigentes sindicais, inclusive patronais, como Luiz Eulálio Bueno Vidigal, da FIESP). Basta navegar no portal da Biblioteca Nacional e selecionar a página ‘Hemeroteca Digital Brasileira’, preencher os espaços de busca com o nome do jornal, o período que quiser e tema ou autor. A propósito, há duas outras coleções tão importantes quanto à de que tratamos neste texto: a coleção digital completa do Correio da Manhã, carioca, o primeiro diário de circulação nacional a enfrentar a ditadura, e que por isso acabou levado ao fechamento depois de 70 anos de circulação, e a do Jornal do Brasil, um dos jornais mais emblemáticos do Rio de Janeiro na resistência ao regime de 1964, que encerrou suas atividades centenárias em 2010, depois de ter sido vendido à ARCA, do magnata Ary Carvalho, comodatário do Última Hora (de Samuel Wainer) do Rio durante a ditadura.

Com essa façanha, Mino Carta conseguiu demonstrar que no Brasil há espaço para um jornal do porte dos vinculados à corte desde o tempo da política café-com-leite, tais como as dinastias Mesquita, Marinho, Frias e, até pouco tempo atrás, Civita, sem falar nas famílias provincianas que fazem tabela com aquelas (anterior ao getulismo, que teve ao menos dois grandes meios, o Última Hora, de Samuel Wainer, e a Rede Tupi com os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, ao qual a icônica revista O Cruzeiro era vinculada). A era tecnológica contribuiu para o barateamento dos custos de produção, de modo que até uma rede de televisão alternativa à da família Marinho cabe neste país de dimensões continentais, mas sem vínculos com seitas e quadrilhas organizadas.

Mais que registrar, com muita gratidão e uma ponta de nostalgia, a trajetória do Jornal da República, é preciso divulgar e valorizar grandes Jornalistas e seu digno legado para o Jornalismo, a História e, sobretudo, a Cidadania e o Estado de Direito, cuja conquista foi possível graças ao seu incansável empenho e coragem.

Ahmad Schabib Hany

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