quarta-feira, 31 de julho de 2024

GRUPO PRÓ-CRIAÇÃO DA UFPANTANAL ENTREGA DOCUMENTO AO PRESIDENTE LULA

Grupo Pró-Criação da UFPantanal entrega documento ao Presidente Lula


 

Em nome da comissão organizadora, a Professora Rosangela Villa da Silva entregou ao Presidente Lula, em Corumbá, carta em que, mais que sonho de outrora, é frisada a necessidade de hoje se criar a UFPantanal por conta dos incêndios cada vez mais avassaladores causados pelas mudanças climáticas, transição energética, combate à fome, colapso de um modelo de desenvolvimento predador e integração dos países da América Latina a partir das universidades federais de cidades fronteiriças conurbadas.

 

Na quarta-feira, dia 31 de julho, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vários ministros, entre eles a titular do Meio Ambiente e do Clima, Ministra Marina Silva, visitaram Corumbá para conhecer de perto o trabalho dos brigadistas que lutam para debelar focos de incêndio que nos últimos anos vêm devastando milhões de hectares do Bioma Pantanal e sancionar o Projeto de Lei 1.818/2022, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.

A propósito, está em formação, mediante reuniões e debates presenciais e online, o Grupo Pró-Criação da Universidade Federal do Pantanal (UFPantanal) com o mote de que outrora a criação da Universidade era um sonho acalentado havia décadas por diversos setores da população local, mas hoje é necessidade premente diante do quadro devastador dos incêndios causados pelas mudanças climáticas, a transição da matriz energética e o combate à fome e à miséria.

Uma comitiva de professores, pesquisadores, jornalistas e artistas plásticos, representada pela Professora Rosangela Villa da Silva, entregou o manifesto constitutivo ao Presidente Lula tão logo a comitiva presidencial chegou ao Parque Marina Gattass, situado perto da linha de fronteira Brasil-Bolívia, à margem do Rio Paraguai. A Professora Rosângela esteve acompanhada pelas também professoras Elisa Pinheiro de Freitas e Dirce Sizuko Soken, que também pesquisam em diferentes áreas da ciência na região.

Com a participação de docentes aposentados e de outras instituições do país, como os pesquisadores Helvio Rech, Gilliard da Silva Prado e Alberto Feiden, o propósito é fazer com que a futura universidade federal sediada nesta fronteira já nasça comprometida com aquilo que o ex-presidente Pepe Mujica propôs em tom de desafio, isto é, sobre os espaços comuns de educação, projeto que vem sendo construído pelo Professor Helvio Rech, da Universidade Federal do Pampa (Bagé, RS). Pelo projeto, universidades federais situadas em fronteiras do país terão a oportunidade de fazer parcerias com as suas congêneres do país vizinho para desenvolver projetos transformadores da realidade local, regional, nacional e continental.

ÍNTEGRA DO DOCUMENTO

Senhor Presidente,

Os signatários abaixo relacionados, integrantes do Grupo Pró-Criação da Universidade Federal do Pantanal, vêm a Vossa Excelência reiterar um antigo e importante pleito da população pantaneira e dos compatriotas da fronteira no coração da América do Sul: a criação da sonhada Universidade Federal do Pantanal.

Se a criação de uma universidade no Pantanal era um sonho acalentado há quase três décadas, hoje torna-se uma necessidade urgente. O modelo de desenvolvimento adotado na região nos últimos anos não tem demonstrado resultados satisfatórios, tanto do ponto de vista da melhoria da qualidade de vida das pessoas quanto do bem-estar da população. A cada ano, as lentes do mundo se voltam para um Pantanal em chamas. Apenas nos anos de 2023 e 2024, foram destinados R$ 237 milhões para ações de combate a incêndios no Bioma Pantanal em território brasileiro. No entanto, esses recursos não foram suficientes para impedir que milhares de hectares de vegetação nativa fossem destruídos, levando consigo uma parte significativa da fauna e agravando ainda mais as condições ambientais locais e regionais, com consequências ainda desconhecidas.

Os incêndios recorrentes resultam de um modelo de exploração dos recursos da Bacia do Alto Paraguai (BAP) que está em desacordo com suas características ambientais. Persistimos em um modelo de desenvolvimento que tem se revelado insustentável ao longo dos anos, colocando em xeque suas consequências sociais e ambientais. É urgente mudar a trajetória de desenvolvimento da região pantaneira, abandonando os conceitos tradicionais de exploração e exaustão dos recursos naturais e suas políticas públicas associadas, em favor de uma economia centrada no conhecimento. A base principal desse novo modelo deve ser a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação, alinhadas aos debates sobre mudanças climáticas, transição energética e combate à fome e à miséria. Nesse contexto, propomos a criação de uma nova universidade, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida das pessoas na região pantaneira. A universidade deverá promover a cooperação, o acolhimento e o cuidado com o meio ambiente, gerando conhecimento sobre as espécies e suas interações com o ecossistema, desenvolvendo pesquisas e formando profissionais éticos e comprometidos com o desenvolvimento sustentável da região.

Assim, a Universidade Federal do Pantanal deverá ser pensada a partir do ponto de vista do Bioma Pantanal, em estreita colaboração e intercâmbio com universidades e centros de pesquisas localizados outras regiões de ambientes úmidos em todo o planeta. Também é necessário um amplo diálogo com os países vizinhos, que compartilham o privilégio e a responsabilidade de abrigar uma das maiores e mais ricas extensões úmidas contínuas do planeta. Este bioma, um patrimônio de toda a humanidade, exige cuidado e preservação que não podem depender de ações voluntaristas, impensadas, baseadas em conhecimentos superficiais ou influenciadas por interesses econômicos e políticos de curto prazo, sem qualquer participação popular. Acreditamos que, para assegurar a proteção e o desenvolvimento sustentável do Pantanal, o investimento mais adequado está no conhecimento, na ciência e na tecnologia.

Precisamos pensar em novas abordagens para o desenvolvimento regional, apresentando novas perspectivas de emprego, renda e educação para as populações residentes nos municípios que constituem a conurbação fronteiriça de Corumbá e Ladário, no Brasil, e Puerto Quijarro e Puerto Suárez, na Bolívia. A região tem o potencial de se transformar numa espécie de Zona Franca de Educação, uma ideia defendida por Pepe Mujica, que propõe a criação de arranjos institucionais capazes de promover a integração e a cooperação entre os povos, centradas na educação, ciência e tecnologia.

Imaginamos um território livre, em que a circulação de pessoas ligadas à comunidade científica e educacional seja isenta de burocracia, e os recursos humanos e técnicos (como laboratórios e equipamentos) sejam compartilhados e utilizados de maneira otimizada. As consequências, em termos de produção do conhecimento e formação profissional, técnica e tecnológica, seriam automaticamente incorporadas pelos países que integram este Espaço Comum de Educação.

Nesses espaços, poderíamos implantar Institutos Federais de Educação Técnica e campus universitários multilaterais para oferecer formação binacional ou trinacional de qualidade aos jovens fronteiriços. Além disso, laboratórios poderiam ser desenvolvidos para realizar pesquisas voltadas ao desenvolvimento da região e ao estudo da biodiversidade dos biomas inseridos na área.

A Universidade Federal do Pantanal, localizada no coração da América do Sul, será fundamental para promover essa abordagem, garantindo que as futuras gerações possam desfrutar e preservar este ambiente único e vital.

Assim, solicitamos a constituição de um Grupo de Trabalho composto por representantes do Ministério da Educação, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e Ministério das Relações Exteriores, além de acadêmicos e especialistas, para a missão de, em diálogo com as partes interessadas, estudar e desenvolver um projeto para a criação de uma universidade vocacionada para o desenvolvimento sustentável e a preservação do Pantanal.

