Atos
ensaiados, discursos articulados...
Nem nos tempos da ditadura havia
tanta, digamos, sintonia nos discursos, atos e atitudes entre os detentores dos
mais altos cargos dos três Poderes da República.
Com todo o respeito que a
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, merece – até
por conta do cargo que ocupa –, suas mais recentes aparições na imprensa não
foram compatíveis com a liturgia de uma representante da mais alta corte da
Justiça do país, em que discrição, comedimento e senso de oportunidade são
requisitos indispensáveis.
É verdade que, pouco mais de um
ano atrás, quando de sua eleição para presidente da mais alta instância do
Judiciário, parece ter sido traída pela inconveniência e enveredado em uma
discussão árida e desconexa de suas prerrogativas institucionais. Ela dissera
que “foi estudante”, por isso fazia questão de defender a língua portuguesa e
desejava ser chamada de “presidente”, e não “presidenta”, como soía ser chamada
a presidenta Dilma Rousseff, que acabava de ser deposta. O Amigo Jornalista
Luiz Antônio escrevera, a propósito, que sua expectativa como cidadão era de
que a nova presidente do STF priorizasse a defesa do Estado de Direito mais que
a defesa do vernáculo, ao lembrar que lexicólogos renomados entendem que as
duas formas são corretas.
Curiosamente, antes de findar o
recesso do Judiciário, num jantar em sua homenagem oferecido, dia destes, por
um grupo de comunicação, resvalou no mais grosseiro ato falho ao falar sobre a
prisão do presidente Lula para uma plateia de executivos de empresas
transnacionais, portanto, estrangeiras. Tal gesto, em francas palavras, pode
ser entendido como um sinal verde da presidente do STF para as privatizações, a
toque-de-caixa, de um governo que desde sua posse inimaginável tem cumprido uma
agenda no mínimo questionável, jamais assumida por qualquer candidato à
Presidência da República (própria, aliás, de governantes ilegítimos, desvinculados
dos interesses maiores da população, de “rabo preso” com o mercado, esse “deus”
idolatrado por empresários, mas também por políticos corruptos, igualmente
investigados pela Operação Lava-Jato, da qual, em última instância, a mais alta
corte é chamada a se manifestar).
O pior não é tão-somente o fato.
O que fica subjacente – da maior gravidade! – é a mensagem que se depreende
desse aparente deslize: “senhores investidores, podem vir para o Brasil, pois o
(sic) mercado pode ficar tranquilo,
que Lula não poderá reverter o que está sendo feito, que ele não será eleito
porque não poderá ser candidato.” Vindo de algum político ou de algum
“consultor” do mercado, até vá lá. Agora, a presidente da corte responsável
pela decisão final do julgamento do Presidente Lula, líder das pesquisas de
intenção de voto, um dos brasileiros mais respeitados no concerto das nações e
dos mais influentes agentes públicos vivos da história recente da democracia
brasileira, ser tratado (melhor, destratado) como uma pedra no sapato da vida
nacional? Cabe aqui outra pergunta, pedra no sapato de quem?
Aos olhos nus de reles mortais
como este cidadão que usa de seu inalienável direito de manifestar sua opinião
(pois, até prova em contrário, estamos no gozo da plena vigência do Estado
Democrático de Direito, pelo qual nossa geração lutou estoicamente, tendo à
frente brasileiros da estatura e dignidade de Ulysses, Teotônio, Tancredo,
Arraes, Montoro, Brizola e Alencar Furtado), a presidente do STF, no exercício
solene de seu cargo, tem cometido gafes que, para usar uma palavra de seu
vocabulário, “apequenam” a presidência da mais alta corte do país. Pior: no
discurso de abertura dos trabalhos do Judiciário de 2018, ao lado dos
presidentes das duas casas do Parlamento e do presidente da República – todos
sob investigação pela Operação Lava-Jato –, “puxou” a orelha da defesa e da
militância do partido do Presidente Lula, o mesmo que a nomeou para esse cargo
vitalício por recomendação do ex-ministro Sepúlveda Pertence, sem ter-lhe feito
qualquer pré-condição (diferentemente de FHC, que nomeou Gilmar Mendes, antes
assessor seu, e Michel Temer, que nomeou Alexandre Morais, ex-ministro seu,
jamais por motivações republicanas).
Ninguém quer nem espera atitudes
servis de um juiz togado. Mas chega a ser uma afronta à inteligência de
qualquer cidadão em pleno gozo de suas faculdades mentais ver a ministra
cometer arroubos de pabulagem, ao lado de personagens desacreditados como
Temer, Eunício de Oliveira e Rodrigo Maia, para intimidar humildes cidadãos
que, depois do festival de arbitrariedades, reiteradas vezes oferecidas por alguns
juízes federais de Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Brasília, contra um
ex-dignitário enxovalhado por setores nada patrióticos da mídia, do “mercado” e
da política brasileira, intempestiva e reiteradamente são transformados em fora-da-lei
logo por aquela sob a qual recaem as maiores responsabilidades pelo equilíbrio
minimamente exigido ao detentor do mais alto cargo da corte suprema. Miremo-nos
no exemplo do ministro Ricardo Lewandowski, seu antecessor na presidência do
STF, em cujo mandato foi conduzido um processo candente e estressante como foi
o “impeachment” da Presidenta Dilma, tendo sabiamente mantido incólume o STF ao
agir com a necessária discrição e distanciamento ao longo das disputas
políticas ocorridas.
Temos assistido com perplexidade
a ousada desenvoltura dos meliantes que, por meio do golpe parlamentar
travestido de “impeachment”, tomaram de assalto os destinos da nação: uso
acintoso dos recursos públicos para assegurar uma maioria parlamentar
questionável; perda de direitos sociais, laborais e previdenciários;
privatização de empresas estratégicas; corte de verbas das áreas sociais e de
infraestrutura, com o fim de programas habitacionais, assistenciais,
educativos, científicos e tecnológicos; entrega do patrimônio nacional a grupos
estrangeiros, como o Pré-sal, água mineral do Aquífero Guarani e terras e florestas
nativas da Amazônia; flagrante atentado à soberania nacional, com a entrega de
programas estratégicos de defesa aos Estados Unidos e Israel, e a violação da soberania
popular, com a redução das prerrogativas constitucionais previstas no título da
Ordem Social da Carta de 1988, na efetivação da chamada democracia participativa.
Por isso, é oportuno e prudente
que os membros do STF, sobretudo a presidente, não se submetam ao assédio dos
atuais ocupantes dos mais altos cargos do Executivo e Legislativo, bem como da
velha mídia e do empresariado golpista, que depois de se terem locupletado tramaram
o golpe, não por razões éticas, mas por interesses menores, usando como sempre
velhas consignas, como a defesa da livre-iniciativa, a liberdade de opinião e
os surrados “valores democráticos”, sublimados sempre que não atrapalhem seus
nefastos lucros e negócios antinacionais e antipopulares.
A defesa do Estado de Direito,
enfim, não requer acenos para investidores estrangeiros ou, pior, para o
mercado. Daí por que os membros da mais alta corte devem manter o devido
distanciamento da mídia e dos salamaleques empresariais, habituados a toda
sorte de manipulação da opinião pública, vítima da desinformação
habilidosamente incutida pelos velhos veículos de “comunicação”. Como a
esperança é a força motriz da cidadania, resta-nos esperar um tênue filete de luz
entre os membros da excelsa corte para que as próximas gerações não nos cobrem a
coragem que nos faltou de fazer valer nossos direitos antes que bandidos de
colarinho branco açambarcassem nosso porvir.
Ahmad
Schabib Hany
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