NINO,
O FELINO FELIZ
Com esse título, minha
Caçulinha fez, três anos atrás, um bonito conto em que narrava as proezas de um
gato meigo e libertário. Aliás, um ‘gentlecat’ (se houvesse esse vocábulo), tamanha a
sociabilidade e gentileza com as visitas e os vizinhos.
Nossa sociedade, que tem no seu centro os membros
de uma classe e sua vida nababesca como se fossem eles o protótipo da espécie
humana, costuma subalternizar os demais seres vivos, sejam do reino animal como
vegetal (além dos três novos reinos que a ciência vem catalogando nas últimas
décadas). É o tal ‘antropocentrismo’, dos tempos do chamado Renascimento
ocidental.
A Vida, no entanto, nos oferta generosamente todos
os dias verdadeiras lições dadas por seres que iluministas catalogaram como
‘irracionais’ ou ‘não racionais’, e por tal razão durante séculos (em alguns
casos, talvez milênios) foram coisificados, isto é, tratados como coisas, como
se não sentissem nada, e, pior, não tivessem dignidade.
Desde 2014, quando Omar e Sofia, nossos Filhos,
passaram a nos cobrar u’a mascote, nos tornamos alunos desses seres, que hoje
são considerados sencientes e, também, muito inteligentes e leais. Nosso
convívio inicial foi com inesquecível Pantera, uma cadelinha muito meiga e
brincalhona, presenteada pelos Pais da Maria Eduarda (Amiguinha da Sofia que
retornou para o Rio de Janeiro), mas pelo tamanho não ficou morando conosco em
apartamento, tendo se mudado para a casa dos Avós maternos. Tempos depois, foi
encontrada inerte, por problemas cardíacos.
Meses antes dessa fatalidade, um gatinho muito
sociável, livre e inteligente, havia chegado ao nosso convívio, o que amenizou
esse trauma para as Crianças. Minha Irmã Janan, que tem uma consciência
privilegiada no cuidado com seres abandonados, inclusive gatos e cachorros,
encontrou o gatinho recém-nascido abandonado, ao meio-dia, sob o sol
causticante da primavera. Temia não conseguir salvá-lo, mas a garra do
guerreirinho foi maior e se tornou mais um sobrevivente da desumanidade dos
seres ditos humanos que proliferam nestes tempos bizarros, tacanhos e sombrios.
Desidratado e desnutrido, recebeu cuidados até ganhar peso e estar saudável.
Feliz, o felino, já chamado de Nino, nos adotou
(pois é, são os ‘animais’ os que nos adotam, e não o inverso, como nossa vã
presunção insiste), para felicidade das Crianças, que lhe arranjaram sobrenome
pomposo: Sauro Piteco. Isto é, Nino Sauro Piteco. Chegou em casa com todas as
vacinas e aguardando o peso para ser castrado, o que ocorreu um mês depois.
Porém, no primeiro dia, estranhando o tamanho do apartamento (ele estava
acostumado a um espaço maior, numa casa com quintal e várias dependências, além
da companhia de seus ‘irmãozinhos’ Chocolate, Potinho e outras tantas
celebridades).
Livre como um pássaro, não saía das janelas do
apartamento, apreciando o voo das aves que circulam pelo bairro Universitário.
Num ímpeto de felino, subiu pela rede protetora e pulou no intuito de capturar
um pássaro em pleno voo. Não deu. Pior: caiu de uma altura de mais de quatro
metros. Só nos demos conta de sua ausência momentos depois, quando confirmamos
que não estava no apartamento. Resistente e perseverante, após o tombo que
poderia ter sido fatal, tentou retornar ao apartamento. Exausto e dolorido
(estava com ferimentos no focinho e descadeirado), acabou ficando no segundo
andar do bloco, onde mora Wanessa, que o acolheu e tratou dele por alguns dias.
Nesse meio-tempo, Solange deixou um cartaz na
guarita do condomínio com dados do Nino. Não demorou muito, Wanessa chegou com
o gatinho ainda se recuperando, e desde então ela se tornou Madrinha dele. Não
havia um dia que não passasse pelo apartamento dela e miasse até que ela lhe
abrisse a porta e o convidasse a entrar. Ficava horas a fio, como quem
estivesse conversando. Da mesma forma com o Esposo e o Filhinho dela. Até a
última semana em que ele ainda tinha forças para se locomover, passou algumas
horas no apartamento dela, como quem estivesse a agradecer e se despedir.
