segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

"SE VA COMO SE PUEDE, NO COMO SE QUIERE..."



Como se puede, no como se quiere…’

“– Como vai, Don Ciriaco?
Se va como se puede, no como se quiere...”

O diálogo, ocorrido no interior da antiga cadeia de Corumbá, entre o então jovem advogado Lício Benzi Paiva Garcia e seu cliente, um trabalhador rural sexagenário, acusado de ter assassinado outro frequentador de uma “casa de tolerância” na década de 1960, em razão da disputa de uma prostituta. De nacionalidade paraguaia, Don Ciriaco (sem acento e paroxítono) jurara a seu advogado dativo não ter tido a intenção de matar a vítima, que sequer conhecia, pois ela atravessara o salão justo na hora em que ele mirara seu rival, outro trabalhador rural que depois de meses invernava na farra ao receber seus salários acumulados. Condenado a alguns anos, recebia periodicamente a visita do advogado para saber de suas condições. Esse diálogo, repetido em todas as visitas, era narrado pelo Doutor Lício como bom contador de causos.

Durante décadas Corumbá e Ladário contaram com esse saudoso advogado, erudito, de formação clássica. Trabalhista histórico, Doutor Lício vivia a se revezar, durante os anos de chumbo, na presidência da Comissão de Direitos Humanos com outro advogado, o igualmente saudoso Doutor Walter Mendes Garcia, amigo seu, quando este assumia a presidência da subseção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Até onde nos foi possível saber, o sobrenome Garcia é mera coincidência entre os dois colegas, que sempre se respeitaram em suas lides, a despeito de suas posições políticas nem sempre coincidentes, como bons democratas e detentores de uma sólida formação jurídica, em que o Estado de Direito é uma razão de ser.

Minhas relações com o Doutor Lício se deram por meio do querido e saudoso Amigo Márcio Nunes Pereira, então diretor do Diário de Corumbá, jornal em que o advogado mantivera ao longo de décadas uma coluna. Mas nossas relações se estreitaram durante a cobertura da famigerada “guerra do Golfo” – como sói ser chamada a invasão americana ao Iraque em 1990 –, quando a Rádio Clube de Corumbá contava com os relevantes serviços do saudoso radialista Arnaldo Gomes da Costa e havia pouco tempo chegara o renomado advogado, radialista e Jornalista José Carlos Cataldi, trazido do Rio de Janeiro pelo Amigo Jornalista Armandinho Anache. Num tempo em que não havia internet e a imagem por satélite ainda não era tão acessível, a equipe de jornalistas da Clube, desde o primeiro dia dos intensos combates, mantinha uma mesa de debates aberta às mais diferentes posições, assegurando um espaço generoso aos membros da coletividade árabe residente em Corumbá.

Diferentemente do mordaz crítico que costumávamos ouvir no rádio, o Doutor Lício fora dos microfones era extremamente irreverente e afável. Um gentleman cuja cordialidade destoava do polêmico comentarista em diferentes programas da emissora, detentora dos maiores índices de audiência. Frequentador assíduo do Multicoffee, café de propriedade de duas simpáticas irmãs de sobrenome Robaton, oriundas do interior de São Paulo, rodeado pelos membros da mesa do programa “Debates Populares”, entre os quais o Amigo e Professor Valmir Batista Corrêa, e de Amigos como Márcio Pereira, o advogado e contador de causos costumava responder ao estilo de Don Ciriaco aos cumprimentos dos amigos que queriam saber como estava.

Além de veterano militante dos Direitos Humanos ao lado do Doutor Walter, o Doutor Lício foi um pioneiro empreendedor do transporte coletivo na região. Ele foi sócio-proprietário da pioneira Empresa Ladarense de Transporte Coletivo Ltda. e da Empresa Centenário de Transporte Coletivo Ltda. (por conta do Centenário da Retomada de Corumbá, em 1967), mais tarde fundidas numa só sob o nome de Empresa Canarinho de Transporte Coletivo Ltda. (em 1971), que durante décadas serviram aos usuários de Corumbá e Ladário, com pontualidade e segurança, inclusive na linha Corumbá – Puerto Suárez, com um único ônibus, que saía pontualmente às 7 horas da manhã e retornava de lá às 9 horas da manhã, voltando a sair às 15 horas e retornando de lá às 17 horas (era um serviço com preço econômico, pois era um veículo com assentos bem estofados, reclináveis, com sistema de ar-condicionado de bordo e bagageiro). Por causa da crise dos anos 1990, os sócios pioneiros se descapitalizaram e venderam suas ações a empresários de fora, que mantiveram esse nome consagrado na região, mas perdendo totalmente as características do empreendimento inicial, como pontualidade e segurança.

Amigo do advogado Carmelino de Arruda Rezende, parecia um jovem cabo eleitoral em sua derradeira campanha eleitoral, em 1998, quando, na coligação do então candidato a governador Zeca do PT, o ex-presidente da seção sul-mato-grossense da OAB foi candidato ao Senado. Trabalhista histórico, Doutor Lício percorrera junto do Doutor Walter e do também saudoso advogado e ex-deputado trabalhista Francisco Pecy de Barros Por Deus por todos os bairros e assentamentos da região. Como amantes do Direito, testemunhas do regime de arbítrio instalado em nome do combate à corrupção em 1964, foram extraordinários no convencimento de muitos eleitores das mais diferentes classes sociais e atividades econômicas nos confins do Brasil, um País cujo povo renova a esperança porque é generoso, trabalhador e honesto – diferentemente de uma elite que, de tempo em tempo, mostra as garras quando sente perder o controle do poder, como que fosse uma crise de abstinência das mordomias de que se serve desde os mais remotos tempos.

De fato, se va como se puede, no como se quiere...

Ahmad Schabib Hany

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