quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

O ASSASSINATO DENTRO DO PROCON-MS

O assassinato dentro do PROCON-MS


Causa perplexidade e consternação o assassinato frio, calculado e acintoso dentro de uma audiência de conciliação em um órgão público, em Campo Grande (MS). Três tiros de calibre 380, diante de servidores e outros cidadãos agendados, é a prova cabal do desserviço de um desgoverno que incentivou a lei das selvas.

Que muitos ficaram embrutecidos nestes anos de desgoverno e de incentivo à barbárie, não restam dúvidas. Mas nada justifica o crime bárbaro cometido por um ‘elemento’ (na anacrônica linguagem policialesca) que se aposentou como servidor público da área da Segurança Pública e que se achou no direito de andar armado, mesmo sabendo que seu registro estava vencido havia quase oito anos, segundo revelação da polícia.

O episódio, por si só, é indignante e até consternador. O cidadão é convocado para uma audiência de conciliação numa das agências do PROCON-MS e, antes mesmo de chegar ao acordo, é vítima de um ato frio, calculado. Porque ninguém vai a um órgão público para fazer uma negociação de posse de uma arma carregada -- e parece que essa fala de que sempre andou armado é estratégia de defesa para não agravar a situação do acusado, que é flagrantemente autor dos disparos que ceifaram a vida de um cidadão filho de um pai nonagenário que todo final de semana saía para compartilhar momentos únicos, e pai de três filhos que tinham por ele uma referência cidadã.

Não há justificativa para um episódio como este, fruto da masturbação exacerbada por cultores da lei das selvas, da lei do ‘mais forte’, em verdade do império da contravenção e do crime, da terra sem lei. E praticado por quem o Estado despendeu recursos públicos para prepará-lo, treiná-lo em uma carreira que é considerada bem remunerada para dar proteção aos cidadãos de meliantes, assassinos, assaltantes e, enfim, de outros tipos de malfeitores, como consta da legislação.

O inominável, aquele que tomou de assalto os destinos da nação, passou todo o período constitucional de seu desgoverno para disseminar ódio, intolerância, mentiras em série e outras formas de contravenções e crimes, como agora vêm à tona. O aumento de todas as formas de violência -- desde a doméstica, com mulheres, crianças e adolescentes e pessoas idosas ou com algum tipo de deficiência, até a violência urbana, no trânsito, rural, policial etc -- estão sendo divulgadas em dados estatísticos dos próprios órgãos oficiais, e a base é a liberação da venda de armas, inclusive de grande calibre.

Mas, se isso fosse tudo, a exacerbação da intolerância, a disseminação do ódio gratuito e aviltante, a sublimação da injúria e da agressão descabida, o culto à ‘macheza’ bruta e criminosa ante o seu próprio semelhante -- o outro, o diferente, vulnerável, indefeso, inofensivo, oprimido, explorado, aviltado, vilipendiado, ultrajado, silenciado, invisível, desassistido, hostilizado e, sobretudo, excluído -- é o resultado de quatro anos de sistemática apologia a tudo o que não presta: a negação dos valores civilizatórios, a naturalização da aberração, a construção doutrina da violência com requintes de crueldade, em nome da fé, da moral e dos bons costumes. Qual fé? Que moral? Quais ‘bons costumes’?

O assassinato acintoso e ultrajante ocorrido em plena luz do dia, numa demonstração de que está acima da lei e de todos os que estão à sua volta, inclusive os representantes do Estado, é o cúmulo da barbárie cultuada e sublimada por seres irracionais, que atentam contra a civilidade. As atitudes insolentes e atrevidas como vieram subvertendo a ordem estabelecida, construída a duras penas ao longo de milênios neste processo civilizatório, que não é perfeito, não é o ideal, mas é o que temos. E que precisamos viver sob a sua égide, sob seu império, a despeito das aberrações existentes, causadas, aliás, por gente exatamente assim, como o ‘elemento’ que ceifou a vida de seu semelhante.

A propósito, temos diante de nós a oportunidade de repudiar contundentemente esses atos, verdadeiramente terroristas, criminosos e profundamente desumanos. Ou cidadãos sinceramente comprometidos com os valores humanistas, civilizatórios -- isto é, com o Estado de Direito, no seu sentido mais amplo --, saem da inércia a que foram submetidos nestes tempos sombrios, ou a ‘lei das selvas’ se imporá a balas e nosso próprio porvir enquanto nação terá sucumbido sob as trevas desses seres mefistofélicos, cujo destino não pode ser outro que a punição nos termos da lei.

Aliás, diferentemente deles, que, via de regra, recorrem à tortura, ao aviltamento da dignidade humana, quando assaltam, como num passado recente, os destinos do povo generoso e laborioso deste país-continente, cujo reencontro com o concerto das nações e com a História volta a ser trilhado, ainda que com prudência e comedimento. Fonte de luz, Norberto Bobbio descortinou para a posteridade seu profético ensinamento, de que a Vida é princípio de direitos, de modo que não há Estado ou caricatura de tirano que se dê a prerrogativa de ceifar a existência do outro, sob pena dos rigores da lei.

Ahmad Schabib Hany

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