Subscrevem o documento: Hélvio Rech, professor; Elisa Pinheiro de Freitas, professora; Dirce Sizuko Soken, professora; Rosangela Villa da Silva, professora; Adilson Schieffer, artista plástico; Egon Krakhecke, engenheiro agrônomo; Marcelo Ubal Camacho, professor; Gerson Jara, jornalista; Waldson Luciano Corrêa Diniz, professor; Lígia Maria Baruki e Mello, professora; Wilson Ferreira de Mello, professor; Janan Bolivia Schabib Hany, professora; Masao Uetanabaro, professor; Moacir Lacerda, professor; Giliard da Silva Prado, professor; Ahmad Schabib Hany, professor; Marlene Therezinha Mourão, artista plástica; Igor Alexandre Schabib Péres, técnico em pesquisa; Alberto Feiden, pesquisador; Débora Fernandes Calheiros, pesquisadora; João dos Santos Villa da Silva, pesquisador.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A GAIVOTA E O JABUTI

A gaivota e o jabuti

Fábula que não é de Esopo, mas fruto destes tempos adversos e desafiadores: até espécies diferentes tentam alguma forma de se entender, pois aprenderam que só na convivência saudável é possível sobreviver aos desvarios dos ‘donos do mundo’.

Tajubi, um jabuti em fim de jornada, é quem narra esta fábula, que bem poderia ter sido contada pelo genial Esopo, o escravo grego que, milênios atrás, dedicou a vida a descrever o comportamento humano refletido em diferentes espécies da natureza.

Era uma vez uma gaivota jovem adulta a desafiar os limites de seu voo. Mãe e incansável companheira de suas irmãs de espécie -- e das outras espécies, pois sua generosidade transcendia os limites de sua condição animal: era quase um ser angelical a rasgar o horizonte cinzento destes nada acolhedores tempos do primeiro século do terceiro milênio.

Disse quase angelical porque ela fazia questão de ser gaivota e, assim, ousar todos os desafios condizentes com os indivíduos de sua espécie. Tirava de letra as adversidades proporcionadas pelas mudanças climáticas, pois, como vivia próxima ao litoral, em um par de horas já estava em praia atlântica.

Da terra das araucárias, a gaivota mO. -- não se trata de erro de grafia, é assim que ela foi batizada, e que bom que não se ofende quando algum desavisado a assedia com aquelas baboseiras do tipo ‘Você sabia que as aves são as mais fracas do reino animal?’, ‘qual espécie é mais forte para Você?’, ‘se tivesse que escolher um líder, de qual espécie teria que ser?’ -- conhecia muito, muito mais, que as espécies mais longevas.

Também, pudera: ainda adolescente ela seguira os passos de Dona Rocuja, uma caburé filósofa e jurisconsulta da maior dignidade, que lhe confiou algo como a Pedra de Roseta, com o qual decodificava, descortinava, os limites de seu saber. E que saber!

Tajubi, consciente de que se iniciara a contagem regressiva de seu tempo pelas bandas do Pantanal, numa dessas operações de salvamento das espécies nativas do maior bioma de terras alagáveis, acabou por se recuperar das sequelas da trágica onda de incêndios no território de Burácom, terra que outrora fora de aroeiras -- daí, segundo a etimologia, a denominação de ‘monte de aroeiras’ -- e que hoje virou do ‘já teve’, ‘já foi’, ‘já era’...

Foi como o velho ‘dinossauro’ pantaneiro travestido de jabuti foi bater nas instigantes, mas frias, terras das araucárias. Adorou os pinhões, pois, friorento e faminto, conseguiu se alimentar como quando se valia dos deliciosos jatobás e bocaiuvas do Centro-Oeste.

Dizem que o jabuti se ‘norteia’, se ‘orienta’ rumando para o Norte, como se o seu destino fosse a Amazônia. Só que este, atravessado de nascença, sempre mirou para o Sul. Nunca soube por quê.

Bem verdade que Tajubi não migrou: foi resgatado e tratado nas terras das araucárias. Se isso fazia sentido à sua teimosia de sempre se procurar as rotas meridionais nunca soube se explicar, nem mO., com todo o seu saber, pôde sanar essa dúvida atroz.

Mas o Sul lhe proporcionou uma sobrevida com dignidade. A cura providencial e a acolhida por espécies como a gaivota, generosas e compreensivas, afinal, diferente das tartarugas, o jabuti é terrestre e seu hábito alimentar bastante restrito.

A temperatura, o solo, a vegetação, a fauna... O jabuti se sentia no paraíso, muito embora sempre dissesse às espécies nativas que o Pantanal era o paraíso na terra. Mas depois dos incêndios impiedosos e arrasadores, Tajubi sabiamente deixou de proclamar o que não dava mais para louvar, um bioma acometido pela ganância dos tais ‘investidores’, gente que vem de longe para transformar essa imensidão de terras em uma tal de commodities.

Até então o jabuti não sabia qual era a origem e os propósitos daqueles estranhos com seu jeito diferentão dos seus velhos conhecidos, as populações tradicionais e originárias, com as quais sempre houve forma de se conviver sem maiores prejuízos para animais e plantas.

E não é que a gaivota, com seu comportamento ousado e libertário, lhe abrira não só os horizontes, mas o modo de interagir com as demais espécies?

Agora já sabia que, assim como entre os indivíduos da mesma espécie há os metidos a ‘alfa’, os humanos não diferem muito, embora sejam sempre esquisitos, por pretenderem ser mais importantes que as demais espécies.

Foi a solidariedade, a empatia, que lhe deu uma segunda chance. Sentia-se na obrigação de retribuir. Mas como? Sentia-se cansado e muito fragilizado pelos ferimentos e, pior, as sequelas, mas era hora de praticar a gratidão que sempre o acompanhara nos recônditos do Pantanal, onde cada um dá o que tem e todos têm de tudo, basta dar o berro.

Em conversa com mO., a sua sábia protetora, lembrou-se de como a solidariedade era praticada entre os humildes habitantes do bioma que lhes deu a Vida e seu saber. Um saber bastante prático, é verdade, mas verdadeiro e útil.

Na natureza não há justificativa para a ganância, a cobiça, muito praticada pelos humanos no interior do Pantanal. E fora do bioma também. Ora, por que tanta guerra, matança a troco de nada? E o mais grave é que a maioria dos humanos é contra, mas os ‘poderosos’ impõem a sua vontade.

Desde que virou ‘cosmopolita’, Tajubi passou a enxergar de forma generosa, com empatia e relevância, sempre seguindo, não os passos -- porque gaivota não anda, voa! --, mas o voo magistral de sua nova amiga.

Milênios atrás, os ancestrais de Tajubi contavam, havia uma população humana mais dócil e solidária, que foram quase totalmente exterminados por outros seres muito parecidos, mas mais armados e com o olhar cheio de cobiça e sanguinolência de amedrontar todos as demais espécies que habitavam Abya Yala, o continente antes do genocídio dos originários.

Depois disso, Burácom, em tempos não tão remotos, fora um emblemático porto comercial que, além de gaivotas, tuiuiús, biguás, garças e flamencos, já tivera vapores de grande calado, hidroaviões, as primeiras indústrias de bebidas de todo tipo, saladeiros e charqueadas e, pasmem, gente dos mais diferentes continentes do Planeta. Nestes sórdidos tempos, só labaredas e vigarices de várias formas, mas também gestos solidários dos mais humildes.

E graças aos mais humildes é que um grande estadista foi eleito pela terceira vez e nos próximos dias trará boas-novas ao Pantanal. Além de se empenhar para o fim efetivo das orgias de ‘investidores’ no Pantanal, sempre de mãos dadas com os mais humildes, esse estadista deverá receber reivindicações como a reativação do trem do Pantanal, criação da Universidade Federal do Pantanal focada na integração dos países pantaneiros como a Bolívia e o Paraguai, a saudação de agradecimento da comunidade palestina pelo apoio e solidariedade efetiva ao Povo Palestino, entre outras demandas não menos importantes.

É que, a despeito dos equivocados e dos negacionistas, a parcela humilde da humanidade, felizmente em maior número e conectada com sua própria história, da qual o estadista é oriundo, não se deixa levar por cantos de abutres e teimam em salvar o Planeta dos loucos que cobiçam tudo e não atinam para os riscos de todos serem extintos, inclusive o objeto da cobiça, o poder. Mais que fábula, é uma descrição do limiar de um tempo insólito em que a utopia precisa mitigar, fertilizar e abençoar para transformar essa realidade trágica.

Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Professora da UFSCar apresenta livros sobre a escola soviética ao Embaixador da Rússia no Brasil

Professora da UFSCar apresenta livros sobre a escola soviética ao Embaixador da Rússia no Brasil

 Obras escritas por Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Jr. analisam a educação no período soviético

No último dia 28 de junho, a professora Marisa Bittar, do Departamento de Educação (DEd) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi recepcionada pelo Embaixador da Rússia no Brasil, Alexey Kazimirovitch Labetskiy, na sede da Embaixada, em Brasília (DF). A visita foi motivada pelo interesse do Embaixador em conhecer os dois livros sobre a educação soviética escritos por Bittar em parceria com Amarílio Ferreira Jr., também do DEd, que faleceu no dia 3 de abril.

Na ocasião, Bittar apresentou o livro "A educação soviética", publicado em 2021 pela EdUFSCar, que trata da política educacional adotada nas 15 Repúblicas da União Soviética após a Revolução de 1917. Em seguida, apresentou o segundo livro, "A escola da Revolução Russa", publicado em 2023 (Pedro & João Editores), que mostra a escola soviética por dentro, isto é, o seu currículo; a condição dos professores; a vida dos alunos; as atividades extraescolares; a sua rotina e a aprendizagem. A professora conta que, ao ver as fotografias publicadas no livro, o embaixador exclamou: "Isso era obrigatório!", referindo-se a uma imagem em que as crianças cantam ao som do piano tocado pela professora. "O interesse da Embaixada da Rússia foi conhecer a história dos livros com o objetivo de divulgá-los", assinala Bittar.

Os dois livros resultaram de longa pesquisa realizada nos Arquivos Especiais do Instituto de Educação da University College London (UCL), na Inglaterra, onde os autores realizaram pós-doutorado em História da Educação (2011-2012). Na sequência, os pesquisadores prosseguiram como Professores Visitantes na Instituição, onde, em 2019, concluíram as pesquisas para os dois livros. As fontes consultadas foram exclusivamente em Inglês e Russo. Além disso, Ferreira Jr. e Bittar contaram com suas próprias vivências na União Soviética, pois, quando jovens, moraram e estudaram no Instituto de Ciências Sociais de Moscou, no período de 1981 a 1984.

"O primeiro livro -- ‘A educação soviética’ -- traz uma visão mais geral e horizontal da educação, sua relação com o Estado, as reformas pelas quais passou, a relação com o Partido Comunista, sua crise no começo da década de 1980 e o fim da União Soviética. O segundo livro é centrado na escola; trata-se de uma visão vertical, aprofundada, sobre como ela funcionou por dentro", diferencia Bittar. "Um detalhe importante: ambos contam com um belo álbum fotográfico."

As duas publicações exigiram muita dedicação dos autores, pois além de a pesquisa ter sido feita em inglês e russo, o assunto em si geralmente é visto de forma preconceituosa. A professora Marisa explica: "O tema da educação soviética era praticamente desconhecido no Brasil ao passo que, em língua inglesa, já contava com importantes estudos. O nosso livro foi o primeiro em Língua Portuguesa (considerando os países falantes do nosso idioma, portanto, não só o Brasil, mas também Portugal, Angola, Moçambique etc.)."

Bittar conta que, no encontro, o Embaixador se interessou em conhecer a pesquisa que originou os dois livros e relembrou feitos positivos alcançados pela Revolução de 1917 na política educacional como: a rápida alfabetização de adultos; a escola de cultura e de trabalho; e a valorização da ciência. A professora conta que, para o embaixador, "a Rússia está melhor hoje, mas uma das heranças mais significativas da Revolução Bolchevique foi o nível alcançado pela educação e pela ciência", fato corroborado pelas pesquisas realizadas por Amarílio Ferreira Jr. e Marisa Bittar.

Educação, Ciência e Trabalho

"A escola criada pela Revolução Russa foi baseada em princípios socialistas. Era obrigatória, da creche ao final do Ensino Médio. Rigorosa, patriótica e disciplinadora. Foi uma escola de trabalho e de cultura. Formou a classe trabalhadora para as profissões necessárias à etapa de desenvolvimento das 15 Repúblicas soviéticas. Foram profissões massivas, desde professores, enfermeiros e operários fabris até especialidades em línguas estrangeiras, técnicos, cientistas e artes em geral", destaca a professora da UFSCar. "O ingresso à universidade baseava-se em rigorosos exames. A política educacional era centralizada e igual para as 15 Repúblicas existentes na União Soviética (1917-1991)."

Entre os pontos fortes dessa escola, a professora destaca o currículo científico aliado à ginástica e à cultura. "Foi uma escola construída em pouco tempo como política estratégica de Estado e apoiada firmemente pela sociedade. Uma escola totalmente ligada ao setor produtivo. Mas devemos observar também a sua dimensão ideológica, pois era difusora dos valores da Revolução de 1917, como lealdade à 'Mãe Pátria', concepção de mundo materialista e patriotismo", explica ela. "Contraditoriamente, o fator ideológico acabou gerando postura crítica ao próprio socialismo praticado pelo Estado constituindo-se em uma das razões da crise e do fim da União Soviética", analisa a professora Marisa, acrescentando: "A escola era totalmente laica, mas a religião não foi extinta pela Revolução. O cristianismo ortodoxo, um dos elementos culturais marcantes do País continuou sendo praticado no âmbito da família e das igrejas; aliás, belíssimas, e todas preservadas."

Ela destaca como essa escola elevou o País ao patamar de potência mundial após a Revolução de 1917 tendo passado por duas guerras mundiais, guerra civil e Guerra Fria. Na Segunda Guerra Mundial, a União Soviética foi o país que mais perdeu vidas, 26 milhões de pessoas. Mesmo assim, a escola de educação geral e para o trabalho foi construída para todos, da creche ao ensino secundário, em curto espaço de tempo. "Foi o primeiro País a lançar um satélite artificial ao espaço (Sputnik, 1957) e isso foi resultado do avanço da ciência e da qualidade da escola. Yuri Gagárin foi o primeiro ser humano a viajar ao espaço (1961). Esse avanço foi resultado da ciência e da escola soviética", completa a professora, que conclui: "nós devemos conhecer a história da educação de outros povos não para copiá-la, mas para compreendermos como eles enfrentaram os seus desafios educacionais e construíram os seus sistemas nacionais de escolas públicas."

Texto: Ivan Lucas

Release (ufscar.br)

Anexo:

Professora apresenta seus dois livros ao Embaixador da Rússia (Foto: Acervo pessoal)

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quinta-feira, 18 de julho de 2024

EXEMPLOS E ADVERTÊNCIAS

Exemplos e advertências

A América Latina vem dando exemplos e advertências às elites políticas brasileiras: tanto a Bolívia como a Argentina tem enfrentado sem medo os arroubos fascistas, com o povo nas ruas.

Em menos de trinta dias, La Paz, na Bolívia, e Buenos Aires, na Argentina, têm dado, de modo eloquente, exemplos e advertências para que os partidos de esquerda não se inibam e ponham nas ruas as amplas camadas populares. O Brasil, que tem experiente estadista na Presidência da República, não pode se apequenar diante das bravatas dos fascistas, que se assanharam com a vitória de Pirro do desequilibrado e incompetente que assaltou o futuro do povo argentino.

Diferente do que a imprensa corporativa brasileira noticiou, a tentativa de golpe militar foi repelida pela população boliviana, já cansada de golpistas que, por incompetência política e esgotamento do projeto claudicante de matriz neoliberal (aliás, neocolonial), não mais conseguem eleger seus candidatos. É o que aconteceu no dia 26 de junho em La Paz, tanto que os golpistas brasileiros, ligados ao inominável, manifestaram sua simpatia e cínico apoio. Já em Buenos Aires, no último sábado, dia 13 de julho, as organizações populares que haviam programado o Festival Solidário na Praça de Maio, em Buenos Aires, se depararam com diversas companhias de policiais fardados e à paisana para impedir as atividades programadas em solidariedade aos três presos políticos do regime em fase de implantação do delirante seguidor de Nero que quer incendiar a Argentina.

