O DERRADEIRO ANIVERSÁRIO DE UM GRANDE
GURU
Mohamed (“Chíchi”) fez parte de uma geração de jovens generosos
cujos ideais não se circunscreveram à ascensão social ou à simples
autorrealização, mas à transformação da sociedade e à procura incansável da
justiça social.
25 de janeiro de 1974. Manhã quente, mas com promessa de chuva.
Dia de aniversário no lar de um casal muito querido -- por acaso, meus saudosos
Pais, que no ano anterior, em 26 de abril, tinham feito suas Bodas de Prata,
restritamente em família, até porque desde a chegada ao Brasil a luta pela
sobrevivência e pela formação educacional dos/as filhos/as era prioridade
absoluta --, e o primogênito comemorava, bem ao seu estilo, “um quarto de
século”.
Mohamed, que estava “a um passo” de sua graduação em Psicologia no
Centro Pedagógico de Corumbá (CPC), da Universidade Estadual de Mato Grosso
(UEMT) -- a ditadura sanguinária do coronel, autoproclamado general já como
ditador, Hugo Banzer Suárez, instaurada em agosto de 1971, e que inseriu a
Bolívia em seus quase oito anos de arbítrio e corrupção entre os principais
produtores mundiais de cocaína, decretara o recesso das universidades por dois
anos, razão pela qual havia sido obrigado a abandonar Sociologia na
Universidade Mayor de San Andrés (UMSA) --, pedira a nossos Pais que, em vez de
festa, a Família se dedicasse a algo diferente.
E assim foi. Embora meu Pai gostasse de comemorações, atendeu ao
pedido de meu hoje saudoso Irmão, e, em vez de festa, foi um dia de muito
trabalho, em que levou a todos/as a uma inevitável reflexão: apesar de termos
todos os motivos para comemorar mais um ano de vida do mais velho dos Filhos de
“Seu” Schabib e Dona Yoya, como meus Pais eram conhecidos, seu inusitado pedido
provocou uma chamada de atenção, sobretudo às/ao Irmãs/ão, mais novas/o e,
portanto, curiosas/o. Sem proselitismo, esse Irmão sabiamente nos alertava sobre
o que acontecia ao nosso redor, ainda que a aparência de normalidade,
insustentável, tentasse encobrir os tempos sombrios em que vivíamos.
Dava a impressão de que algo estranho estivesse acontecendo.
E, de fato, 1974 desde o começo foi diferente, não apenas para nossa Família,
mas para Corumbá e todo o continente: Depois do golpe sanguinário do facínora
Augusto Pinochet, no Chile, ocorrido em setembro de 1973, as hordas fascistas
se sentiam muito mais fortalecidas. Não por acaso, a despeito da iminente derrota
dos Estados Unidos no Vietnã servisse de ducha de água fria para os falcões do
Pentágono, no hemisfério Sul, particularmente na América Latina, o nefasto
Plano Condor já estava em projeto, nas pranchetas obscurantistas dos
estrategistas sanguinolentos, que agiam com total desenvoltura desde os porões
das (mal)ditaduras serviçais do império.
1974 era ano eleitoral, e o partido de sustentação do regime de 1964,
a Arena (Aliança Renovadora Nacional) começava a sentir o desgaste inerente ao
exercício do poder, ainda mais, com a censura sistemática a todos, literalmente
todos, os meios de comunicação -- jornais, revistas, rádios, cinema e televisão
--, as denúncias, ainda que a boca pequena, de casos de tortura, mortes
misteriosas e desaparecimentos de pessoas normais e comuns que “saíam de cena” por
terem sido denunciadas por bajuladores/as da ditadura, que para fazer média com
seus chefes forjavam acusações contra eventuais desafetos/as ou parentes de
desafetos/as, leviana e criminosamente.
