Por
Moïse, por você: mexa-se!
Mais de trinta pauladas. E
tiveram o cinismo de dizer que não queriam matá-lo. A selvageria com que Moïse Kabagambe
foi morto por uma alcateia urbana, em plena luz do dia e diante de todos, leva
a uma reflexão sincera: o que temos feito para dar um basta às hordas insanas
que vêm tomando conta do país?
A naturalização da violência e a invisibilidade
das vítimas num crescente exponencial vêm contribuindo para a ocorrência de
crimes bárbaros, com requintes de crueldade, que se sucedem neste cotidiano
sombrio capaz de ruborizar até os seres mais insensíveis.
Nas palavras da Mãe de Moïse Kabagambe, que se
refugiou no Brasil em 2014 para fugir da guerra civil no Congo: “mataram aqui
como matam em meu país.” Ela e sua Família tinham uma ideia diferente do país que
os acolheu, mas hoje tem dúvida. Ela clama por justiça, e as organizações
antirracistas e de defesa dos Direitos Humanos, inclusive a OAB, já estão ao
seu lado, indo além de notas e atos de protesto.
Não há dúvida de que o discurso de ódio
disseminado nas redes sociais e a sensação de impunidade que grassa nos
meandros da insanidade institucional são o combustível que por décadas seres
recalcados aguardaram ansiosamente.
Agredir a pauladas o imigrante congolês Moïse, que
foi cobrar por seus serviços, em plena luz do dia e diante de inúmeros
transeuntes e frequentadores de uma praia que o ano todo recebe não só
moradores do Rio de Janeiro, mas turistas do Brasil e do mundo, é uma volta aos
nefastos tempos da senzala.
Tempos, aliás, sonhados pelas famílias das madames
das avenidas Nossa Senhora de Copacabana e Paulista entre 2014 e 2016,
sobretudo depois da vigência da Lei da Empregada Doméstica, um dos motivos da
deposição de Dilma Rousseff da Presidência da República.
Kim Kataguiri, Bia Kicis, Janaína Paschoal e
demais membros da bancada bolsonarista conhecem bem esse bizarro projeto de
sociedade, tanto que, antes do lançamento da candidatura que uniu todos os ‘cançados’
(escrevem com ‘c’ cedilhado) do país em 2018, rogavam praga àqueles que assumem
publicamente a defesa de organizações populares que defendem direitos das
pessoas historicamente à margem da sociedade, como domésticas, desempregados,
moradores de rua, trabalhadores rurais sem terra, indígenas, quilombolas etc.
É bom escrever com todas as letras: aquelas
madames que faziam ‘paçeatas’ (assim, com cedilha) pedindo ‘intervenção militar
já’ a partir de 2014 sentem nojo da ‘pobreza’ (esquecem-se que se pobreza
existe neste país de fartura e abundância é porque há desigualdade social, ou
melhor, falta de justiça social). Lula e Dilma (e antes, Getúlio, Juscelino e
Jango) tentaram mitigar, atenuar. Mas insuflaram seus iguais e agregados
dizendo que aquilo era ‘comunismo’ (sic),
e deu no que deu...
Se isso não fosse verdade, o discurso de ódio
recorrente dos artífices da deposição de Dilma em 2016 teria se diluído tão
logo estivessem assumido, em janeiro de 2019, junto de seu ‘mito’, que também
não sabe governar como sabe agitar, insuflar e amedrontar. Parece antagônico
ver quem governa promovendo distúrbios. Mas está dentro de sua absurda visão de
mundo.
Ao mesmo tempo em que os que tomaram de assalto os
destinos da nação facilitam a venda e aquisição de armas pesadas, os índices de
violência crescem assustadoramente. É claro que não é uma coincidência. É parte
do projeto fascista que, por meio de fraude processual (meticulosamente
orquestrada por Sérgio Moro, Daltan Dallagnol e a rapaziada da Leva Jeito, que
hoje lavam as mãos, bem ao estilo de Pôncio Pilatos), foi imposto à nação.
A mesma violência que enlutou a Família de Moïse
Kabagambe no dia 1º de fevereiro todo dia produz mais vítimas em todo o
território nacional, em sua quase totalidade afrodescendentes ou de populações
originárias -- e sempre pessoas pobres e da periferia --, acrescidas das
mulheres vítimas de feminicídio e das pessoas LGBTIQ+. Precisamos dar um basta
já. Hoje são as Famílias dele(a)s que choram e vivem seu luto, e amanhã? Amanhã
pode ser você. Ninguém está livre da pandemia de ódio que se propaga com a
mesma virulência da variante ômicron da covid-19.
Por Moïse. Por Você. Pelas crianças de hoje. Pelas
crianças de amanhã. Que merecem uma sociedade mais justa, um mundo mais
saudável e melhor. Não se omita: indigne-se, mexa-se e ajude a virar esta
nefasta página da História. A humanidade é Moïse, não os perversos que o
mataram, nem os canalhas que estão por trás (e que um dia serão desmascarados).
Ahmad
Schabib Hany
PS:
Em 2001, durante a crise que se desatou na Argentina, o ativista social Claudio
Hugo ‘Pocho’ Lepratti, ex-seminarista, de 35 anos, voluntário em um projeto de
acolhimento de meninos de rua, foi morto pela polícia da província de Santa Fé,
quando ele tentava mediar uma intervenção policial nas dependências da
instituição em que era voluntário, em Rosario. Para homenageá-lo, o célebre
cantor e compositor León Gieco fez um verdadeiro hino ao mártir da violência,
intitulado “El ángel de la bicicleta”, em que repete as últimas palavras dele: “¡Bajen
las armas: aquí solo hay pibes comiendo!” e indaga: “¿Con qué libros se educó
esta bestia con saña y sin alma?”. O vídeo, produzido pelo próprio León Gieco,
está disponível pelo link <https://www.youtube.com/watch?v=XKcXwEAHkWM>.
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