Vitória de Pirro? Por quê? A história ensina, pois o que aparenta ser vitória para obtusos direitistas logo será transformado em derrota histórica, eis que o povo argentino, ousado e determinado, se conflagrará e nenhum gendarme armado conseguirá dissuadir multidão enfurecida alguma! Não esqueçamos que os argentinos depuseram sem qualquer piedade dois presidentes sucessivos no começo deste milênio. Primeiro Fernando De la Rúa com toda a sua trupe ministerial não resistiu à revolta. Em seguida, Eduardo Duhalde, também acuado pela insatisfação popular, que pressionou o Congresso Nacional e centenas, senão milhares de questões jogadas para baixo do tapete foram trazidas à baila.

Nesse mesmo período, a Bolívia se fazia presente com igual fulgor, tendo deposto dois marionetes de corte neoliberal: Gonzalo ‘Gony’ Sánchez de Lozada e o vice engomadinho com ares de intelectual, Carlos Diego Mesa Gisbert, que, na verdade, sequer concluiu seu curso universitário -- cinéfilo e, graças ao grande jornalista argentino-boliviano Lorenzo Carri, de acanhado comentarista de cinema o transformou em comentarista político na Rádio Cristal, onde Carri era o diretor de Jornalismo, e lançou dois nomes para a história do jornalismo da Bolívia, Mesa e Amalia ‘La Cholita’ Pando --, na época sócio majoritário da prestigiada rede de televisão PAT (Periodistas Auntónomos de Televisión) e ela sua principal repórter e depois cronista política.

Não muito diferente do que aconteceu em 2018 no Brasil, vermos um marionete tomado de vontades e trejeitos delirantes como é esse tresloucado inominável argentino que mexe seu rabinho quando está com a familícia do inominável, dizendo que no Brasil há presos políticos e que ele vai pedir seu asilo político na Argentina. Ele, Milei, e um tal de Branko Marinkovic [Ou seria Mariconvip? Estou em dúvida!], que se diz empresário mas não passa de um reles parasita do ‘mercado’ Los Pozos de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. O dinheiro do qual é gestor foi obtido pelo irmão dele, médico formado na Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, onde fez carreira política na esquerda, não por acaso foi ministro de Saúde de Jaime Paz Zamora, no único mandato que o MIR (Movimiento de la Izquierda Revolucionaria) obteve na história, em conchavo com o ditador sanguinário Hugo Banzer Suárez.

Milei sequer tem postura de dignitário, como a liturgia do cargo exige. Sua chanceler precisa o tempo todo entrar em cena para apagar incêndios diplomáticos que costuma causar todo santo dia. Mas não perde por esperar: tentou amedrontar as organizações populares argentinas que fizeram contra a sua vontade o Festival Solidário para mobilizar o país contra prisões políticas, isso sim: aqui, no comício da familícia em Crisciúma, diz ser contra, mas lá ele e seu ministério farsista -- de farsantes e fascistas pró-sionistas -- prenderam inúmeros dirigentes sindicais e ativistas LGBTQIA+, no afã de intimidar as mobilizações contra o arrocho salarial que impôs assim que assumiu, para agradar seus amos e senhores do ‘mercado’ e sua ‘mão invisível’ que desde o tempo do famigerado Carlos Saúl Menem vêm empobrecendo os trabalhadores argentinos.

Tentaram, mas não conseguiram, porque ninguém pode com uma classe trabalhadora bem determinada a defender seus direitos. A história do movimento operário argentino tem a característica da combatividade ativa e altiva: não se intimida e enfrenta os pretensos repressores, que são tão odientos quanto os fascistas que vivem a declarar amores à sua ditadura de triste e vergonhosa existência entre os anos 1964 e 1985, cujos torturadores e informantes continuam impunes e, por tal razão, assanham os seus órfãos e viúvos como o inominável e seus asseclas. É importante prestar atenção à estratégia dos movimentos populares argentinos, pois sua radicalidade não está focada nas paralisações, mas sim nas mobilizações multitudinárias, resultantes de intensa atividade na base, não nas redes sociais.

Ouso insistir: não pelas redes sociais, mas no corpo a corpo. Não com essa tática de paralisações a perder de vista. A paralisação que eles fazem é por um ou dois dias, mas com grande impacto de rua -- diferente daqui, bem apoiados pela população, que também sente o arrocho salarial causado pelas medidas neoliberais adotadas pelo marionete do ‘mercado’, como nestes anos de obscurantismo fascista o inominável fez com o povo brasileiro (e me desculpem certos setores do serviço público, mas contra o inominável não houve as mobilizações do tempo de Dilma Rousseff e agora, de novo, quando Lula tenta negociar pessoalmente). É o ‘fogo amigo’ de setores que ainda não se aperceberam que com isso contribuem gentil e generosamente para o fortalecimento da extrema direita.

Mais um importante detalhe, tanto na Bolívia como na Argentina: esses ‘pastores’ de meia pataca dessas redes ditas cristãs sionistas não exercem tamanha influência, como em toda a América Central e muitos países sul-americanos, sobretudo o Brasil, em que uns tais ‘bispos’ de passado nebuloso e fortunas de origem não revelada se fazem de porta-vozes de Deus, quando sabemos todos que o Criador não precisa de porta-vozes, ainda mais de passado nebuloso. Já passou da hora de tanta condescendência com falastrões metidos a juízes, e cujo passado os condena. Até um tempo atrás, repórteres investigativos tinham a altivez e o profissionalismo de levantar questões instigantes, que hoje, seguidores de pautas ‘doisladistas’, em nome de uma neutralidade que não costumam ter com Lula e os demais dirigentes de esquerda deste país, preferem não se indispor com esses fidalgos.

O que mais espanta aos que têm o senso crítico ainda vigoroso é a desenvoltura desses senhores, que açambarcaram rios de dinheiro durante o desgoverno do inominável e uns deles tiveram papel ativo durante a gestação do 8 de janeiro de 2023, a intimidar juízes e delegados que investigam as inúmeras ilegalidades cometidas cinicamente por todos eles em tempo tão curto. Por tudo isso, jamais voltarão aos cargos por eles cobiçados, podem ter certeza. Ainda que tentem intimidar os pobres desavisados e submissos aos seus mal intencionados propósitos.

O exemplo e a advertência já foram dados eloquentemente pelas organizações populares em La Paz e Buenos Aires, em fins de junho e meados de julho. Basta ter um mínimo de sensatez e compromisso histórico para sair da zona de conforto e ir às ruas, seja para ter o prazeroso papel histórico de fazer o corpo a corpo, bem como mobilizar, organizar e conscientizar. Ou se esqueceram do mais elementar dos papéis dos que pugnam por seus direitos? A história está rica de episódios didáticos e elucidativos, basta ter humildade para aprender e vontade para pôr em prática. Já passou da hora!

Ahmad Schabib Hany

segunda-feira, 15 de julho de 2024

SOCIEDADE PALESTINA FAZ ENCONTRO COM EX-PRESIDENTA DA CÂMARA DE DEPUTADOS DA BOLÍVIA

Sociedade Palestina faz encontro com ex-presidenta da Câmara de Deputados da Bolívia

Em viagem de caráter privado, a ex-deputada Betty Tejada, ex-presidenta da Câmara de Deputados da Bolívia e mãe da Ministra María Nela Prada, da Presidência da Bolívia, foi saudada por dirigentes da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira em Corumbá.

Dirigentes da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira saudaram a ex-deputada Betty Tejada, ex-presidenta da Câmara dos Deputados da Bolívia e autora do projeto legislativo que em 2007 reconheceu a soberania da Palestina perante o Estado Plurinacional da Bolívia. Em viagem de caráter privado pelo Brasil, Betty Tejada recebeu a comitiva de imigrantes palestinos no Consulado da Bolívia em Corumbá, sob a cortesia do Cônsul Simons William Durán Blacut.

