‘Como se puede, no como se quiere…’
“– Como vai, Don Ciriaco?
– Se va como se puede, no como
se quiere...”
O diálogo, ocorrido no interior da
antiga cadeia de Corumbá, entre o então jovem advogado Lício Benzi Paiva Garcia
e seu cliente, um trabalhador rural sexagenário, acusado de ter assassinado
outro frequentador de uma “casa de tolerância” na década de 1960, em razão da
disputa de uma prostituta. De nacionalidade paraguaia, Don Ciriaco (sem acento e paroxítono) jurara a seu advogado dativo
não ter tido a intenção de matar a vítima, que sequer conhecia, pois ela atravessara
o salão justo na hora em que ele mirara seu rival, outro trabalhador rural que
depois de meses invernava na farra ao receber seus salários acumulados. Condenado
a alguns anos, recebia periodicamente a visita do advogado para saber de suas
condições. Esse diálogo, repetido em todas as visitas, era narrado pelo Doutor
Lício como bom contador de causos.
Durante décadas Corumbá e Ladário
contaram com esse saudoso advogado, erudito, de formação clássica. Trabalhista
histórico, Doutor Lício vivia a se revezar, durante os anos de chumbo, na presidência
da Comissão de Direitos Humanos com outro advogado, o igualmente saudoso Doutor
Walter Mendes Garcia, amigo seu, quando este assumia a presidência da subseção
local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Até onde nos foi possível saber,
o sobrenome Garcia é mera coincidência entre os dois colegas, que sempre se
respeitaram em suas lides, a despeito de suas posições políticas nem sempre
coincidentes, como bons democratas e detentores de uma sólida formação
jurídica, em que o Estado de Direito é uma razão de ser.
Minhas relações com o Doutor
Lício se deram por meio do querido e saudoso Amigo Márcio Nunes Pereira, então
diretor do Diário de Corumbá, jornal
em que o advogado mantivera ao longo de décadas uma coluna. Mas nossas relações
se estreitaram durante a cobertura da famigerada “guerra do Golfo” – como sói
ser chamada a invasão americana ao Iraque em 1990 –, quando a Rádio Clube de
Corumbá contava com os relevantes serviços do saudoso radialista Arnaldo Gomes
da Costa e havia pouco tempo chegara o renomado advogado, radialista e
Jornalista José Carlos Cataldi, trazido do Rio de Janeiro pelo Amigo Jornalista
Armandinho Anache. Num tempo em que não havia internet e a imagem por satélite
ainda não era tão acessível, a equipe de jornalistas da Clube, desde o primeiro
dia dos intensos combates, mantinha uma mesa de debates aberta às mais
diferentes posições, assegurando um espaço generoso aos membros da coletividade
árabe residente em Corumbá.
Diferentemente do mordaz crítico
que costumávamos ouvir no rádio, o Doutor Lício fora dos microfones era
extremamente irreverente e afável. Um gentleman
cuja cordialidade destoava do polêmico comentarista em diferentes programas da
emissora, detentora dos maiores índices de audiência. Frequentador assíduo do Multicoffee, café de propriedade de duas
simpáticas irmãs de sobrenome Robaton, oriundas do interior de São Paulo,
rodeado pelos membros da mesa do programa “Debates Populares”, entre os quais o
Amigo e Professor Valmir Batista Corrêa, e de Amigos como Márcio Pereira, o
advogado e contador de causos costumava responder ao estilo de Don Ciriaco aos cumprimentos dos amigos
que queriam saber como estava.
Além de veterano militante dos
Direitos Humanos ao lado do Doutor Walter, o Doutor Lício foi um pioneiro
empreendedor do transporte coletivo na região. Ele foi sócio-proprietário da
pioneira Empresa Ladarense de Transporte Coletivo Ltda. e da Empresa Centenário
de Transporte Coletivo Ltda. (por conta do Centenário da Retomada de Corumbá,
em 1967), mais tarde fundidas numa só sob o nome de Empresa Canarinho de
Transporte Coletivo Ltda. (em 1971), que durante décadas serviram aos usuários
de Corumbá e Ladário, com pontualidade e segurança, inclusive na linha Corumbá
– Puerto Suárez, com um único ônibus, que saía pontualmente às 7 horas da manhã
e retornava de lá às 9 horas da manhã, voltando a sair às 15 horas e retornando
de lá às 17 horas (era um serviço com preço econômico, pois era um veículo com
assentos bem estofados, reclináveis, com sistema de ar-condicionado de bordo e
bagageiro). Por causa da crise dos anos 1990, os sócios pioneiros se descapitalizaram
e venderam suas ações a empresários de fora, que mantiveram esse nome
consagrado na região, mas perdendo totalmente as características do
empreendimento inicial, como pontualidade e segurança.
Amigo do advogado Carmelino de
Arruda Rezende, parecia um jovem cabo eleitoral em sua derradeira campanha
eleitoral, em 1998, quando, na coligação do então candidato a governador Zeca
do PT, o ex-presidente da seção sul-mato-grossense da OAB foi candidato ao
Senado. Trabalhista histórico, Doutor Lício percorrera junto do Doutor Walter e
do também saudoso advogado e ex-deputado trabalhista Francisco Pecy de Barros
Por Deus por todos os bairros e assentamentos da região. Como amantes do
Direito, testemunhas do regime de arbítrio instalado em nome do combate à
corrupção em 1964, foram extraordinários no convencimento de muitos eleitores
das mais diferentes classes sociais e atividades econômicas nos confins do
Brasil, um País cujo povo renova a esperança porque é generoso, trabalhador e
honesto – diferentemente de uma elite que, de tempo em tempo, mostra as garras
quando sente perder o controle do poder, como que fosse uma crise de abstinência
das mordomias de que se serve desde os mais remotos tempos.
De fato, se va como se puede, no
como se quiere...
Ahmad Schabib Hany
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