Seu
Pando Temeljkovitch, sempre na memória
O grande e longevo coração do Senhor
Pando Temeljkovitch decidiu parar aos 95 anos, no alto de uma Vida singular. Trabalhador
exemplar, foi cidadão à frente de seu tempo e cultor de utopias cosmopolitas,
justas e solidárias.
Era o ano de 1969. Enquanto eu me
preparava para o Exame de Admissão ao Ginásio na saudosa Escola Batista de
Corumbá, minhas Irmãs estudavam no agora nostálgico Ginásio e Escola Normal
Imaculada Conceição (GENIC, depois CENIC), emblemático Colégio das Irmãs, que
celebraria seu centenário em 2025 não tivesse encerrado melancolicamente suas
atividades em 2021 por falta de apoio das autoridades educacionais,
precisamente no tempo do famigerado ministro da Educação envolvido em escândalos
de propina em barras de ouro enquanto a Educação desmoronava em todo o
território nacional.
Na época, duas de minhas Irmãs, Soad
e Zamzam, possuíam duas colegas de sobrenome iugoslavo que se tornariam Amigas:
Walkiria e Neda Temeljkovitch. A primeira foi para os Estados Unidos para
continuar seus estudos, mas nunca deixou de enviar longas cartas em que contava
com uma dose de irreverência as diferenças culturais nos EUA. Neda, que fez sua
graduação em Direito, manteve a Amizade por décadas. E foi por meio dessa
relação de profunda identidade que eu acabei por conhecer Miro e o Pai, o agora saudoso Seu Pando Temeljkovitch.
Em 1989, quando Miro cursava Biologia
no Centro Universitário de Corumbá (CEUC), da UFMS, nos reencontramos e
participamos das atividades acadêmicas e, inevitavelmente, da primeira campanha
presidencial pós-1964. A campanha de Lula, no segundo turno, unificou os
estudantes das diferentes posições, o que fortaleceu os movimentos sociais.
Nessas idas e vindas, em reunião na residência de Seu Pando, pudemos conversar
longamente: foi quando ele nos revelou a gratidão pelo povo brasileiro, como
imigrante da Iugoslávia, hoje Macedônia, sua vinda com a Mãe e o reencontro com
o Pai, que viera primeiro a Corumbá, antes da eclosão da Segunda Guerra
Mundial.
O cosmopolitismo de Seu Pando era
invejável. Convivia como se ainda sua Corumbá fosse a de sua infância, e fazia
questão de compreender a diversidade existente no outrora próspero entreposto
comercial que acolhia pessoas de todas as origens e sonhos. Os anos dedicados à
fábrica de cimento Itaú, que lhe permitiu residir na antiga Vila Itaú, forjou
suas convicções de trabalhador consciente de sua classe, o que se manteve
vigoroso nos ideários de seus Filhos, inclusive adotivos. Generoso, nunca impôs
seu modo de pensar, a ponto de ter entre seus Filhos pessoas com as mais diferentes
posições ideológicas sem qualquer constrangimento.
Lembro-me que um saudoso Companheiro
de História chegou a fazer entrevista longa e paradigmática a propósito do fim
da Iugoslávia. Não escondia sua admiração pelo grande libertador da Iugoslávia
do jugo nazista, o memorável Broz Tito, fundador do Movimento dos Países Não
Alinhados. Lamentavelmente eram tempos em que os arquivos de papel não
resistiam ao tempo, e os cupins acabaram destruindo esse trabalho emblemático.
O Senhor Pando gostava ressaltar que a vocação do Brasil era a de uma potência
da paz e da concórdia, tal como era concebido o princípio dos Não Alinhados.
Tenho certeza de que, entre as fotografias e documentos de Família, ele guardou
vários exemplares de trabalhos e reportagens que tratavam de sua belíssima
Iugoslávia.
Nos agora saudosos anos 2010, quando
Miro topou o desafio de ser membro do Conselho Municipal de Saúde de Corumbá,
fiquei sabendo que Seu Pando ficara viúvo de sua eterna e terna Companheira de
Vida, Dona Leonor Temeljkovitch, e isso o fragilizara bastante. Cidadão de
convicções sólidas, não se deixou levar pela melancolia e resistiu a toda a
adversidade imposta pela idade e pelos descaminhos tomados pelas elites deste
país-continente. Sem correr o risco de cometer uma indelicadeza, podemos
assegurar que os sonhos que acalentaram seu grande coração permitiram uma existência
longeva e saudável, a despeito das limitações impostas pela idade.
No domingo de véspera das eleições
mais importantes da história da República, quando a cidadania se depara ante o
risco iminente de encarar o fascismo em território nacional, o querido Cidadão
Macedônio, em cuja infância enfrentou o nazismo, se despede do Povo que amou
com uma mensagem sábia, de que a diversidade fortalece e potencializa as
nações, ao contrário do refrão nazifascista, de que a ‘pureza racial’ torna um
povo livre e forte. Seu Pando é prova viva de que a fortaleza e a liberdade são
frutos da diversidade, como na natureza, essa fonte de Vida e de sabedoria.
Seu Pando Temeljkovitch, presente, na memória e no coração!
Ahmad
Schabib Hany
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