A ex-deputada Betty Tejada (MAS-SC) é destacada dirigente do Movimento Ao Socialismo, amiga pessoal do ex-presidente Evo Morales e mãe da Ministra María Nela Prada, titular do Ministério da Presidência do Estado Plurinacional da Bolívia desde novembro de 2020. Foi quando o Presidente Luis Arce Catacora, do MAS, assumiu a Presidência do país ao vencer em primeiro turno as eleições que se seguiram ao golpe de 2019, quando grupos ligados à direita tentaram implantar uma ditadura, mas o povo organizado a repeliu e fez com que as eleições fossem realizadas um ano depois.

No encontro, realizado na manhã de domingo, 14 de julho, data em que se celebra a queda da Bastilha e que consolida a vitória da Revolução Francesa, em 1789, marco da criação do Estado de Direito, constituído de três Poderes -- Executivo, Legislativo e Judiciário --, Betty Tejada salientou o compromisso do Estado Plurinacional da Bolívia com a ordem constitucional e o reconhecimento, à luz da Carta das Nações Unidas, do direito dos povos à autodeterminação e à soberania nacional inviolável e incondicional. Essa foi a base do projeto legislativo de sua autoria que reconheceu o Estado da Palestina e estabeleceu relações diplomáticas desde então.

O Presidente da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira em Corumbá, Munther Safa, e o diretor Nasser Ahmad afirmaram que o encontro com a dirigente do partido de sustentação parlamentar do Presidente Luis Arce é emblemático gesto de gratidão e reconhecimento da atitude pioneira do Presidente Luis Arce Catacora, que rompeu relações diplomáticas tão logo o governo de Benjamin Netanyahu iniciou o genocídio em Gaza como retaliação a um contra-ataque pelas forças da Resistência Palestina em áreas contíguas a Gaza em outubro de 2023.

A ex-deputada Betty Tejada fez questão de reafirmar, em seu nome e no do partido que governa a Bolívia, sua solidariedade categórica e incondicional ao corajoso povo palestino, que sob o impacto de armas poderosíssimas, tem resistido estoicamente ao longo destes nove meses de intensa violência contra crianças, mulheres e idosos inofensivos e desarmados, caracterizando um verdadeiro genocídio que envergonha a humanidade.

Para coroar o encontro, além de saudações de parte a parte, Munther Safa e Nasser Ahmad entregaram exemplar do livro em português com a biografia do poeta Ghassan Kanafani, ícone da resistência cultural e civil palestina executado em 1972 por forças sionistas no Líbano, e algumas camisetas com estampas alusivas à causa palestina. É a modesta mas sincera manifestação de apreço e amizade com os membros do Governo Democrático da Bolívia, o primeiro a romper relações diplomáticas com o Estado sionista depois da eclosão da violência injustificável contra pessoas indefesas e inofensivas em sua própria terra, sem direito a sua soberania e livre determinação, conforme a Carta das Nações Unidas.

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 11 de julho de 2024

TÂNIA NOZIERIS SANTANA, PRESENTE!

Tânia Nozieris Santana, presente!

A eternização da incansável Psicóloga Tânia Nozieris Santana, domingo passado, deixa uma lacuna irreparável nas áreas de Saúde e de Cidadania, sobretudo, entre as pessoas sinceramente comprometidas com o avanço da doutrina da Proteção Integral.

Não gostaria estar vivo para testemunhar um momento tão desolador como irreparável em toda a nossa existência: a eternização da grande, imprescindível e, sobretudo, amorosa Tânia Nozieris Santana, Psicóloga (com letra maiúscula), servidora da Saúde e ativista dos Direitos Humanos, sobretudo da Criança e do Adolescente em Corumbá e Ladário, sua terra-natal, onde foi vereadora por curto período, experiência, aliás, que a frustrou.

Muito determinada e bem embasada, porque sempre estudava e sabia se fundamentar para engajar-se em uma causa, a querida e agora saudosa Amiga-Irmã Tânia Santana não quis recorrer a um direito líquido e certo, a aposentadoria por problemas de saúde, logo ela que sempre se envolveu na defesa de direitos conquistados com muito denodo e luta. É compreensível sua postura, porque em sua concepção de Vida os interesses dos outros estavam acima dos seus.

Talvez por causa disso sempre foi alvo de perseguição de políticos e burocratas medíocres que se incomodavam com a luz que Tânia sempre emanou, ainda que a colocassem nos recônditos da administração municipal de Corumbá. Em Ladário, não foi diferente: toda vez que Tânia levantava uma bandeira em favor de amplas camadas da população de sua amada terra-natal, como na questão dos direitos das crianças e adolescentes, seus pares não governamentais -- mas sempre de olho nas migalhas de cooptação -- eram os primeiros a fazer objeções das mais insólitas.

Quando da primeira gestão do PT na administração municipal, um secretário medíocre que sequer conseguiu acompanhar o prefeito até o final de seu primeiro mandato, tentou enxovalhar a biografia de Tânia Santana, com acusações levianas e torpes, até porque não tiveram consistência e acabaram arquivadas pelos órgãos competentes. Mas as acusações mentirosas lhe causaram muito mal, além de terem causado a saída de uma função para ela muito cara, no Centro de Saúde da Mulher. Depois de peregrinar por diversas funções, dedicou-se ao programa antitabagismo, implantado na região pela incansável Terapeuta Ocupacional Lielza Carrapateira, igualmente dedicada à população.

Sou testemunha privilegiada da retidão de caráter de Tânia Santana ao longo de mais de trinta anos de convívio digno, saudável e, sobretudo, generoso: a Saúde era sagrada para ela, uma prioridade total. Com ela estávamos sempre aprendendo algo novo e, sobretudo, sua sábia percepção de psicóloga voltada para o coletivo, os excluídos, os esquecidos, os párias desta sociedade mais medievalizada, acintosamente excludente e hipocritamente ‘religiosa’. Embora seguidora desde gerações anteriores à espiritualidade ensinada por Allan Kardec, o proceder de Tânia sempre foi o laicismo, pois o Estado é laico.

Sem qualquer exagero, Tania sempre foi, é e será Luz (maiúscula, por favor!). Presença que iluminava os ambientes onde estivesse, suas ponderadas observações costumavam ser ponto de equilíbrio, como bem definiu a Psicóloga Suzete dos Santos, perita do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, sua Colega de curso e Amiga ao longo de décadas. A Filha Cecília, que acompanhou o martírio da Mãe nos últimos meses, mesmo conhecendo como ninguém a generosidade de Tânia, impressionou-se com o desapego total com questões tão elementares, como a dos direitos que sempre reivindicou para os outros.

A generosidade e total desapego de Tânia Santana a tornaram uma verdadeira Mãe de seus assistidos e, inclusive, dos colegas e amigos. Uma grande Mãe, no dizer de Anísio Guató, que atuou por décadas ao lado de Tânia em diversos conselhos de que participou, bem como no então FORUMCORLAD, de cuja secretaria executiva foram titulares durante anos, tendo conquistado diversos avanços no controle social das políticas públicas, tanto em Corumbá como em Ladário. Anísio descreveu a conduta ilibada e generosa de Tânia como a de u’a Mãe a cuidar de seus Filhos e Filhas.

Conheci Tânia numa reunião no auditório do saudoso GENIC há exatos trinta anos, quando o saudoso e querido Padre Pasquale Forin trouxe a Corumbá o projeto de criação do Centro de Defesa de Direitos Humanos (similar ao fundado por ele anos antes, em Campo Grande), mas lamentavelmente não decolou, sobretudo por falta de voluntários, na época. Embora ela estivesse na reunião com suas preocupações sobre a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, sua participação foi exemplar, tanto que a partir de então não nos afastamos, embora na ocasião seu foco estivesse em Ladário.

