quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

NO CENTENÁRIO DE FELLINI, AS TRAPA(ÇAS)LHADAS DE SERES GROTESCOS...



NO CENTENÁRIO DE FELLINI, AS TRAPA(ÇAS)LHADAS DE SERES GROTESCOS...

O imortal cineasta Federico Fellini, que neste 20 de janeiro completaria 100 anos de uma Vida fecunda e satírica, não só viu como viveu e recriou com genialidade a decadente sociedade capitalista. Se estivesse entre nós, viveria intenso estranhamento com seres grotescos como Berlusconi, Sarcozy, Trump, Johnson e... Bolsonaro.

Pobre humanidade, tão longe da razão e tão perto dos criadores de fake news...

Atrevo-me a tomar emprestadas, ao meu modo, as palavras do caudilho mexicano anterior à Revolução Mexicana de Emiliano Zapata, Porfirio Díaz, que sabiamente disse “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos...”

Dia 20 de janeiro de 2020, em meio ao início do encontro anual das maiores economias do planeta conhecido como Fórum Econômico Mundial, reúnem se, em Davos (Suíça), seres grotescos que poderiam ter saído da genial produção cinematográfica do neorrealismo italiano que propiciou para gerações a fio oportunidades de abrir seus horizontes. Irônica ou cinicamente, o tema deste ano foi, imaginem, “meio ambiente e sustentabilidade”, 28 anos depois da emblemática Carta da Terra, produzida em 1992, durante a Rio-92.

Também o Rio de Janeiro não é mais o mesmo. Além da contaminação da água potável produzida pela Companhia Estadual de Água e Esgoto, estatal do saneamento básico em fase de privatização -- logo no país das maiores reservas de água doce do mundo --, aquela que já foi a Cidade Maravilhosa hoje é um verdadeiro caos urbano, entre as ações de milicianos protegidos por autoridades, inclusive da esfera federal (muitos dos quais explicitamente fazendo apologia ao nazifascismo), e a guerra não declarada que tornou refém a população, que se encontra sob fogo cruzado, em que diariamente tem vítimas de balas perdidas.

Ainda por cima, Regina Duarte não é mais a mesma. Aquela que já foi a Namoradinha do Brasil, a atriz global que interpretou em sua fase áurea emblemáticas personagens como Malu Mulher e a Viúva Porcina, “aquela que era sem nunca ter sido” (segundo o nosso Fellini brasileiro, o imortal Dias Gomes), se presta ao papel de serviçal dos/as nazifascistas tupiniquins, enlameados/as no laranjal impune, untados/as com o sangue valente de Marielle Franco cujos facínoras continuam impunes, no desmonte criminoso do Estado de Direito brasileiro, na entrega de lesa-pátria das riquezas nacionais e na disseminação do ódio e da intolerância em nome de um suposto “cristianismo” sionista.

Se isso fosse pouco, na véspera, tanto em Pedro Juan Caballero (Paraguai) como em Rio Branco (Acre), uma das organizações criminosas mais estruturadas da América Latina -- que durante anos contou com a parcimônia (ou cumplicidade institucional explícita?) dos tucanos de São Paulo, desde 1983, direta ou indiretamente, tomando conta do Executivo paulista --, realiza fuga espetacular de presos sem que as autoridades penitenciárias e policiais tivessem esboçado qualquer atitude preventiva, afinal são pagos para isso.

Como a América Latina também já não é mais a mesma, a Bolívia recolonizada (“democratizada” pelo golpe “cívico”-policial-militar, segundo a mídia mercenária) deverá ser o destino dos fugitivos dessa organização, para ajudar a organizar os grupos paramilitares que farão a limpeza étnica no país, a serviço dos amos e senhores dos/as fantoches que tomaram de assalto os destinos da nação andina, conforme denuncia um veterano jornalista boliviano que permanece na resistência, a despeito da censura truculenta sob o governo da senadora-presidenta Jeanine Áñez, a mesma cujo sobrinho foi preso, em Tangará da Serra (MT), ao tentar traficar para o Brasil 472 quilos de cocaína em um avião.

Pois, nesse mesmo dia, Federico (sem “r”) Fellini, um dos expoentes do neorrealismo, estaria completando 100 anos de uma profícua, genial e satírica existência, em que generosamente presenteou a humanidade com memoráveis produções cinematográficas, como “La dolce vita” (1960), “Satiricon” (1969), “Roma” (1973) e “E la nave va” (1983). Como pouquíssimos, soube desnudar a hipocrisia e o parasitismo de uma sociedade decadente com elegante ironia e uma inteligente dose de humor.

E é importante recordar que Fellini, embora fosse ímpar, não esteve sozinho. Foi integrante de duas ou três gerações de sobreviventes da barbárie do nazifascismo e dos horrores das investidas dos aliados ocidentais na disputa pelo espólio do “Duce” (que em nome da liberdade e de uma democracia branca promoveram verdadeiro terrorismo contra a população civil, vítima dos fascistas e dos autoproclamados “libertadores” ocidentais). A genial cinematografia italiana de seu tempo contou com gênios como Luchino Visconti, Vittorio De Sicca, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci e Roberto Benigni.

Fellini, com elegante ironia e singular genialidade, serviu de abre-alas para o despertar de consciências a diversas gerações, bem como os colegas citados: é que assistir à projeção de um de seus filmes geniais representava uma oportunidade única para enxergar de outra maneira aquilo que aparentava ser “natural”, o cotidiano de uma sociedade em franca decadência, a despeito das sucessivas tentativas de postergar o momento fatídico de sua exaustão. E, ao contrário da máquina de propaganda em que nazistas e fascistas sempre se valeram para “doutrinar” (na verdade, alienar) o público, o cinema italiano é um descortinador de horizontes, inclusive sob a direção de outros ícones, como Massimo Troisi, Paolo Torrentino, Ettore Scolla, Mario Monicheli, Sergio Leone e Franco Zeffirelli, entre outros/as igualmente dignos/as de menção.

Neste contexto de “líderes” grotescos -- entre aspas, porque até eles sabem que nem a si mesmos eles representam, quanto mais lideram, reles fantoches de interesses inconfessáveis que são --, Fellini e seus geniais colegas da sétima arte teriam sido vítimas de “overdose” por causa do excesso de seres grotescos que (des)grass(ç)am na política mundial (inclusive em nossa cada vez mais depauperada América Latina), como os mefistofélicos Silvio Berlusconi, Nicolás Sarcozy, Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro e assemelhados/as. E fazemos questão de uma urgente ressalva: todos eles não passam de marionetes de um capitalismo decadente (e por isso desesperado), que recorre aos expedientes mais nefastos para fazer valer seus mesquinhos e inconfessáveis interesses, sobretudo apossar-se das reservas de água doce, petróleo, lítio e outras matérias-primas.

Embora neste momento não recorde o diálogo completo, em uma lista de grandes diretores feita por Visconti (e ele se excluía), um dos citados (creio que Fellini) acrescentava, com a irreverência peculiar, “... e Viscontini” (porque da lista constavam só nomes finalizados em “ni”, como Felini, Antonioni, Rossellini e Pasolini. Essa era a capacidade de resistência e de criação das gerações que sobreviveram e derrotaram o fascismo que hoje teima em voltar a oprimir a humanidade. Novamente ficarão na tentativa, pois não passarão, até como tributo à memória de seres humanos da dimensão de Fellini.

Ahmad Schabib Hany

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