sábado, 9 de novembro de 2019

RESISTIR POR LA PAZ

RESISTIR POR LA PAZ

Gestos têm a eloquência dos mais convincentes discursos -- na verdade, mais até. Nestas semanas a Bolívia, depois de longo tempo de prosperidade econômica e paz social, tem sido palco de uma sórdida temporada de barbárie protagonizada por supostos “democretinos” de ocasião: antes mesmo de concluído o escrutínio das eleições gerais de 20 de outubro de 2019, “denunciavam” fraude sem apresentar uma única prova, e em seguida promoviam a barbárie com a desenvoltura do parasitismo e rapinagem próprios dos que sempre viveram à sombra da contravenção, do crime, da sonegação, do narcotráfico.

O primeiro a tentar roubar a cena, até por ter sido o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2019, foi o ex-presidente renunciante e “historiador” e “jornaleiro” Carlos de Mesa, que mal tentou “liderar” as hordas bárbaras -- resultantes do “ajuntamento” de racistas, neofascistas, serviçais do império, traficantes, meliantes, delinquentes, recalcados/as e parasitas -- foi jogado para o escanteio por um verme, verdadeiro pulha, chamado Luis Fernando Camacho Vaca, um arremedo boliviano do igualmente lumpen Juan Guaydó, aquele que foi sem nunca ter sido (nos sábios epítetos criados pelo saudoso camarada Dias Gomes, imortal criador de “O Bem-Amado” e “Roque Santeiro”, de saudosa memória).

Quem é, afinal, Luis Fernando Camacho Vaca, o atual presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e ex-vice-presidente (entre 2002 e 2004) da temida União da Juventude Cruzenhista (UJC), vandálica organização reconhecidamente neofascista que, sobretudo entre 2008 e 2009, promoveu uma avassaladora temporada de barbárie, humilhações a pessoas de ascendência originária e saques a empresários e pequenos comerciantes que “ousavam” não acatar suas determinações. Esse arremedo de tiranete serviçal do império decadente, que é portador de um diploma de bacharel em Direito por uma universidade privada de sua cidade natal e de um mestrado em Direito Público e Tributário em uma universidade de Barcelona (Espanha), se declara empresário, membro de uma sociedade familiar que inclui a “Nacional Vida” e a “Navi International Holding S/A”, acusadas de lavar dinheiro sujo e envolvida no caso “Panama Papers”, em que empresas “offshore”, para sonegar impostos, se refugiaram em paraísos fiscais (no caso, o Panamá), desviando milhões de dólares de procedência ilegal (ou da corrupção, ou do tráfico).

Covarde e bravateiro (além de ladrão comprovado por conta da sonegação de milhões de dólares num país como a Bolívia, em que cada dólar desviado representa mais miséria no seio de famílias humildes), Camacho Vaca esconde sua origem “kolla” -- o pai é um empresário cochabambino beneficiado pelas políticas de incentivos fiscais para o desenvolvimento industrial da Bolívia --, daí por que banca o cruzenhista radical, o mais camba dos cambas. Mas, não por acaso, um dos inúmeros processos contra Camacho Vaca é pela comprovação de que suas empresas não só sonegavam como lavavam dinheiro sujo de 67 outras empresas bolivianas e 29 grandes empresários de seu país. Entende-se, então, a razão da contundência de sua posição anti-institucional: como todo corrupto, precisa quebrar a ordem constitucional para assegurar seus interesses inconfessáveis (e o de seus amos, como lacaio que é).

A bravata mais recente, depois de ter dado uma rasteira no vaidoso pseudointelectual Carlos Diego de Mesa Gisbert, foi ter anunciado levar e protocolar pessoalmente uma carta ao Presidente Juan Evo Morales Ayma à Casa Grande do Povo (nova denominação do Palácio Presidencial, que desde 1948 passara a ser chamado de “Palacio Quemado”, depois da insurreição popular que imolou o então presidente Gualberto Villaroel, no ano anterior). Cheio de jogo de cena (lembra muito o boçal nato que gravita por estas plagas), depois de idas e vindas, amarelou e não entregou, pois é muito mais covarde que o que aparenta. Só quando estiver no colo de meia dúzia de generecos golpistas (da reserva), como ele deseja, é que se sentirá com suficiente coragem para fazê-lo. É do tipo que ronroneia quando está no colo de um portentoso fardado.

Mas pode esperar sentado, pois, após uma tentativa de sublevação de alguns oficiais-generais da Polícia Nacional em três capitais departamentais distantes do epicentro da sede de governo boliviana, toda a cúpula das Forças Armadas bolivianas, de modo uníssono e conciso, reiterou seu irremovível compromisso com o Estado de Direito e a Constituição do país, deixando claro que as questões políticas não as tirarão de seu compromisso constitucional de defender a unidade da nação e do Estado. Embora emissoras de televisão golpistas (iguais à Gloebbels no Brasil) tenham tentado dar outra interpretação à declaração oficial conjunta dos comandantes militares bolivianos (de que isso é um “ultimato” para o governo constitucional do Presidente Evo Morales), observadores experimentados entendem que é um claro revés a qualquer tentativa de golpe diante do aliciamento de altos oficiais da reserva, sobretudo aqueles que serviram ao facínora sanguinário Hugo Banzer Suárez, ditador entre 1971 e 1978 cujo regime institucionalizou a produção da cocaína como a mais importante atividade econômica no período ditatorial em que promoveu o terrorismo de Estado e uma carnificina nunca antes vista no país.

Camacho Vaca, agora como líder messiânico (passou a incorporar o discurso dos fundamentalistas evangélicos neopentecostais), parte para o tudo ou nada. Anunciou neste sábado, em meio a diversos motins incentivados por ele e pelos parasitas que o acompanham em diferentes capitais departamentais distantes de La Paz, que o “alvorecer desta segunda-feira será a cruzada final”, numa clara ameaça à vigência do Estado de Direito e à deflagração de um golpe de Estado. Destituído de qualquer mandato popular, por via eleitoral ou comunitária, esse autoproclamado “defensor da democracia” (quando seu passado demonstra exatamente o contrário) arvora-se paladino da pátria boliviana ao mesmo tempo em que instiga seus legionários vandálicos a atentar contra a vida e a democracia, bem como depredar acintosamente bens públicos de um país que começa a sair da pobreza e cujos recursos investidos têm um valor incomensurável.

Diante disso, todos os setores democráticos verdadeiramente comprometidos com os mais comezinhos princípios libertários e solidários desenvolvidos pela humanidade nos últimos milênios têm o dever moral de repudiar veementemente a tentativa golpista de interromper a vida constitucional da Bolívia, construída com muito denodo e generosidade por gerações que deram a vida ou os melhores momentos de sua existência para oferecê-la às novas gerações como um legado inarredável. Como propugnava uma consigna latino-americana de 1980 ante a escalada golpista dos narcogenerais comandados por Luis García Meza, “resistir por La Paz”. Resistamos, pois, todos/as, por La Paz e pela democracia em nossa América Latina, cada vez mais assediada pelos fantoches do império, sejam eles togados, fardados ou mascarados.

Ahmad Schabib Hany

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