Músicas com
estribilhos do tipo “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo, ninguém segura a
juventude do Brasil” eram as que mais tocavam nas duas emissoras de rádio de
Corumbá, a despeito da qualidade profissional da imensa maioria dos
trabalhadores da radiodifusão local, fosse na Rádio Difusora Mato-grossense S/A
ou na Sociedade Rádio Clube de Corumbá Ltda. Ao passar a frequentar os estúdios
das duas emissoras (um no histórico prédio da rua Treze de Junho, demolido em
1978, e o outro na sobreloja do Cine Anache, hoje ameaçado de demolição), por
meio de nossos queridos Amigos Juvenal Ávila de Oliveira e Edson Moraes, é que
pude conhecer o rigor do controle burocrático da censura, que então se grafava
com letra maiúscula, por indicar o Departamento de Censura e Diversões Públicas
da Polícia Federal, órgão do Ministério da Justiça.
A onda, digamos, “puritana” também tomava conta das redações dos
jornais de Corumbá. Colaborações assinadas por seguidores locais do pensamento
de Plínio Correia de Oliveira, fundador e principal dirigente da Organização
Brasileira de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade (TFP), estampavam
a primeira página dos jornais corumbaenses. Havia uma determinação incontestável
para acompanhar a orientação dos chefes do regime, em que o senador
mato-grossense Filinto Müller (o mesmo que, quando chefe da polícia política da
ditadura de Vargas, o DIP, entregou a Companheira de Prestes para ser morta pelos
carrascos nazistas, na Alemanha de Hitler) não só fora presidente do Senado
como da Arena (e terminara morto na queda do avião da Varig em Orly, nas
imediações de Paris, França, em julho de 1973).
Naquela época os delegados de polícia eram nomeados por atos
discricionários do governador, pois ainda não havia sido conquistada a carreira
policial (aliás, Corumbá até então só possuía Polícia Civil; a Polícia Militar
e o Corpo de Bombeiros viriam no ano das comemorações do Bicentenário de
Corumbá, 1978, quando o vice-governador Cássio Leite de Barros assume o governo
de Mato Grosso, em decorrência da desincompatibilização do governador Garcia
Neto, candidato a senador). O então delegado regional de polícia, um bacharel
em Direito que antes fora professor de Matemática, de Educação Moral e Cívica
(EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), no início de dezembro
de 1973, havia recebido um abaixo-assinado de moradores da ex-Feira Boliviana,
onde residíamos, reivindicando que contivessem a violência explícita nas
imediações de bares noturnos, em que, sobretudo, trabalhadores rurais e trabalhadoras
do sexo acabavam perdendo a vida, além de ameaçar transeuntes que, ao final das
aulas noturnas, retornavam às suas casas.
Curiosamente, em vez de promover uma solução acordada entre
proprietários desses bares e os moradores da localidade, determinou que se
fizessem blitze indiscriminadas em estabelecimentos comerciais, sorveterias,
restaurantes, hospedarias e hotéis devidamente registrados, como flagrante
retaliação contra os subscritores daquela petição, detalhada e bem articulada.
Na época, meu saudoso Pai havia sido um dos autores do documento e, além de
morador, era proprietário de uma sorveteria e uma hospedaria com refeitório, e
entendera o recado do delegado, mas não se intimidara porque fazia questão de
andar dentro da legalidade.
O alvo, então, passou a ser outro: meu Irmão, que retornava a pé do
CPC (já nas instalações da Unidade 1 do atual Campus do Pantanal da UFMS), depois
das dez da noite, geralmente sozinho. Ele contara, pelo menos três vezes, que o
camburão da Polícia Civil (uma Veraneio modelo 1970) o havia abordado de forma
provocativa já na rua América, nas imediações da Importadora Corumbaense Ltda.,
antiga distribuidora da Brahma na região. Meu Pai, que não se fazia de rogado,
chegou a visitar o gabinete do delegado regional várias vezes, mas este não o
atendia, limitando-se a designar subalternos para ouvi-lo, e que sempre
recorriam ao argumento de que “o delegado” é quem deve tomar as providências. Que
nunca foram tomadas.
