OS 92 ANOS DA PEREGRINA DE DOCE
OLHAR
WADIA AL HANY DE SCHABIB (11/03/1926 - 15/06/2009)
Caso
estivesse conosco, o presente que a Vida nos deu como Peregrina de doce olhar
-- que nós chamávamos de Mãe -- estaria, neste domingo, 11 de março, fazendo 92
anos. Eternizada há menos de nove anos, sua presença não é apenas saudade, mas
fonte de sensatez e candura a nortear nossos caminhos.
Nascida
Wadia Al Hany Ascimani, a formosa donzela que encantaria duas décadas depois o
meu saudoso Pai, Mahoma Hossen Schabib, era a segunda de onze filhos que a
jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany procriou com seu companheiro, o
dentista Youssef Al Hany, em San Joaquín de las Aguas Dulces, departamento do
Beni, Bolívia. Nossa Avó Guadalupe, de Pai libanês maronita e Mãe boliviana,
casara-se aos 16 anos, como toda donzela de seu tempo. Nosso Avô Youssef, aliás
José, libanês druso que estudara na Alemanha até ser atraído pelos encantos e
mistérios amazônicos, ainda no pós-guerra de 1917, trocou o Oriente Médio pelo
Oriente boliviano, tendo-se dedicado ao povo como se tivesse nascido naquelas
terras de promissão e carência.
Desde
criança nossa Mãe recebera a incumbência de auxiliar nossa Avó a cuidar dos
irmãozinhos, ainda que fossem reduzidos os riscos da Amazônia boliviana. Sendo
a mais velha das meninas, cabia a ela o papel de “segunda mãe”, como era
apresentada aos amigos da Família. Na década de 1920, período entre-guerras, o Beni,
como toda a Amazônia, se transformara em centro provedor de castanha, seringa,
carne e minerais preciosos para a Bolívia e o mundo. Por conta disso, levas de
imigrantes europeus e asiáticos procuravam o mítico Eldorado (ou El Dorado, em
espanhol), mas a maioria encontrava a morte causada pela malária, pelas feras
da floresta ou pelos rios indômitos -- muitos aventuravam, mas poucos eram os
vitoriosos e podiam contar a sua história para os descendentes.
Não
demorou muito para que o imigrante libanês Youssef se transformasse no lendário
“Doctor José Al Hany”, dentista que por falta de médicos acabara cuidando da
saúde e salvando vidas nos vilarejos situados à beira dos temidos rios
amazônicos. Quando ele faleceu, não faltou um prefeito que o homenageasse com o
nome de uma rua em Trinidad, capital do Beni, mas que, durante a ditadura sanguinária
de Hugo Banzer Suárez, algum interventor rancoroso retirou seu nome para pôr o
de um ancestral seu. Se isso fizera falta aos seus descendentes? Absolutamente,
até porque a quase totalidade dos Hany se espalhara pela Bolívia e toda a
América Latina, fazendo jus à sua origem peregrina.
Mas para a
Família Hany retirar homenagem póstuma beirava anedota diante das histórias
canhestras contadas pelo Tío Simón Hany, Irmão mais velho e que chegara antes
de nosso Avô José à Amazônia, pelo Brasil. No início do século XX, então
recém-chegado à América, o Tío Simón foi trabalhar na extração de castanha e
seringa e produção de carne na gleba de um grande fazendeiro português,
descendente dos senhores de escravo da época da colonização. Cansado dos abusos
e represálias do arrogante patrão, o então jovem imigrante decidira pedir as
contas e mudar-se para o outro lado da fronteira, a Bolívia. Aconselhado por um
amigo africano, havia mais tempo na fazenda, a não fazer isso para não perder a
vida -- antes fugisse sem deixar vestígios, mesmo deixando seus haveres --, mas
ele relutara por entender que eram seus direitos e que ninguém o enganaria.
Resultado: depois de pegar todo o salário devido, o Tío Simón foi alvejado por
jagunços do patrão e, enquanto parecia agonizar, era roubado todo o seu
dinheiro. Ainda com vida, apesar de todo ferido pelas balas que o atingiram,
foi resgatado pelo amigo africano e levado para um vilarejo pouco distante
dali, para ser salvo por nativos. Por ironia da vida, dias depois de o Tío
Simón ter sido alvejado, o patrão arrogante e ladrão foi morto por um raio que
derrubou uma árvore frondosa sobre ele.
