A Vida e a História sob escombros
Como se o terremoto fosse a única tragédia, Síria e Turquia, duas repúblicas vítimas da islamofobia desde as Cruzadas (sobretudo na Europa e América do Norte), vivem o drama de serem ‘diferentes’, a despeito das generosas contribuições dos árabes para a humanidade, desde a Antiguidade Clássica e Idade Média.
Desde o dia 5 de fevereiro o mundo assiste ao drama dos sobreviventes sob os escombros causados por um terremoto (na verdade, vários abalos sísmicos de grande magnitude) na Síria e na Turquia, cujo número de vítimas não para de crescer (até o momento, mais de 25 mil pessoas mortas nos dois países). As imagens demonstram, mais que os estragos materiais, a angústia de familiares e socorristas na ânsia de salvar o maior número de sobreviventes, bebês, crianças, puérperas, jovens, adultos, sobretudo idosos.
O mundo todo se mobiliza, cada país como pode, para prestar sua solidariedade urgente e fundamental. O Brasil, como é de sua tradição, já enviou missão para ajudar a mitigar a crise humanitária decorrente dessa que é considerada uma das cinco maiores tragédias do século XXI. Os impactos desse flagelo são agravados na Síria, por conta da guerra civil de 12 anos, estimulada, sobretudo, pelos Estados Unidos e Israel, em sua sanha de terminar de se apossar de um dos focos mais aguerridos da resistência ao ávido expansionismo sionista dos últimos 70 anos.
Só sendo muito desatento(a) ou ingênuo(a) demais para não perceber a diferença entre a cobertura ao flagelo na Síria e na Turquia pela mídia corporativa. Embora não morra de amores pelo fundamentalista turco Recep Tayyip Endorğan -- que fez carreira política como ‘islâmico’ e, sob pressão da OTAN e da União Europeia, fundou um partido ‘social-conservador’ (que defende o liberalismo econômico e a pauta dos costumes, tal qual o pateta inominável e seu amo e senhor, o pato Donald, Trump, que também poderia ser chamado de Fanta Laranja) --, a cobertura realizada em território turco tem enfoque ‘humanizado’, repleta de sensibilidade e empatia.
Não se pode dizer o mesmo da cobertura baseada em território sírio, em que o foco está dividido entre a narrativa ideologizada pelos falcões do Pentágono (para justificar a sua sanguinária invasão desde 2010, que destruiu o milenar território mediante mercenários ‘democratas’ depois revelada a sua verdadeira face terrorista, os sinistros ISIS e ‘Estado Islâmico’ (treinados e armados pelo Mossad, o serviço secreto sionista). Mas isso veio à tona depois de terem sido desmascarados e parcialmente destruídos por forças regulares do exército sírio graças ao apoio russo, cuja força aérea levou à saída, sob pressão, de assessores militares estadunidenses, daí a ‘reiva’ com Vladimir Putin).
A localização estratégica da Síria, cujo governo havia celebrado um tratado com a Rússia em 2013 para a exploração de gás e petróleo e construção de importante oleoduto para abastecer o mercado internacional por meio de empresas parceiras russas provocou uma intensificação das agressões dos Estados Unidos e da União Europeia, que antes estavam menos vorazes, por meio da mefistofélica ‘Primavera Árabe’, em 2011. Ocorre que Síria, desde a queda do governo soberano do Iraque, passou a ser o alvo da cobiça e da sanha do ocidente. Não por acaso, a derrubada do governo da Líbia, representado por um dos maiores inimigos dos Estados Unidos e Israel, o coronel controvertido Muammar Khadafi, que teve a morte em um linchamento público monitorado por ninguém menos que a ex-primeira-dama e ex-secretária de Estado estadunidense, Hillary Clinton, que fez questão de celebrar a morte por linchamento do presidente líbio. Depois da deposição e morte de Khadafi (não muito diferente do ocorrido com o Iraque), o país ficou totalmente sem governabilidade e entrou em estado caótico, em que quadrilhas patrocinadas por países ocidentais (inclusive Estados Unidos e União Europeia) saqueiam o petróleo líbio, o que impede que a população tenha uma vida institucional, como antes, durante as mais de cinco décadas de vida soberana.
Estudiosos da geopolítica têm tratado disso com muita propriedade, como o querido conterrâneo e Professor Lejeune Mirhan [em Campo Grande nesta quinta-feira, dia 15 de fevereiro, na sede do IGHMS, 19 horas, faz palestra e lança livros], o renomado Jornalista Pepe Escobar (ex-correspondente nos bons tempos da Veja de Mino Carta em Nova York e Londres, hoje repórter especial das mais influentes mídias especializadas em geopolítica e economia política), o Jornalista Rogério Anitablian (repórter incansável de mídias digitais de referência, como o DCM e revista Fórum, em cujo canal do You Tube tem entrevistado importantes pensadores da atualidade com foco na geopolítica, economia e conflitos bélicos) e o saudoso Professor da Universidade Heidelberg Luiz Antônio Moniz Bandeira (um dos maiores estudiosos da Geopolítica dos últimos 60 anos, até sua eternização, em 2017).