Em março, precisamente dia 11, aniversário de minha saudosa Mãe,
um grupo de indivíduos não identificados tentava inutilmente adentrar, pelos
fundos, ao quintal da casa da Família, quando cães latiram e os intimidaram.
Uma de minhas Irmãs acordou com os latidos e chamou meu Pai, que, como
advertência, deu cinco disparos de revólver calibre 32 (registrado e com porte
de armas), acreditando tratar-se de ladrões. Do outro lado encontrava-se a
hospedaria totalmente lotada, principalmente por comerciantes bolivianos que
costumavam carregar elevados valores para compra de mercadorias em São Paulo, e
ao retorno para pagamento de taxas aduaneiras, impostos de importação e fretes
ferroviários.
Só depois dos disparos é que se anunciaram policiais civis em
operação de captura de um suspeito, como se o quintal de casa não estivesse
cercado ou fosse terreno baldio. Pior: insinuaram o suspeito ser meu Irmão,
universitário que, inclusive, estava com a Carteira de Trabalho assinada, pois
trabalhara bom tempo com o inventor do famoso Trator-Anfíbio do Pantanal, o Senhor
Alfredo Buonnocore, da Ital Mecânica Corumbaense Ltda. (antes de cursar
Sociologia, ele iniciara bacharelado em Engenharia Civil, também na UMSA, em La
Paz). Até minhas Irmãs e eu entramos no bate-boca com os ditos policiais (que
mais pareciam jagunços), repudiando o ocorrido e exigindo respeito por todos/as
nós.
Por causa dos disparos, a guarnição tentou levar meu Pai à
delegacia na madrugada, mas ele se recusou, ou melhor, minha Mãe se interpôs e
o impediu de sair de casa, até por temer pela integridade física dele. Mas às 7
horas da manhã ele já estava na delegacia com testemunhas, provando que eles
não haviam se apresentado pela porta da hospedaria ou tocado a campainha da
casa. Mais uma vez, não era o delegado regional que o atendia, mas um delegado
subalterno, recém-chegado, que, embora dissesse compreender as razões de meu
Pai, em momento algum determinou algum procedimento disciplinar contra os
implicados nesse episódio, que mais parecia um atentado.
Depois desse episódio, meu Irmão tomou mais cuidado com sua
integridade física, e passou a pegar carona de Amigos que o deixavam na porta
de casa. Mesmo assim, em
meados de agosto daquele ano, segundo alguns de seus Amigos mais próximos, ele
fora alvo de mais uma investida de um dos camburões (creio que eram duas Veraneios
as que haviam sido designadas a Corumbá, em substituição ao velho Jeep modelo
1960 e às duas “rádio patrulhas”, que eram Fuscas 1967, com uma sirene
estridente). Não por ser meu Irmão (e Guru), mas Mohamed tinha um raciocínio eficiente
e uma capacidade de convencimento extraordinária. Até meu Pai, excelente para
debates, acabava perdendo para meu saudoso Irmão. Mas esse episódio derradeiro
nunca contara para a Família, talvez para evitar preocupação com ele, que era
autossuficiente.
Ano atípico, 1974 não
se encerra sem antes testemunhar a eternização de Mohamed, em circunstâncias
nunca elucidadas pelas autoridades da época. Aniversário de 196 anos da
fundação de Corumbá, 21 de setembro entra para nossa história familiar como o
fatídico dia em que o nosso Guru, nosso incansável Mestre, em meio a um
mistério sem fim (em minha modesta opinião, propositalmente, pois as
autoridades se omitiram flagrantemente), se eterniza e, embora em pensamento
sempre o tenhamos presente em todos os momentos de nossa Vida, a lacuna de sua
rica e fecunda convivência conosco marcou muito a nossa juventude e, sobretudo,
a Vida de nossos saudosos Pais, que se eternizaram sem terem podido encontrar a
resposta que tanto procuravam, pois sabiam que seu primogênito, além de
generoso e solidário, era um convicto ser vivente da e pela transformação da
humanidade.
Ahmad Schabib Hany
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