Pobre País: entre justiceiros
togados, saudosistas da ditadura e a mediocridade golpista
Peço licença
a meus contemporâneos, mas tentarei seguir alguns dos passos do inimitável
Tucídides -- que, diferentemente de Heródoto, celebrado como o pai da História,
escrevera para a posteridade, e sem omitir o lado em que estava quando
registrou a Guerra do Peloponeso -- nesta sincera tentativa de réquiem para a Democracia,
esta balzaquiana mal-amada, fruto da luta de muitas gerações para ser perenizada
por meio da aclamada Constituição Cidadã, hoje sangrando, nos estertores da morte,
apunhalada por três agentes nefastos: os justiceiros togados, os saudosistas da
ditadura e a mediocridade golpista que, pela incapacidade constatada de vencer
nas urnas em quatro sucessivos pleitos, optou cínica e acintosamente pelo atalho
perverso do trambique para atender aos inconfessáveis interesses dos amos e
senhores da metrópole decadente representada pela derradeira superpotência do
pós-guerra de 1945.
Não
poderia haver roteiro mais “técnico”, mais preciso, mais meticuloso, melhor
elaborado. Para decepção de muitos, não se tratava de alguma produção
cinematográfica da criativa genialidade de Dias Gomes, crítico mordaz da
perversão e da mediocridade das elites dirigentes deste país. Estava tudo televisionado,
como aquele programa comprado da metrópole global a preço de ouro (e que não
teve o mesmo sucesso entre os seus como tem entre os nossos) pela rede monopolista
de televisão, funesta herança do regime de 1964. Tratava-se, isso sim, da
sessão de julgamento, bem aos moldes hollywoodianos, pela Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), do pedido de suplício, digo, de Habeas
Corpus preventivo proposto pela defesa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
cujo reconhecimento popular cresce na mesma proporção em que vem sendo
derrotado pelas nefandas instâncias do Judiciário brasileiro. Desnecessário dizer
que, por (sic) unanimidade -- repito:
u-n-a-n-i-m-i-d-a-d-e -- o referido pedido foi negado, pelo inimaginável escore
de 5 a 0, só não maior que a vergonhosa humilhação imposta pela seleção alemã à
nossa Canarinho, de triste memória.
Que me
perdoem os doutos, mas, convenhamos: ninguém, em sã consciência, engoliu aquela
história de que a decisão fora “técnica” -- como não fora “técnica” a decisão
de prender e cassar o medíocre e arrogante ex-senador e ex-petista Delcídio do
Amaral Gómez e de não prender o netinho mimado, igualmente arrogante e medíocre
senador tucano Aécio Neves da Cunha, que foi pego tramando garfar propina milionária
e ameaçando de morte o primo que o ajudasse a carregar a muamba. Se o Congresso
Nacional está enlameado, suas excelências de toga, data vênia, estão pior que
poleiro de pato na opinião do povo, e com essas condutas “tecnicamente”
ensaiadas, logo, logo, ganharão do presidente golpista Michel Miguel Temer
Lulia a lanterninha dos índices de confiança pelo sábio público.
Nas
esquinas deste país é comum e recorrente encontrar pessoas humildes desejosas
de fazer o curso de Direito para, em poucos anos, poder qualificar-se e dizer
aos doutos senhores de toga o que pensam sobre o mito de que na Justiça -- isto
é, no Direito positivado, como o nosso -- não há o sim e o não absoluto, mas o “em
termos”, ou, em português coloquial, o clássico “depende”, como pude
testemunhar nestas duas últimas semanas mais de meia dúzia de episódios. Não se
trata apenas da “judicialização” da política, como sói dizer-se na crônica
jornalística tupiniquim: o repentino ingresso do justiceiro togado no quotidiano
político, como um salvador da pátria ou um super-herói, subverteu a ordem
institucional, construída com muito custo nas últimas décadas, como há 50 anos
a presença dos militares no âmbito da político, e sabemos hoje em que deu.
Nunca na
história deste país um ex-presidente da República -- eleito e reeleito pelo
voto soberano da maioria da população, em dois turnos (além de ter, pela
primeira vez nos tempos recentes de nossa esquálida democracia, conseguido eleger
e reeleger sua sucessora, a primeira mulher no mais alto cargo da nação) --, na
iminência de empreender outra acachapante derrota aos seus adversários dos mais
diferentes matizes nos dois turnos destas eleições gerais de 2018, recebeu
tratamento de um reles criminoso, e, pior, corre o risco de ser tirado do mais
democrático dos julgamentos, o popular, o do voto direto e secreto, sem terem
conseguido provas consistentes -- modificaram, sem prévia mudança do texto legal,
concepções e procedimentos, com o único intuito de fazer valer “convicção” de
juiz em lugar das necessárias provas robustas para tipificar o crime cometido.
Se utilizassem
ou tivessem utilizado esse mesmo expediente com o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso (nos casos da compra de deputados para aprovar o instituto da reeleição
em 1997, da privatização das companhias telefônicas e da Vale entre 1996 e 2001,
da compra de um apartamento para uma ex em Paris depois de ter deixado o cargo),
com o ex-deputado Eduardo Azeredo (pivô do “mensalão tucano”, entre 1994 e 2005,
que está há tempos no Supremo Tribunal Federal, já perto da prescrição), com o senador
José Serra (casos de enriquecimento súbito da filha ainda bem jovem e da origem
desconhecida de bens patrimoniais em nome de outros familiares, não elucidados quando
ministro e governador, nas duas últimas décadas), com o governador Geraldo Alckmin
(casos da merenda escolar, das novas linhas do Metrô e do Rodoanel, entre 2000
e 2013)? Não, pois eles são verdadeiramente intocáveis, são “do bem”, além de “bem-nascidos”...
Até o
ingênuo e puro Jeca Tatu teria desconfiado da perfeita sintonia. Quanta
harmonia nos argumentos, quanta coincidência na seleção de acórdãos
jurisprudenciais e (auto)citações... É que quando as coincidências são grandes
o inocente santo desconfia. Como, mesmo, falava aquele reacionário mas genial
dramaturgo da ditadura passada, o Nelson Rodrigues? Ah, sim: “Toda unanimidade
é burra.” Para atualizarmos, teremos que trocar “burra” por “farsa”. Aliás, desde
a véspera do golpe de maio de 2016, tudo nas cortes intermediárias e superiores
se caracteriza pelo monolitismo, pela unanimidade, pelas curiosíssimas
coincidências, salvo raras e honrosas exceções que a história saberá resgatar
na posteridade. Até porque, caro leitor, alguém se lembra do nome do justiceiro
togado que mandou executar Tiradentes? E o do Frei Caneca? Os condenados ganharam
seu, digamos, Habeas Corpos, ainda que tardio, já os juizecos, ah, a história
os expeliu, feito coisa que fede, para o lixo, o esgoto, da história -- e, não
custa avisar, sem direito a Habeas Corpus nem suplício...
Assim
como na Vida, na História é imprescindível ter lado, como já dizia o milenar
Tucídides. Assim como os saudosistas da ditadura e os medíocres golpistas, os
justiceiros togados já escolheram o lado da história em que pretendem trilhar. E,
ao contrário do “desfazer” do computador, na Vida não há lugar para correções
de erros, pois o tempo não volta e os equívocos cometidos cobram vidas e gerações
perdidas para nunca mais voltar. Togado ou não, medíocre ou não, saudosista ou
não, é fundamental deixar fluir o sentimento de cidadania e, com humildade,
deixar que a cidadania, do alto de sua autoridade democrática, manifeste sua
vontade soberana, com altivez e parcimônia.
Ahmad Schabib Hany
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