Naquela
época, as donzelas eram instruídas em casa. Quando jovem, Wadia (Yoya, em casa)
e sua Irmã Magiba queriam seguir os estudos, mas no interior do Beni isso era
impossível. Por isso, tão logo se emancipou com o casamento -- três anos depois
ela, meu Pai e meus dois Irmãos mais velhos foram morar na cidade universitária
da Bolívia, Cochabamba, pois para eles o estudo era instrumento de emancipação
de todo e qualquer cidadão --, fez um curso de técnica de enfermagem, o que lhe
foi de muita valia até para cuidar dos nove filhos e dos filhos de muitas
parentes e amigas.
Enquanto
meu Pai fazia uma incursão pelas atividades jornalísticas e intelectuais, numa
fase em que a Família tinha alcançado estabilidade financeira, sendo Dona Yoya
a administradora dos negócios, uma crise sem precedentes se abateu sobre a
Bolívia entre os anos 1953 e 1962, o que os levou a decidir emigrar com todos
os filhos para o Líbano. Até porque meu Pai, minha Mãe e os filhos, por tabela,
tinham automaticamente cidadania libanesa. Esse período, de quatro anos do
Líbano, mostrou uma Wadia ainda mais extraordinária e companheira, o que
permitiu que meu Pai retornasse às atividades jornalísticas, vinculando-se à
imprensa egípcia, escrevendo em árabe e espanhol, pois os mesmos meios que
antes publicavam seus artigos na Bolívia, Chile e Brasil tinham interesse de conhecer
como as transformações decorrentes do nasserismo estavam se processando por
todo o chamado Mundo Árabe.
A
iminência da guerra civil no Líbano fez os meus Pais retornarem para a América
do Sul, mas desta vez para o Brasil -- precisamente Corumbá, na divisa dos dois
países, o que permitia que os filhos mais velhos pudessem cursar os últimos
anos do ensino médio e seguir para a Universidade na Bolívia sem perda de tempo
--, o que implicou numa fase de adaptação, sobretudo por causa do calor e das características
de cidade de interior, ainda que com um cosmopolitismo ímpar. Com a mesma dignidade
com que conduzira os negócios da Família na Bolívia e no Líbano, Dona Yoya se
armou de valor e arregaçou as mangas para estar à frente de, inicialmente, uma pequena
sorveteria e, depois, uma modesta pousada (na época soía ser chamada de “hospedaria”),
com a qual custeou os estudos de todos os filhos, além de ter contribuído,
ainda que modesta e anonimamente, para o desenvolvimento do turismo ecológico
desta porção rica e singular do planeta por exatos 30 anos ininterruptos, além
de ter inserido na agenda local alguns temas por meio de artigos publicados no
emblemático decano da imprensa corumbaense, o combativo Diário de Corumbá.
Depois do
encerramento das atividades comerciais, Dona Yoya aproveitou de desfrutar
melhor da companhia do Seu Schabib, e fizeram memoráveis viagens para rever
familiares no Brasil, na Bolívia, no Líbano e no México. Eis que o destino quis
que o Companheiro de toda a Vida se eternizasse antes de que eles pudessem ter
comemorado suas bodas de ouro, período de recolhimento e viagens curtas, na
tentativa de esquecer a sofrida solidão. Mas não se deu por vencida, e com a
mesma garra com que enfrentou adversidades em diferentes fases da Vida, viveu por
mais treze anos de rica convivência com filhas, filhos, netas e netos, irmãs e
irmãos.
Silenciou-se
numa chuvosa manhã de 15 de junho de 2009, num leito de clínica em Campo
Grande, depois de ter resistido estoicamente a um câncer voraz, oportunidade
que nos permitiu conhecer melhor a Peregrina de doce olhar que a Vida nos
presenteou como Mãe.
Ahmad Schabib Hany
Nenhum comentário:
Postar um comentário