Aliás, o FORUMCORLAD, nascido em Ladário por conta de Cidadãs como Tânia, Dona Vera, Dona Elígia Assad e outras igualmente singulares, se tornou protagonista não por acaso. À exceção do saudoso Senhor Ariodê Martins Navarro e do Psicólogo Aguinaldo Rodrigues, eram Mulheres (letra maiúscula) as que faziam com que os conselhos de políticas públicas funcionassem sem temor e com vigor, à altura da história de Ladário. Quando da mudança do FORUMCORLAD para Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa, estas cidadãs e cidadãos citados foram os que continuaram a atuação, enquanto muitos se acotovelavam para galgar cargos na administração cujo titular foi vítima da inconfidência do suplente.

[Triste também ter sabido que a querida e igualmente dedicada Psicóloga Marilza Pinheiro se encontra em coma depois de ter sofrido um AVC há mais de um ano, episódio que ficou restrito à Família e a pessoas com as quais ela trabalhava. Outra grande Psicóloga que honra a categoria e o ofício. Essa também querida Amiga-Irmã ao lado de Tânia Santana desenvolveu projetos pioneiros, na área da Educação Inclusiva, tendo sido Colegas no controle social nos conselhos de políticas públicas em Corumbá. Torcemos pela Vida e plena saúde da querida Marilza, cujo coração de Mãe é do tamanho do de Tânia.]

Em mais de três décadas dedicadas à Cidadania e à Saúde, o legado generoso de iluminado de Tânia Nozieris Santana está vívido, como sua honrada e inspiradora memória renasce em novos corações, nas novas gerações de cidadãs e cidadãos que materializarão o que não foi possível para Tânia, cidadã à frente de seu tempo, como para os contemporâneos como Aguinaldo e o saudoso e querido Seu Ariodê, em Ladário, e Anísio, Marilza e os saudosos Seu José Batista de Pontes, Aurélio Mansilha Tórrez e Heloísa da Costa Urt, em Corumbá. Um dia, não muito distante, uma pesquisadora oriunda do Sul estará a fazer o real e efetivo resgate dessa trajetória vitoriosa para o registro pela História dessa grande cidadã e de seus companheiros de controle social para a afirmação do protagonismo cidadão, de forma pioneira e honrada!

Nossa eterna gratidão à querida Tânia Nozieris Santana e todas e todos os seus verdadeiros Companheiros de luta no controle social das políticas públicas. Nossos sentimentos mais profundos e sinceros a toda a Família da Tânia, em especial a Filha Cecília, o Filho João Kepler, a Afilhada Nainá, o Companheiro de Vida Souza, as irmãs e Irmãos, acompanhados do mais elevado agradecimento por terem apoiado a querida Amiga-Irmã, cuja lacuna hoje nos faz desmoronar os corações. Obrigado, Tânia, por ter existido, resistido e ter ensinado a lutar sem temor e sem mágoa! Psicóloga Tânia Nozieris Santana, presente!

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 4 de julho de 2024

AOS 28 ANOS DE SAUDADE DO INCANSÁVEL PEREGRINO

Em uma de suas últimas fotos, com a neta Dunia

Aos 28 anos de saudade do incansável Peregrino

Neste 4 de julho transcorrem 28 anos da eternização do incansável Peregrino que a Vida nos presenteou como Pai. Em homenagem à sua memória, posto novamente este texto, publicado no centenário de seu nascimento.

Postagem original: <https://schabibhany.blogspot.com/2014/10/aos-cem-anos-do-incansavel-peregrino.html>.

 

AOS CEM ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

 

AOS CEM ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

MAHOMA HOSSEN SCHABIB (1º/10/1914 – 04/07/1996)

 

Se estivesse vivo, o Peregrino que a Vida generosamente nos presenteou como Pai estaria completando 100 anos nesta quarta-feira, dia 1º de outubro de 2014.

Nascido no dia em que eclodira a Primeira Guerra Mundial na bucólica e formosa Rasen-Hache (província de Batroun), no Líbano, o incansável Peregrino chamado Mahoma Hossen Schabib ficara órfão de Mãe, dona Maquie Madi, aos 5 anos de vida. O Pai, Hussein Schabib, não quisera que os sete filhos (quatro meninas e três meninos) tivessem madrasta. Como caçula, coube às irmãs, bem mais velhas, cuidar dele. Por influência do primo mais velho, matemático e poeta Scandar Shalak, alfabetizara-se precocemente, e logo fora para o internato na distante Damasco (capital da Síria), onde concluíra com destaque os níveis fundamental e médio.

Ele contava, emocionado, que tivera o privilégio de ver a comoção popular quando da chegada do corpo do imortal poeta libanês Gibran Khalil Gibran (autor de “O Profeta”, entre outras obras) a Damasco para as homenagens póstumas na Síria e Líbano, quando professores participaram como oradores das celebrações ecumênicas. Igualmente, narrava com indisfarçável indignação sobre a repressão, pelos gendarmes franceses, ao movimento juvenil sírio contrário à opressão colonialista em meados da década de 1920, em que milhares de intelectuais e universitários foram torturados e mortos sem piedade, logo por aqueles que se diziam agentes da civilização e do progresso ao substituir o igualmente obscurantista e opressor império turco-otomano, de triste memória.

Obstinado, não sossegara enquanto não transpusesse as fronteiras políticas da Arábia, dividida à época pelos impérios britânico e francês (Líbano e Síria, colônias francesas; Palestina e Egito, colônias britânicas). Para tanto, passou-se por beduíno e atravessou todo o território da Palestina (ainda livre da ocupação sionista), pela fronteira do sul do Líbano e chegar, por Gaza, ao Cairo, no Egito, para cursar Filosofia na milenar Universidade Al-Azhar -- fechada em 1954, início do governo de Gamal Abdel Nasser, por causa de seus arqui-inimigos da Irmandade Islâmica, contrária ao Estado laico implantado pelo maior estadista árabe dos últimos cinco séculos. Mas ele (meu Pai) não pôde concluir o curso universitário por causa da eclosão da Segunda Guerra Mundial: o Egito era colônia da Grã-Bretanha e o ardil colonialista obrigava os jovens mais instruídos ao alistamento militar -- uma acintosa forma de eliminar a juventude inquieta porque esclarecida, feito bucha de canhão.

Mesmo a contragosto, acabou interrompendo os estudos no final do curso (1939), aceitando o conselho de seu irmão mais velho, Ale Hossen Schabib (que, naturalizado boliviano, virou Alejandro Hossen, pois, como em todo país hispânico, o primeiro sobrenome é o que conta). Esse irmão havia emigrado para a América no fim da Primeira Guerra Mundial e, depois de incursionar pela Amazônia brasileira, decidira estabelecer-se na Bolívia, de onde custeava os estudos do irmão caçula, além de ajudar a família com o que fosse possível naquele período de miséria e tragédias no Hemisfério Norte. A sua esperança -- e consolo -- era que a guerra não levasse muito tempo e que ele não demorasse a retornar ao Cairo para concluir seus estudos e seguir seu projeto de vida no Oriente Médio.

 

OUTRA CULTURA, NOVOS DESAFIOS

Mas não foi bem assim. Para começar, foi uma verdadeira epopeia chegar até a América do Sul, atravessando dois oceanos num barco de cruzeiro da companhia italiana de navegação Costa, o “Ana C”. Aportou em Arica, no Chile, após a travessia do Canal do Panamá com as suas comportas deslumbrantes. Em seguida, voou literalmente sobre a Cordilheira dos Andes até chegar a La Paz, a mais de três mil metros de altura, e seguir em outro voo até a capital do departamento de Beni, Trinidad, na Amazônia boliviana, para finalmente conhecer o irmão mais velho com quem só se relacionara até então por cartas -- afinal, ele partira quando meu Pai era de colo. Adaptar-se à vida de mascate num país de cultura totalmente diferente da sua foi outra proeza. Com a ajuda do irmão que era como Pai, procurou estabelecer-se num povoado menor, Magdalena, para capitalizar-se e logo ganhar autonomia financeira. Mas as adversidades (entre elas, o naufrágio de seu batelão carregado de mercadorias) o fizeram descapitalizar-se e quase lhe custaram a própria vida, em 1940, que ele passara a grafar como “0000” (quatro zeros), pois os prejuízos o fizeram voltar à estaca zero.