Com o tempo, Nino entendeu que seu lar era todo o
condomínio, e no bloco em que fica o apartamento em que moramos passou a
visitar quase todos os vizinhos, em especial o casal de vizinhos da Wanessa,
que ficou quatro anos em Corumbá: o Rafael e a Mariana, que nos contaram que
quando ele recebeu mensagem sobre a eternização do seu Avô e o Nino estava em
seu apartamento, repentinamente o gatinho subiu no colo dele, como quem
quisesse consolá-lo, e assim permaneceu por algum tempo. Quando se despediram de
nós (e de Nino), ao retornar para a cidade de origem, eles pediram para que não
os deixássemos sem notícias do Amiguinho.
Era disciplinado. Depois de quebrar o jejum, antes
das sete horas da manhã, pedia para sair, como se tivesse que ir para o
trabalho. Era o primeiro da fila, antes das Crianças, que saíam correndo para
as aulas no período matutino. Por conta desse hábito, dizíamos que ele ia para
a reunião do ‘Sindigato’, do qual era fundador e presidente. Até a chegada da
Bel, a gata grata, conforme Omar e Sofia decidiram chamar. Ela também veio
novinha, ainda na mamadeira. Presente da Sílvia, Amiga de longa data de
Solange, que resgatou com seu irmãozinho na antiga ferroviária de Corumbá.
Desde então, Nino passou a ser líder, e ela fazia questão de segui-lo.
Ensinar, aliás, era uma das habilidades do Nino.
Renata, vizinha de porta, assim que chegou ao condomínio, dizia ter receio de
gatos e que preferia cães. Insistentemente, Nino passou a adentrar, mesmo sem
ser convidado, a seu apartamento. Nessas horas, Solange tinha que correr e
pegar o gato no colo para trancá-lo em casa. Essa insistência, para nós
constrangedora, fez com que nossa vizinha mudasse de opinião, a ponto de ter
adotado um gatinho, Frederico, hoje sua mascote inseparável. Da mesma forma,
uma colega dela que mora no térreo, a Tanísia, ficou muito sensibilizada ao
saber que Nino teve diagnosticado câncer e se colocou à disposição para
acompanhá-lo como enfermeira -
pois ele também foi uma companhia leal durante todo o tempo em que ela veio
morar no condomínio, a ponto de ter pensado adotá-lo, crendo que não tivesse
casa.
Nino e Bel, aliás, sempre foram amados em casa.
Enquanto Nino gostava de interagir com os moradores do condomínio, como se os
apartamentos vizinhos e os demais blocos fossem dependências daquilo que ele
entendia ser a sua casa, Bel, discreta e arisca, não sai do apartamento nem
carregada: tenta nos arranhar e volta para o apartamento sem fôlego e
desesperada. Mesmo assim, sempre teve pelo Nino um líder, e fazia questão de segui-lo,
como exemplo e referência. Sem imaginar que seria festa única, Sofia propôs, no
ano passado, comemorarmos o ‘aniversário’ dos dois no dia 14 de novembro,
suposta data de nascimento de Nino em 2015. Foi uma festa bonita - só
entre nós, por causa da pandemia, bastante documentada e com muitas cenas
inusitadas, como as Crianças gostam.
Resistiu estoicamente ao câncer. Somente no
período em que teve diagnosticada a doença é que ele ficou internado. Depois
disso, relutou a entrar em sua jaula, que por anos ele usou como ‘suíte
faraônica’, exclusivamente para dormir. Chegava a passar mal quando tentávamos
levá-lo para tomar alguma injeção na clínica, tanto que só o fizemos apenas uma
vez depois de diagnosticado o câncer. Nos dois meses posteriores, comeu de
tudo, inclusive sorvete e torta de chocolate. Deu-se ao prazer de experimentar
de tudo, mas o que mais pedia era carne vermelha crua, de preferência moída. E
como não tinha doença contagiosa, visitou Amigos e Amigas que cativou ao longo
de sua existência, breve mas intensa.
Só demonstrou exaustão no último dia, mesmo assim
tomou os remédios e nutrientes, sem reclamar. Um verdadeiro guerreiro,
incansável e determinado. Ao ouvir talheres e pratos sendo postos à mesa, ele
era o primeiro a chegar, inclusive no seu derradeiro dia. Mas, como prova da
dignidade felina, no momento de seu último suspiro, mesmo tendo miado como para
se despedir, se recolheu ao isolamento. Pensávamos dar-lhe as gotas de dipirona
para aliviar-lhe a dor quando Solange e as Crianças o encontraram inerte. Havia
encerrado a sua linda (embora nos últimos dias dolorida) jornada.
As mensagens constantes das fotos acima do texto,
feitas respectivamente por Omar e Sofia, expressam o mais puro sentimento que
ele cativou em todos nós, da forma e do jeito que as Crianças melhor traduzem
essa relação de lealdade, amor e verdade, desde sempre.
Ahmad
Schabib Hany
Nenhum comentário:
Postar um comentário