Reiteramos: essa tragédia é agravada pela ‘pax americana’, que bem poderia ser grife de uma grande empresa funerária transnacional, mas é, sim, a doutrina pós-guerra fria concebida, desenvolvida, efetivada, financiada e disseminada por ninguém menos que os ‘falcões do Pentágono’ do tempo de George Bush, o pai do alcoólatra nanico, de alma e de físico, e dono de uma perversidade do tamanho de sua cobiça. A trágica ocorrência do vil atentado às Torres Gêmeas em Nova York (o fatídico 11 de setembro de 2001) é a constatação da errática política externa dos Bush com sua obsessão por se apoderar do Planeta, sem comedimento, noção de limites, e comiseração.
O Pato Donald (Trump), aquele que ‘empoderou’ o pateta inominável, é satanizado, mas a doutrina básica do Partido Republicano nos Estados Unidos vem do tempo de James Monroe, no início do século XIX, quando o continente americano começava a romper os grilhões da colonização europeia. “América para os americanos”, era a consigna da doutrina Monroe, ao que, segundo o brilhante e saudoso Eduardo Galeano, Simón Bolívar teria respondido: “América para os americanos, não; a América é para a humanidade.”
É esse o pano de fundo das constantes intervenções do império em evidente decadência (basta vermos o desespero contra a ascensão indisfarçável e demonizada da China, cujas ações beligerantes começam a ser implementadas com a mesma virulência de Trump, sempre em nome da ‘democracia’, da ‘liberdade’ e da ‘civilização’) em nosso Planeta cada vez mais famélico, explorado, oprimido e deteriorado. Não é preciso ser cientista para perceber os estragos ambientais causados pela cobiça, maquiada pela usura cínica de ‘desenvolvimento’ ou de ‘progresso’. Todos esses flagelos ‘naturais’ não ocorrem por acaso. Ou o(a) atento(a) leitor(a) acredita que as mudanças climáticas são uma invenção de ‘ambientalistas mentirosos’, ‘cientistas endemoniados’, como pensam os seguidores cegos do Pato Donald (Trump) e do Pateta.
Triste, muito triste assistirmos impotentes às tragédias naturais agravadas pela cobiça dos defensores do ‘deus mercado’. De um lado, a extrema direita assanhada, a conspirar contra o Estado de Direito e a Democracia; do outro, Estados Unidos e União Europeia na ânsia de impedir o iminente fim de uma hegemonia sanguinária e exploradora que dura mais de quinhentos anos. Em nome da cristianização do ‘Novo Mundo’ -- como ‘novo’, se já viviam aqui havia milênios os povos originários, Tupi, Guarani, Asteca, Maia, Quéchua, Aimara etc, cuja cultura, caso a caso, tinha uma relação totalmente diferente que a dos predadores europeus? -- cometeram saque, massacre, escravidão, usurpação, genocídio, etnocídio e ecocídio, em um tempo menor que o tempo da presença ‘moura’ (árabe) na Península Ibérica (300 anos em terras lusitanas e 800 anos em terras hispânicas).
Para concluir, em praticamente trezentos anos (Portugal) ou oitocentos anos (Espanha), os ‘mouros’ (árabes) não só não impuseram a sua língua (o árabe) e muito menos a sua religião (o islã), até porque entre eles havia muitos cristãos, como provam os censos das capitais árabes de então (Damasco, capital da atual República da Síria; Bagdá, capital da atual República do Iraque; Cairo, capital da atual República do Egito; Beirute, capital da atual República do Líbano; Jerusalém, capital da milenar Palestina -- sob ocupação sionista desde 1948 --, e Fez, importante cidade milenar do atual Reino do Marrocos, sede de uma das primeiras universidades dos tempos modernos). Mas, em meu modesto entendimento, o mais importante: os chamados mouros ou sarracenos pelos ocidentais, os árabes, além de generosamente terem contribuído para o desenvolvimento das letras (entre elas a sistematização da gramática hispânica e lusitana, além de traduções de clássicos da literatura universal), filosofia (resgate de obras clássicas de filósofos da Antiguidade Clássica, sobretudo o resgate da genial dialética de Heráclito de Éfeso e do legado de Tales de Mileto -- aliás, a Milésia corresponde ao atual território do Líbano), ciências (física, química, matemática, geometria, geografia, arquitetura, engenharia, economia, matemática, astronomia, medicina -- não esqueçamos de que para os cristãos a anatomia era vedada por ter que abrir corpos, inclusive humanos), artes (à exceção do desenho de figuras humanas, foram desenvolvidos desenhos geométricos, arabescos e perspectivas bastante ousadas), construção civil, comércio (uso da escrita fiscal, técnicas contábeis, conceitos monetários e cálculos transacionais), navegação (uso de cartas náuticas e técnicas de orientação por instrumentos como o astrolábio, bússola e vela triangular), o legado de técnicas culinárias para dar qualidade de vida com sabores e odores convidativos e de milhares de palavras que até hoje são usados por lusófonos e hispanofalantes.
Ahmad Schabib Hany
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