A gaivota e o jabuti
Fábula que não é
de Esopo, mas fruto destes tempos adversos e desafiadores: até espécies
diferentes tentam alguma forma de se entender, pois aprenderam que só na
convivência saudável é possível sobreviver aos desvarios dos ‘donos do mundo’.
Tajubi, um jabuti em fim de jornada,
é quem narra esta fábula, que bem poderia ter sido contada pelo genial Esopo, o
escravo grego que, milênios atrás, dedicou a vida a descrever o comportamento
humano refletido em diferentes espécies da natureza.
Era uma vez uma gaivota jovem adulta
a desafiar os limites de seu voo. Mãe e incansável companheira de suas irmãs de
espécie -- e das outras espécies, pois sua generosidade transcendia os limites
de sua condição animal: era quase um ser angelical a rasgar o horizonte
cinzento destes nada acolhedores tempos do primeiro século do terceiro milênio.
Disse quase angelical porque ela
fazia questão de ser gaivota e, assim, ousar todos os desafios condizentes com
os indivíduos de sua espécie. Tirava de letra as adversidades proporcionadas
pelas mudanças climáticas, pois, como vivia próxima ao litoral, em um par de horas
já estava em praia atlântica.
Da terra das araucárias, a gaivota
mO. -- não se trata de erro de grafia, é assim que ela foi batizada, e que bom
que não se ofende quando algum desavisado a assedia com aquelas baboseiras do
tipo ‘Você sabia que as aves são as mais fracas do reino animal?’, ‘qual
espécie é mais forte para Você?’, ‘se tivesse que escolher um líder, de qual espécie
teria que ser?’ -- conhecia muito, muito mais, que as espécies mais longevas.
Também, pudera: ainda adolescente
ela seguira os passos de Dona Rocuja, uma caburé filósofa e jurisconsulta da
maior dignidade, que lhe confiou algo como a Pedra de Roseta, com o qual
decodificava, descortinava, os limites de seu saber. E que saber!
Tajubi, consciente de que se
iniciara a contagem regressiva de seu tempo pelas bandas do Pantanal, numa
dessas operações de salvamento das espécies nativas do maior bioma de terras
alagáveis, acabou por se recuperar das sequelas da trágica onda de incêndios no
território de Burácom, terra que outrora fora de aroeiras -- daí, segundo a
etimologia, a denominação de ‘monte de aroeiras’ -- e que hoje virou do ‘já
teve’, ‘já foi’, ‘já era’...
Foi como o velho ‘dinossauro’
pantaneiro travestido de jabuti foi bater nas instigantes, mas frias, terras
das araucárias. Adorou os pinhões, pois, friorento e faminto, conseguiu se
alimentar como quando se valia dos deliciosos jatobás e bocaiuvas do
Centro-Oeste.
Dizem que o jabuti se ‘norteia’, se
‘orienta’ rumando para o Norte, como se o seu destino fosse a Amazônia. Só que
este, atravessado de nascença, sempre mirou para o Sul. Nunca soube por quê.
Bem verdade que Tajubi não migrou:
foi resgatado e tratado nas terras das araucárias. Se isso fazia sentido à sua
teimosia de sempre se procurar as rotas meridionais nunca soube se explicar,
nem mO., com todo o seu saber, pôde sanar essa dúvida atroz.
Mas o Sul lhe proporcionou uma
sobrevida com dignidade. A cura providencial e a acolhida por espécies como a
gaivota, generosas e compreensivas, afinal, diferente das tartarugas, o jabuti
é terrestre e seu hábito alimentar bastante restrito.
A temperatura, o solo, a vegetação,
a fauna... O jabuti se sentia no paraíso, muito embora sempre dissesse às
espécies nativas que o Pantanal era o paraíso na terra. Mas depois dos
incêndios impiedosos e arrasadores, Tajubi sabiamente deixou de proclamar o que
não dava mais para louvar, um bioma acometido pela ganância dos tais
‘investidores’, gente que vem de longe para transformar essa imensidão de
terras em uma tal de commodities.
