terça-feira, 26 de outubro de 2021

NINO, O FELINO FELIZ

 

NINO, O FELINO FELIZ

Com esse título, minha Caçulinha fez, três anos atrás, um bonito conto em que narrava as proezas de um gato meigo e libertário. Aliás, um ‘gentlecat’ (se houvesse esse vocábulo), tamanha a sociabilidade e gentileza com as visitas e os vizinhos.

Nossa sociedade, que tem no seu centro os membros de uma classe e sua vida nababesca como se fossem eles o protótipo da espécie humana, costuma subalternizar os demais seres vivos, sejam do reino animal como vegetal (além dos três novos reinos que a ciência vem catalogando nas últimas décadas). É o tal ‘antropocentrismo’, dos tempos do chamado Renascimento ocidental.

A Vida, no entanto, nos oferta generosamente todos os dias verdadeiras lições dadas por seres que iluministas catalogaram como ‘irracionais’ ou ‘não racionais’, e por tal razão durante séculos (em alguns casos, talvez milênios) foram coisificados, isto é, tratados como coisas, como se não sentissem nada, e, pior, não tivessem dignidade.

Desde 2014, quando Omar e Sofia, nossos Filhos, passaram a nos cobrar u’a mascote, nos tornamos alunos desses seres, que hoje são considerados sencientes e, também, muito inteligentes e leais. Nosso convívio inicial foi com inesquecível Pantera, uma cadelinha muito meiga e brincalhona, presenteada pelos Pais da Maria Eduarda (Amiguinha da Sofia que retornou para o Rio de Janeiro), mas pelo tamanho não ficou morando conosco em apartamento, tendo se mudado para a casa dos Avós maternos. Tempos depois, foi encontrada inerte, por problemas cardíacos.

Meses antes dessa fatalidade, um gatinho muito sociável, livre e inteligente, havia chegado ao nosso convívio, o que amenizou esse trauma para as Crianças. Minha Irmã Janan, que tem uma consciência privilegiada no cuidado com seres abandonados, inclusive gatos e cachorros, encontrou o gatinho recém-nascido abandonado, ao meio-dia, sob o sol causticante da primavera. Temia não conseguir salvá-lo, mas a garra do guerreirinho foi maior e se tornou mais um sobrevivente da desumanidade dos seres ditos humanos que proliferam nestes tempos bizarros, tacanhos e sombrios. Desidratado e desnutrido, recebeu cuidados até ganhar peso e estar saudável.

Feliz, o felino, já chamado de Nino, nos adotou (pois é, são os ‘animais’ os que nos adotam, e não o inverso, como nossa vã presunção insiste), para felicidade das Crianças, que lhe arranjaram sobrenome pomposo: Sauro Piteco. Isto é, Nino Sauro Piteco. Chegou em casa com todas as vacinas e aguardando o peso para ser castrado, o que ocorreu um mês depois. Porém, no primeiro dia, estranhando o tamanho do apartamento (ele estava acostumado a um espaço maior, numa casa com quintal e várias dependências, além da companhia de seus ‘irmãozinhos’ Chocolate, Potinho e outras tantas celebridades).

Livre como um pássaro, não saía das janelas do apartamento, apreciando o voo das aves que circulam pelo bairro Universitário. Num ímpeto de felino, subiu pela rede protetora e pulou no intuito de capturar um pássaro em pleno voo. Não deu. Pior: caiu de uma altura de mais de quatro metros. Só nos demos conta de sua ausência momentos depois, quando confirmamos que não estava no apartamento. Resistente e perseverante, após o tombo que poderia ter sido fatal, tentou retornar ao apartamento. Exausto e dolorido (estava com ferimentos no focinho e descadeirado), acabou ficando no segundo andar do bloco, onde mora Wanessa, que o acolheu e tratou dele por alguns dias.

Nesse meio-tempo, Solange deixou um cartaz na guarita do condomínio com dados do Nino. Não demorou muito, Wanessa chegou com o gatinho ainda se recuperando, e desde então ela se tornou Madrinha dele. Não havia um dia que não passasse pelo apartamento dela e miasse até que ela lhe abrisse a porta e o convidasse a entrar. Ficava horas a fio, como quem estivesse conversando. Da mesma forma com o Esposo e o Filhinho dela. Até a última semana em que ele ainda tinha forças para se locomover, passou algumas horas no apartamento dela, como quem estivesse a agradecer e se despedir.

