Entre a
lucidez e o desatino...
“Você me quer justo / E eu não sou justo mais /
Promessas de sol já não queimam meu coração / Que tragédia é essa que cai sobre
todos nós?” (‘Promessas do Sol’, de Milton Nascimento e Fernando Brant)
Este
ano já começa sufocante. Não apenas pelas altas temperaturas decorrentes das
mudanças climáticas, mas pelo desatino daqueles que tomaram de assalto os principais
cargos da República e se creem donos absolutos dos destinos da Nação. Não há um
dia em que não sejamos surpreendidos pelos malefícios dos que auferem os
maiores salários do País e descumprem com suas obrigações legais. Ao contrário,
valem-se da investidura para desinformar, confundir, alarmar, intimidar,
ameaçar, acuar, difamar, desintegrar, desagregar, prevaricar, conspirar, implodir,
mentir, destruir, atentar, fornicar.
Sem
qualquer dúvida, 2022 nos remete a 1978. Isto é, dez anos depois de 1968, o ano
que, segundo o Jornalista Zuenir Ventura, “não terminou”. 1978 foi o ano em que
se iniciou a contagem regressiva da queda vertiginosa do regime de 1964, que
caiu de podre, ao contrário do que mentem as hordas que se escondem por trás
das fake news. Desde esse ano, a
determinação da cidadania se sobrepôs ao medo imposto por aqueles que se diziam
paladinos da liberdade, da moral e bons costumes. E a História provou que
fizeram exatamente o que diziam combater, com o agravante de, covardemente, terem
censurado, cassado, ameaçado, torturado, raptado, prendido, sumido, matado e
sepultado clandestinamente centenas, senão milhares, de opositores, sem direito
de defesa.
Chico
Buarque e Gilberto Gil vieram com o memorável ‘Cálice’ (“Pai, afasta de mim
esse cálice / Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue...”). A
saudosa Elis Regina, com o show ‘Transversal do tempo’, convulsionou os ouvintes
com ‘Querellas do Brasil’, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós (“O Brazil não
conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil / ... O Brazil não merece o
Brasil / O Brazil tá matando o Brasil / ... Do Brasil, SOS ao Brasil / Do
Brasil, SOS ao Brasil”). Então Milton Nascimento e Fernando Brant trouxeram uma
canção que revelava o sentimento de milhões de cidadãos, ‘Promessas do sol’: “Você
me quer belo / E eu não sou belo mais / Me levaram tudo que um homem podia ter
/ Me cortaram o corpo a faca sem terminar / Me deixaram vivo, sem sangue,
apodrecer...”
No
hoje distante ano de 1978 a cidadania se insurgia contra o arbítrio instalado a
ferro e fogo, sobretudo por meio dos jornalistas, radialistas, sindicalistas,
trabalhadores urbanos e rurais, secundaristas, universitários, artistas,
músicos, intelectuais, poetas, escritores, professores, advogados, religiosos,
engenheiros, médicos, enfermeiros e empresários. Era a sociedade civil que se
organizava de novo por liberdades democráticas, anistia e assembleia nacional
constituinte. Aos poucos, as notas públicas davam lugar aos atos públicos e às
manifestações massivas. As músicas e, sobretudo, os artistas (músicos, atores e
poetas) e intelectuais, ao lado da juventude ávida por novos horizontes e por
liberdade, davam o tom dos clamores por luz e oxigênio, pois o sufoco, a
opressão, era sentida no corpo e na alma.