Até então o jabuti não sabia qual
era a origem e os propósitos daqueles estranhos com seu jeito diferentão dos
seus velhos conhecidos, as populações tradicionais e originárias, com as quais
sempre houve forma de se conviver sem maiores prejuízos para animais e plantas.
E não é que a gaivota, com seu
comportamento ousado e libertário, lhe abrira não só os horizontes, mas o modo
de interagir com as demais espécies?
Agora já sabia que, assim como entre
os indivíduos da mesma espécie há os metidos a ‘alfa’, os humanos não diferem
muito, embora sejam sempre esquisitos, por pretenderem ser mais importantes que
as demais espécies.
Foi a solidariedade, a empatia, que
lhe deu uma segunda chance. Sentia-se na obrigação de retribuir. Mas como? Sentia-se
cansado e muito fragilizado pelos ferimentos e, pior, as sequelas, mas era hora
de praticar a gratidão que sempre o acompanhara nos recônditos do Pantanal,
onde cada um dá o que tem e todos têm de tudo, basta dar o berro.
Em conversa com mO., a sua sábia
protetora, lembrou-se de como a solidariedade era praticada entre os humildes
habitantes do bioma que lhes deu a Vida e seu saber. Um saber bastante prático,
é verdade, mas verdadeiro e útil.
Na natureza não há justificativa
para a ganância, a cobiça, muito praticada pelos humanos no interior do
Pantanal. E fora do bioma também. Ora, por que tanta guerra, matança a troco de
nada? E o mais grave é que a maioria dos humanos é contra, mas os ‘poderosos’
impõem a sua vontade.
Desde que virou ‘cosmopolita’,
Tajubi passou a enxergar de forma generosa, com empatia e relevância, sempre
seguindo, não os passos -- porque gaivota não anda, voa! --, mas o voo
magistral de sua nova amiga.
Milênios atrás, os ancestrais de
Tajubi contavam, havia uma população humana mais dócil e solidária, que foram
quase totalmente exterminados por outros seres muito parecidos, mas mais armados
e com o olhar cheio de cobiça e sanguinolência de amedrontar todos as demais
espécies que habitavam Abya Yala, o continente antes do genocídio dos originários.
Depois disso, Burácom, em tempos não
tão remotos, fora um emblemático porto comercial que, além de gaivotas,
tuiuiús, biguás, garças e flamencos, já tivera vapores de grande calado,
hidroaviões, as primeiras indústrias de bebidas de todo tipo, saladeiros e
charqueadas e, pasmem, gente dos mais diferentes continentes do Planeta. Nestes
sórdidos tempos, só labaredas e vigarices de várias formas, mas também gestos
solidários dos mais humildes.
E graças aos mais humildes é que um grande
estadista foi eleito pela terceira vez e nos próximos dias trará boas-novas ao
Pantanal. Além de se empenhar para o fim efetivo das orgias de ‘investidores’
no Pantanal, sempre de mãos dadas com os mais humildes, esse estadista deverá
receber reivindicações como a reativação do trem do Pantanal, criação da
Universidade Federal do Pantanal focada na integração dos países pantaneiros
como a Bolívia e o Paraguai, a saudação de agradecimento da comunidade
palestina pelo apoio e solidariedade efetiva ao Povo Palestino, entre outras
demandas não menos importantes.
É que, a despeito dos equivocados e
dos negacionistas, a parcela humilde da humanidade, felizmente em maior número
e conectada com sua própria história, da qual o estadista é oriundo, não se
deixa levar por cantos de abutres e teimam em salvar o Planeta dos loucos que
cobiçam tudo e não atinam para os riscos de todos serem extintos, inclusive o
objeto da cobiça, o poder. Mais que fábula, é uma descrição do limiar de um
tempo insólito em que a utopia precisa mitigar, fertilizar e abençoar para
transformar essa realidade trágica.
Ahmad Schabib Hany
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