Perseverante, em cinco anos -- praticamente o período da sangrenta guerra que acabou com a inocência da humanidade --, entre a disciplina nos estudos (não abandonara o hábito de estudar, nem quando atingiu a terceira idade, lendo sistematicamente no mínimo quatro horas diárias) e no trabalho, aprendeu a arte do comércio e dois novos idiomas (espanhol e inglês), e logo era detentor de um capital monetário respeitável. Por essa razão, o irmão que fazia as vezes de Pai o aconselhara a ir se preparando para casar-se. Coincidência ou não, nessas incursões como mascate havia conhecido um dentista muito popular, de nacionalidade libanesa, o assim chamado doutor José (Yussef) Al Hany, Pai de dez filhos (seis meninas e quatro meninos) com uma única companheira, a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, afável, culta e hospitaleira.

O doutor Hany, druso (ou derzi, religião espiritualista oriental); a dona Guadalupe, católica, de Pai maronita (variação libanesa de catolicismo cujo sacerdote pode se casar). Meu Pai, muçulmano. Como os árabes, a exemplo dos brasileiros, vivem e celebram a diversidade, não demorou muito para que a mais velha das filhas, a bela Wadia Hany Ascimani, decorrido algum tempo, viesse a contrair núpcias com o jovem imigrante. Não é demais dizer que naquela época, entre os árabes, não era tão acirrada a intolerância religiosa de hoje, alimentada pelas potências ocidentais dentro da ignóbil lógica do “dividir para reinar”, iniciada com a imposição do Estado sionista no território da Palestina em 1948, como perniciosa reparação dos danos causados pelos europeus nazistas em território europeu, e que nada têm a ver com os árabes, estes também vítimas dos abusos colonialistas até a presente data.

Casaram-se em abril de 1948 (ironicamente três semanas antes da formalização, pelas potências mundiais, do Estado de Israel), uma relação conjugal que durou 48 anos e dois meses (meus Pais já planejavam comemorar suas bodas de ouro, quando uma parada cardíaca interrompeu, em 1996, seus projetos comuns de Vida). Mas essas quase cinco décadas, como em tudo na Vida, não foram um mar de rosas, pois tiveram altos e baixos. Os primeiros cinco anos de vida conjugal, sim, por conta da estabilidade econômica então reinante na Bolívia, foram tranquilos: minha Mãe aprendeu logo as habilidades comerciais, tendo-se tornado referência nos negócios crescentes da família. Deixaram a Amazônia depois do nascimento da segunda filha, indo residir na chamada cidade-jardim boliviana, Cochabamba, localizada num formoso vale da Cordilheira dos Andes e com excelente qualidade de vida, cultura e cosmopolitismo.

 

VOLTA ÀS ATIVIDADES INTELECTUAIS

Nesse importante centro cultural boliviano, até por conta da estabilidade da economia familiar, meu Pai decidiu retomar os estudos na Bolívia, e não demorou muito para que exercesse com maestria o jornalismo, além de conduzir um programa radiofônico sobre a cultura árabe e as relações com a América Latina. (Era um período de efervescência política em todo o mundo: além da consolidação do socialismo como alternativa real para todos os povos vítimas do saque e da exploração de suas riquezas naturais e de sua gente, na Bolívia viviam-se as transformações decorrentes do triunfo da Revolução de 1952 boliviana, e na Arábia espalhavam-se os ideais de Nasser, um dos jovens líderes da Revolução de 1952 egípcia, que acabou com o jugo pró-inglês do rei Faruk no Egito e mudou os rumos do povo árabe disperso em 22 Estados divididos pelo Ocidente e das nações do Terceiro Mundo no século XX, ao fundar, com Broz Tito, Jawaharlal Nehru e Chu En-Lai, o Movimento dos Países Não Alinhados.) Talvez a excessiva visibilidade tivesse exposto muito meu Pai diante de adversários poderosos, até então desconhecidos, que se valeram da crise sociopolítica e econômica na Bolívia para desencadear contra ele uma série de ações judiciais e fragilizá-lo comercial e economicamente. Em meio a uma avalanche inflacionária de mais de nove mil por cento ao ano, no início da década de 1960, meus Pais decidiram vender todo o seu patrimônio, construído com muito esforço ao longo de três décadas, a fim de reunir o máximo possível para adquirir as passagens para dez pessoas (dois adultos e oito crianças) de trem e navio a fim de retornar ao Líbano, onde nasceu a caçula dos filhos e permanecemos por quase quatro anos. Nesse meio tempo, meu Pai cobriu para a Rádio Cairo em espanhol, uma revista árabe-chilena chamada “Mundo Árabe” e uma edição em espanhol da revista brasileira “O Cruzeiro” a luta pela independência das nações árabes do norte da África (Argélia, Líbia e sobretudo o Egito, que passara a se denominar República Árabe Unida, um Estado confederado com a Síria e o Iraque, mas que não durou muito por conta das investidas ocidentais e de seus fantoches dos reinos, emirados e sultanatos árabes, temerosos de que a experiência socialista de Nasser no Egito irradiasse para os demais países do Oriente Médio).

Como o jornalismo não lhe proporcionara o suficiente para o sustento de uma família de onze pessoas (nove crianças e adolescentes), meu Pai lançara mão de suas últimas economias para tentar se estabelecer com um restaurante na segunda maior cidade libanesa, Trípoli (capital da província de Batroun), em sociedade com um primo que já fora seu sócio na fronteira da Bolívia com o Brasil (Guajará Mirim, Rondônia), Hussein Khalil Schabib. Entre as atividades comerciais e a agricultura (nas terras herdadas do Pai), tentou se recuperar financeiramente, mas decidiu por retornar para a América do Sul, pois o clima político no Líbano não lhe inspirava bons augúrios. Ele pressentira, pela insustentabilidade do cotidiano do cidadão comum libanês, a revolta das camadas populares contra as oligarquias libanesas, fato que eclodiu em 1974 com a trágica guerra civil que durou duas décadas, dizimou e empobreceu a população e destruiu a infraestrutura do país após a invasão de tropas israelenses e americanas, no início da década de 1980, provocando uma série de massacres nunca antes vistos no Líbano ou qualquer outra nação árabe, à exceção da Palestina e da Argélia em sua luta pela independência (depois, sim, vimos, em maior escala, a invasão do Iraque e da Líbia – e agora na Síria – pelos mesmos gendarmes e mercenários de Israel e Estados Unidos, em pleno século XXI). 

 

A ESCOLHA DE CORUMBÁ

Nos quase 25 anos que vivera na Bolívia, inúmeras vezes viajara de avião ou trem pela região do Pantanal, tendo ficado em Corumbá por breves estadas, sobretudo depois que fixara residência em Cochabamba. Rumo a São Paulo, de onde comprava muitos itens para abastecer seu comércio atacadista, havia se encantado com o desenvolvimento desta região, que, depois da inauguração da ferrovia Corumbá – Santa Cruz de la Sierra, passou a compará-la à região de Milão pelo tronco ferroviário e a importância desse transporte para a integração do continente. Por isso, quando se decidiu por retornar para a América do Sul, sua escolha recaiu sobre Corumbá, de modo que os três filhos mais velhos (que estavam por chegar à universidade) ficassem na casa da Vovó Guadalupe e os demais não tão distantes do país que o acolhera na juventude e, a despeito das adversidades, lhe ensinara muito. Ele era muito grato ao povo boliviano por tudo que lhe ocorreu na Vida. Obviamente, como todo imigrante, amava todos os países que o acolheram. E sua relação com o Brasil foi como o coroar de seus sonhos e lutas, até pelo fato de haver feito a escolha em plena maturidade. Assim, quando se estabeleceu com um modesto comércio de armarinhos, à rua Joaquim Murtinho, plena Feira Boliviana (a poucas quadras da estação ferroviária da Red Oriental da Bolívia, à época separada por uma centena de metros da ferroviária da Noroeste), semanas antes do golpe militar de 1964, iniciava uma nova fase em sua renhida existência de Peregrino incansável.