As
reivindicações eram por salários justos e condições de trabalho dignas, não
apenas o voto popular, contra o qual o regime de arbítrio já se precavera: sem
realizar plebiscito ou qualquer outra forma de consulta popular, fizera a fusão
da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, no afã de reduzir o número de
parlamentares da oposição, sobretudo no Senado; na calada da noite, criara o
estado de Mato Grosso do Sul, para acrescer o número de parlamentares da Arena,
partido do regime (tanto que os três primeiros senadores eram do regime); por
meio do AI-5, fechara o Congresso Nacional para impor o ‘Pacote de Abril’, que,
entre outras aberrações, criou a figura do ‘Senador Indireto’, “biônico”, em um
terço das vagas do Senado, que em outras palavras só podia ser da Arena, e como
estava dividida, criaram a sublegenda nas eleições para o Senado e para as
eleições de prefeito municipal (onde se podia votar, porque em capitais e
cidades de segurança nacional, como Corumbá e Ladário, e estâncias hidrominerais
o prefeito era nomeado pelo presidente mediante lista tríplice), por meio desse
mecanismo arbitrário, eram contados os votos de até três candidatos da Arena
(foi assim que o Doutor Plínio Barbosa Martins foi derrotado por Pedro
Pedrossian, que teve seus votos somados aos de José Fragelli, da mesma Arena).
Daí
que as atitudes atabalhoadas que hoje seus órfãos e viúvos protagonizam estão
longe de ser inéditas. Sobretudo, a incompetência não é novidade. Apenas a
censura, muitas vezes driblada nos anos de chumbo, é que impedia que ganhassem
as ruas por meio de uma imprensa livre. A ‘transição lenta, gradual e segura’ foi
seguida à risca, apesar das conquistas consignadas na Constituinte Cidadã
conduzida por Ulysses Guimarães. Sarney, vice de Tancredo que herdou o mandato
desde o primeiro dia, cumpriu com o acordo, até porque ele era um dos remanescentes
da Arena, por isso elegível no Colégio Eleitoral de 1985, como filiado do PMDB
(diferente de Marco Maciel, eleito pelo PDS em 1982, e, portanto, inelegível
numa eleição indireta, nos termos da legislação do regime, regida pela Emenda
Constitucional nº 1, de 1969).
Portanto,
para nós, que tivemos a sorte de ter mais tempo de Vida e pudemos participar da
dissolução do regime ditatorial, da construção do Estado Democrático de Direito
e, mais recentemente, da defesa/resistência das conquistas democráticas
consignadas na Carta Constitucional de 1988, há uma distância abissal entre a
lucidez e o desatino. Não só porque a realidade requer de nós rigidez e
sensibilidade, mas porque nossa razão de ser é a própria tríade
liberdade-solidariedade-progresso, o que pressupõe o caráter não individual,
mas coletivo. A humanidade não é uma abstração, como a Terra não é uma
convenção: ou trilhamos por caminhos amplos e transparentes, ou nos destruímos
todos -- inadmissível para nós, que não temos vocação autodestrutiva e sádica.
Ahmad Schabib
Hany
2 comentários:
amigo, li e reli de novo... e depois li de novo.
Percebi uma coisa importante: quero só ouvir as músicas. E depois ouvir de novo. Tipo alento presses tempos tão cinzas.
Pois é, querida Estela, é essa a sensação coletiva nestes tempos sombrios, e, de fato, a música é a melhor companhia (além dos/as Amigos/as queridos/as)...
Há uma igualmente querida Amiga comum, cujo nome não vem ao caso, que, ao revelar seu estado de espírito, me motivou a escrever este texto. Enquanto respondia a ela é que veio à lembrança a memorável "Promessas do sol", que Amigo(a)s querido(a)s, aqui em Corumbá (como em todo o Brasil), costumavam cantarolar quando nos encontrávamos, fosse para nos divertir ou para realizar algum trabalho da Universidade (no velho CPC/UEMT eu comecei a fazer Letras antes de ir para a FUCMT fazer História).
A propósito, excepcional seu blog, "Vida Mulherida" (https://vidamulherida.wordpress.com/2022/01/18/para-cantar-nacio-bento/), e parabéns pela chegada de Bento, seu Netinho, a quem desejo Vida longa e muita saúde, como a Você e toda a sua querida Família...
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