Com o tempo, Nino entendeu que seu lar era todo o condomínio, e no bloco em que fica o apartamento em que moramos passou a visitar quase todos os vizinhos, em especial o casal de vizinhos da Wanessa, que ficou quatro anos em Corumbá: o Rafael e a Mariana, que nos contaram que quando ele recebeu mensagem sobre a eternização do seu Avô e o Nino estava em seu apartamento, repentinamente o gatinho subiu no colo dele, como quem quisesse consolá-lo, e assim permaneceu por algum tempo. Quando se despediram de nós (e de Nino), ao retornar para a cidade de origem, eles pediram para que não os deixássemos sem notícias do Amiguinho.

Era disciplinado. Depois de quebrar o jejum, antes das sete horas da manhã, pedia para sair, como se tivesse que ir para o trabalho. Era o primeiro da fila, antes das Crianças, que saíam correndo para as aulas no período matutino. Por conta desse hábito, dizíamos que ele ia para a reunião do ‘Sindigato’, do qual era fundador e presidente. Até a chegada da Bel, a gata grata, conforme Omar e Sofia decidiram chamar. Ela também veio novinha, ainda na mamadeira. Presente da Sílvia, Amiga de longa data de Solange, que resgatou com seu irmãozinho na antiga ferroviária de Corumbá. Desde então, Nino passou a ser líder, e ela fazia questão de segui-lo.

Ensinar, aliás, era uma das habilidades do Nino. Renata, vizinha de porta, assim que chegou ao condomínio, dizia ter receio de gatos e que preferia cães. Insistentemente, Nino passou a adentrar, mesmo sem ser convidado, a seu apartamento. Nessas horas, Solange tinha que correr e pegar o gato no colo para trancá-lo em casa. Essa insistência, para nós constrangedora, fez com que nossa vizinha mudasse de opinião, a ponto de ter adotado um gatinho, Frederico, hoje sua mascote inseparável. Da mesma forma, uma colega dela que mora no térreo, a Tanísia, ficou muito sensibilizada ao saber que Nino teve diagnosticado câncer e se colocou à disposição para acompanhá-lo como enfermeira - pois ele também foi uma companhia leal durante todo o tempo em que ela veio morar no condomínio, a ponto de ter pensado adotá-lo, crendo que não tivesse casa.

Nino e Bel, aliás, sempre foram amados em casa. Enquanto Nino gostava de interagir com os moradores do condomínio, como se os apartamentos vizinhos e os demais blocos fossem dependências daquilo que ele entendia ser a sua casa, Bel, discreta e arisca, não sai do apartamento nem carregada: tenta nos arranhar e volta para o apartamento sem fôlego e desesperada. Mesmo assim, sempre teve pelo Nino um líder, e fazia questão de segui-lo, como exemplo e referência. Sem imaginar que seria festa única, Sofia propôs, no ano passado, comemorarmos o ‘aniversário’ dos dois no dia 14 de novembro, suposta data de nascimento de Nino em 2015. Foi uma festa bonita - só entre nós, por causa da pandemia, bastante documentada e com muitas cenas inusitadas, como as Crianças gostam.

Resistiu estoicamente ao câncer. Somente no período em que teve diagnosticada a doença é que ele ficou internado. Depois disso, relutou a entrar em sua jaula, que por anos ele usou como ‘suíte faraônica’, exclusivamente para dormir. Chegava a passar mal quando tentávamos levá-lo para tomar alguma injeção na clínica, tanto que só o fizemos apenas uma vez depois de diagnosticado o câncer. Nos dois meses posteriores, comeu de tudo, inclusive sorvete e torta de chocolate. Deu-se ao prazer de experimentar de tudo, mas o que mais pedia era carne vermelha crua, de preferência moída. E como não tinha doença contagiosa, visitou Amigos e Amigas que cativou ao longo de sua existência, breve mas intensa.

Só demonstrou exaustão no último dia, mesmo assim tomou os remédios e nutrientes, sem reclamar. Um verdadeiro guerreiro, incansável e determinado. Ao ouvir talheres e pratos sendo postos à mesa, ele era o primeiro a chegar, inclusive no seu derradeiro dia. Mas, como prova da dignidade felina, no momento de seu último suspiro, mesmo tendo miado como para se despedir, se recolheu ao isolamento. Pensávamos dar-lhe as gotas de dipirona para aliviar-lhe a dor quando Solange e as Crianças o encontraram inerte. Havia encerrado a sua linda (embora nos últimos dias dolorida) jornada.

As mensagens constantes das fotos acima do texto, feitas respectivamente por Omar e Sofia, expressam o mais puro sentimento que ele cativou em todos nós, da forma e do jeito que as Crianças melhor traduzem essa relação de lealdade, amor e verdade, desde sempre.

Ahmad Schabib Hany


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