Seis meses mais tarde, início da primavera de 1964, meu Pai deu início a seu projeto de trabalho (e de Vida) no coração do Pantanal e da América do Sul (era assim como ele via Corumbá, centro do bioma e do subcontinente): abrir uma sorveteria (com a solidária assessoria de um Amigo libanês, Fauze Rachid, e sua esposa boliviana Pura Ceballos de Rachid, proprietários da popular Sorveteria Superbom, e que anos depois se mudaram para Puerto Suárez) e construir uma hospedaria (pousada) com menos de uma dezena de quartos, que em pouco mais de cinco anos se transformara em referência para comerciantes bolivianos e jovens turistas de todo o mundo por causa da higiene, segurança e atenção de seu proprietário poliglota e bem informado (como recomendavam os guias turísticos pioneiros que descobriram a rota dos Incas e os safáris fotográficos do Pantanal, sem qualquer incentivo das instâncias de governo federal, estadual e municipal de todos os países sul-americanos, que viam os mochileiros barbudos como suspeitos, quer fosse como “subversivos” ou como “maconheiros”), depois de ter conseguido comprar, com o pouco que lhe restava da venda de seus bens do Líbano, uma casa modesta de um simpático casal de idosos (o senhor Afonso, português, e dona Paulina, corumbaense, irmã de uma vizinha que logo ganhou status de vovó, a dona Ventura, muito cordial e sempre presente nos primeiros anos da chegada de toda a Família).

Foi com essa modesta pousada que, por quase trinta anos, assegurou o sustento digno de uma numerosa família de nove filhos, tendo como meta dar-lhes formação universitária. Quando um amigo bem próximo lhe propôs um empréstimo para ampliar as instalações da pousada, diante do movimento e do reconhecimento de seus serviços, ele revelou que não pretendia ser dono de rede de pousadas ou fazendas, mas pai realizado por ver todos os seus filhos a concluir os seus estudos, independentemente da profissão escolhida. Obviamente que a perda do filho mais velho (ocorrida em circunstâncias não elucidadas pela polícia em 1974, que me induziu a declarar, aos 15 anos, que fora por suicídio, fato questionado por seus colegas universitários e sobretudo por um investigador de uma seguradora que por coincidência se hospedara dois meses depois da tragédia), Mohamed (ou carinhosamente “Tchítchi”), o abatera profundamente: ainda que não abandonara as metas que traçara para sua Vida, com a maior dignidade e responsabilidade, não era difícil pegá-lo lacrimejando ao ler ou conversar com jovens que lembrassem o espírito arrojado do saudoso filho.

A propósito dessa tragédia, houve quem propusesse que denunciássemos o governo do mais sanguinário, corrupto e mercenário dos ditadores bolivianos, Hugo Banzer Suárez, pela morte de nosso irmão, cuja memória foi criminosamente vilipendiada pela chefia da polícia local nos tempos nefastos da ditadura. Lembro-me como hoje que, acompanhado de dois queridos Amigos (Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de Souza Alvarez, fotógrafo à época da tragédia), visitamos quase todas as redações de jornais locais que haviam estampado a manchete sensacionalista do tipo “estudante (sic) universitário se fuzila sem deixar carta” (coisa típica de crônica policial chapa-branca, espreme-sai-sangue) a fim de esclarecer os fatos e pedir que republicassem a matéria dando-nos o direito de mostrar o outro lado dessa notícia. Alguns, obviamente, nem se deram a esse trabalho. Mas o velho Diário de Corumbá, então dirigido pelo jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior, corrigiu a notícia com o devido destaque. O Pai dele, fundador do jornal em 1969, jornalista Carlos Paulo Pereira, tinha uma relação de amizade com o meu Pai, que desde as primeiras edições colaborava com matérias de política internacional. Por conta desse gesto, a partir de então meu Pai passou a assinar também matérias de fundo espiritual, não doutrinário, em que homenageava de alguma forma meu saudoso Irmão. Talvez o artigo dele que mais tenha repercutido na década de 1970 tenha sido “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, o qual foi publicado em dois idiomas em diversos jornais do Brasil e da Bolívia.

 

A MILÃO SUL-AMERICANA

Ainda na década de 1970, por ocasião do bicentenário da fundação de Corumbá, publicou outro emblemático artigo, desta vez voltado para as perspectivas de desenvolvimento da região do Pantanal, quando explicou por que o turismo, ao lado do comércio, eram a vocação natural de Corumbá -- tendo então comparado a posição estratégica do coração do Pantanal a Milão, na Itália. Essa matéria foi levada por um turista para publicá-la num jornal espanhol e em outro italiano. Desde então, quando calhava de se hospedar algum jornalista em sua pousada, meu Pai fazia questão de entregar alguns artigos de sua autoria, autorizando-o a publicar como quisesse, ainda que sequer publicasse a autoria. Ele foi um defensor declarado de que as ideias não têm “dono”, e é um dever fazê-las circular, em benefício da humanidade.

Mas foi ao lado de outros dois imigrantes como ele -- William “Bill” Sefusatti, o ítalo-britânico dono dos barcos Califórnia, e Hermann Pettersen, alemão casado com Dona Maria, cuiabana, dono do Restaurante El Pacu, ambos localizados no Casario do Porto -- que anonimamente deu sua contribuição para a consolidação do turismo contemplativo no Pantanal entre os fins da década de 1970 e início da década de 1990, quando alguns guias de turismo pioneiros brasileiros também passaram a integrar a atividade, tais como Clóvis Brandão Carneiro, Rodrigues, Guilherme Carstens, Armando Duprat, Roberto Kassar, Joaquim, Catu, Gilberto, José Bobadilha, José Paraguaio, Johnny Índio, entre outros. De forma bem profissional, ao lado da pioneira La Barca Tours, da família Nader, o também pioneiro J. Carneiro e seu Expresso do Pantanal consolidaram de forma sustentável o turismo voltado para as famílias que vinham conhecer o bioma pantaneiro pelo majestoso Rio Paraguai.

No início da década de 1990, frustrado com a sucessão de equívocos cometidos pelos gestores do turismo em nível estadual e municipal, que em troca de favores eleitoreiros, permitiam que os chamados guias piratas prostituíssem a atividade em Corumbá, iniciou uma série de artigos sobre a importância do turismo e fazendo explícitas advertências às instâncias administrativas. Recebia telefonemas de cumprimentos “pela coragem”, mas as sugestões reiteradas para a organização da atividade na região jamais viu serem implementadas. Tanto assim, em maio de 1994 encerrou as atividades de sua modesta pousada, depois de trinta anos de trabalho ininterrupto, em protesto contra a pirataria que então tomava conta do turismo.

Para não se deprimir, fez sucessivas viagens com a minha Mãe -- ao México, onde moram um de meus irmãos, companheira e filhas; ao Líbano, onde deixou praticamente toda a Família, e à Bolívia, onde visitou a Família e amigos contemporâneos seus, ainda saudáveis -- e, quando se preparava para organizar sua “segunda lua-de-mel”, para comemorar suas bodas de ouro, faleceu subitamente, ao meio-dia de uma quinta-feira, 4 de julho de 1996, aos 82 anos incompletos.

Minha Mãe, dona Wadia, viveu mais treze anos, tendo resistido estoicamente a um câncer virulento que a silenciou sem lhe tirar o gosto pela Vida, em menos de seis meses. Internada num hospital de Campo Grande, ela deu seu último suspiro no início da manhã de uma segunda-feira, dia 15 de junho de 2009, aos 83 anos de idade. Eles tiveram nove filhos (seis mulheres e três homens) e um legado de trabalho e muita dignidade, um exemplo para todos nós que nos orgulhamos de sermos filhos seus.

Ahmad Schabib Hany

1º de outubro de 2014