A verdade que teima nos tempos de pós-verdade...
2020
entra para a história como o ano em que muitos mitos caíram por terra, talvez
numa avalanche maior e mais intensa que durante o período da queda da União
Soviética, comemorada pelos órfãos das ditaduras e combatentes arrependidos. Apesar
das fake news, em que negacionistas se uniram à horda de cultores do racismo e
do fascismo, o fio tênue da verdade sob o fogo cerrado do obscurantismo começou
a raiar sobre as consciências dos cidadãos do mundo. Que 2021 permita o novo
tempo tão acalentado pelas gerações que lutaram por um mundo igualitário e mais
justo...
Nem os geniais roteiristas e
diretores dos tempos de ouro do cinema imaginaram um cenário de tragédias com
as características deste ano que vai partindo e que leva consigo milhões de
vidas, sonhos e lutas de pessoas célebres e anônimas de todo o Planeta, além
das outras vidas consumidas pelas labaredas em diversos biomas.
Não foi só a pandemia de
covid-19. Os incêndios criminosos no Pantanal, na Amazônia e em tantos outros
biomas, cujos estragos ainda não foram contabilizados. E dificilmente serão, a
despeito do esforço de generosos voluntários que caminham com a ciência,
enquanto pusilânimes ocupam os mais altos cargos de uma nação que um dia não
muito distante ousou ser alvissareiro modelo de potência de paz e justiça
social...
O que vi de gente arrependida
por ter contribuído, por ação ou omissão, para a ascensão desta caricata figura
que só vergonha e constrangimento vem causando no concerto das nações... Pena
que arrependimento não conserte seus estragos, irreversíveis em sua totalidade.
E, pior, a horda que com ele passou a agir pelos quatro cantos deste país de
dimensões continentais: fundamentalistas, racistas, misóginos, homofóbicos,
fascistas etc.
Winston Churchill, o premiê
britânico que lutou ao lado de Joseph Stalin contra Adolf Hitler na Segunda
Grande Guerra, era conservador, mas nem por isso deixou de pôr seus soldados no
combate, lado a lado, do Exército Vermelho e derrotar o nazifascismo. Sem a
participação dos soldados soviéticos, as principais forças do Eixo em
território europeu não teriam sido fragorosamente derrotadas.
Mas essas experiências, tão recentes e impactantes na história da humanidade, são ignoradas pelos negacionistas e demais obscurantistas que, como saídos da caixa de pandora, relativizaram os fatos, revisaram a história para tomar de assalto os destinos desta e de outras nações.
Felizmente nem o pai de todas as fakes, Donald Trump, escapou de ser mandado para o lixo da história...
Aliás, a capacidade de resistência,
tenacidade e luta demonstrada pelo Povo Boliviano (em maiúsculas), que
empreendeu uma derrota acachapante aos golpistas assassinos, permite, no
mínimo, uma reflexão: enquanto as camadas supostamente instruídas do Brasil demonstram,
senão preconceito, falta de memória pelo período de crescimento, distribuição
de renda e afirmação soberana durante os anos de bonança dos governos de Luiz
Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff, sem titubeio a expressiva maioria da
população da Bolívia soube dar o “não rotundo”, no dizer do saudoso Leonel
Brizola, aos “filhotes da ditadura” e os processa judicialmente pelos danos
causados às pessoas perseguidas e aos cofres do país.
Sem margem a dúvidas, 2020 foi
cenário de cenas dantescas. Mais que tsunami, o mundo foi varrido pela
virulência de um vírus que serviu de alerta para toda a humanidade e pela
intensidade das labaredas que literalmente queimaram a diversidade de biomas
únicos. A ciência, sempre a ciência e a consciência de quem lida com ela,
trouxe a paz, a esperança e a possibilidade de cura, ainda que a horda de
obscurantistas, sobretudo, negacionistas, propaguem seus delírios
irresponsáveis para desacreditar na única opção capaz de salvar o processo
civilizatório.
O importante é que mitos como
Trump e sua versão tupiniquim estejam desabando, ainda que seus estragos sejam
irreversíveis. Com eles, o deus-mercado também começa a desabar, à revelia dos
grandes conglomerados e suas redes “jornalísticas” insistam na negação. A maior
prova é a de que, assim como a ciência, a medicina (ou a saúde) não é mercadoria,
não tem preço. No Brasil, como em quase a totalidade dos países, o sistema
único (ou público) de saúde se reafirmou como a salvação da vida de todos.
A falácia canalha da “democracia
racial” também não resistiu aos fatos, ou melhor às tragédias. Não bastasse o assassinato
por asfixia de George Floyd nos EUA, a morte, no Brasil, do menino Miguel Otávio
Santana da Silva em Recife e do cidadão João Alberto Silveira Freitas em Porto
Alegre, entre outros anônimos, põe por terra o mito de que não há racismo no
país.
Outra cafagestagem que desmoronou
é a dicotomia mentirosa da vida versus economia, isto é, do mito do antagonismo
entre a saúde e o trabalho. Aliás, neste ano ficou claro, como a luz do dia, que
a economia de mercado faz mal para a saúde, para a vida das pessoas. Daí a
intensidade da propaganda neoliberal de que é possível enfrentar a covid-19
graduando as atividades econômicas. Hoje sentimos o resultado dessa falácia:
seja ou não uma “segunda onda”, o fato é que as vítimas da pandemia vêm
aumentando apesar do discurso dos políticos situacionistas de que a economia
não pode ser “sacrificada” (sic) pela
proteção da vida, da saúde das pessoas.
Mentira cabeluda, mesmo, foi
aquela endossada por ninguém menos que, do alto do cargo mais importante, antes
de afirmar em eventos oficiais deveria checar seus dados nos órgãos
governamentais. Como de hábito, teve a imprudência de atribuir aos povos da
floresta e originários a autoria dos incêndios criminosos que órgãos ambientais
e policiais constataram ter sido de autoria de garimpeiros, madeireiros e
grileiros (aliados do atual governante) para expandir as terras para criação de
gado e soja. Falou o que quis, ouviu o que não gostou, mundo afora...
Como nunca, nestes tempos de
pós-verdade, a verdade teima em ser notada, a despeito de tanta adversidade.
Nada como uma velha consigna da esquerda marxista nos tempos imemoráveis da
resistência à ditadura: “A prática, e somente a prática, é o critério da
verdade.”
Tal qual fênix a renascer das
cinzas -
não só pela pandemia, nem pelas labaredas, nem pela política de terra arrasada -,
nossa esperança militante, insistentemente militante, se sobrepõe ante este
cenário de caos e nos induz a mantermos a fé de que 2021 seja um ano de
recuperação, de renascença, de reconquista. Demo-nos, por isso, as mãos e as
consciências para que fortaleçamos a lealdade aos valores mais caros
construídos ao longo dos últimos milênios, sobretudo a verdade, a
solidariedade, a justiça social, o respeito à dignidade dos seres vivos
(humanos e as outras espécies), ao Estado de Direito e às liberdades
democráticas.
Nas palavras atribuídas a um
grande combatente que não mais está entre nós, o poeta e advogado Ricardo
Brandão: “Trata-se de lutar por uma sociedade em que liberdade não seja uma
palavra vã...”
Ahmad
Schabib Hany
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