REFLEXÃO DE CAROLINE ARCARI (DE CURITIBA)
Dedico
esse texto a todos aqueles que estão comemorando a prisão de Lula. Leiam e
sintam o tamanho de sua pequenez.
Do
Facebook (Caroline Acari):
Depois
desses dias lamentáveis senti que precisava escrever. Não só porque sou
escritora (rs), mas porque recebi muitas mensagens inbox questionando meu
posicionamento político: desde comentários indignados, memes irônicos,
violentos até xingamentos dos mais diversos.
Escrevo
mais pra aliviar meu coração do que pra prestar contas àqueles que me
escreveram com tanta indelicadeza e ódio.
Eu
nasci num berço privilegiado. Tive uma educação conservadora, fui evangelizada
nos preceitos do espiritismo, estudei nos melhores colégios particulares de
Curitiba e casei com um médico aos 19 anos. Fui bela, recatada e do lar. Votei
no Serra. Achava que o sistema de cotas era vitimismo. Falava que era feminina,
jamais feminista.
Repetia
a máxima: não dê o peixe, ensine a pescar. Já achei Bolsa Família uma máquina
de produzir pobres preguiçosos. Já fiz piada sobre nordestinos e baianos e já
acreditei em "racismo reverso". Também já falei que sucesso escolar
dependia de escolhas e levantava a bandeira da meritocracia como se ela fosse
um mecanismo das leis da natureza, simples assim. Nos almoços de família,
sentia minhas teorias sobre a "grande mudança social" validadas por
pessoas que pensavam como eu. Os churrascos eram agradabilíssimos.
Um
belo dia, aceitei uma proposta de trabalho, lá no interior de Goiás, para
fundar e administrar um projeto social que atendia crianças e adolescentes da
periferia de Rio Verde. Foi a primeira vez que aquelas teorias vociferadas no
churras de domingo foram postas à prova. Era o meu momento de mostrar pro mundo
que, com 27 anos, eu sabia exatamente o que estava fazendo. Bom, eu não sabia.
E como não temos uma temporada da Netflix pra desenvolver esse post aqui, basta
dizer: MINHAS TEORIAS CAÍRAM POR TERRA.
Caíram
por terra quando um aluno recém chegado da Paraíba com uma vontade enorme de
estudar era obrigado a entregar drogas na vizinhança sob ameaça de que suas
irmãs seriam estupradas se ele não o fizesse - a polícia fazia parte do esquema
- descobri que esforço pessoal não era o problema desse garoto.
Caíram
por terra quando eu encaminhei alunos pra estágio de jovem aprendiz e, de um
grupo de 4 adolescentes, somente o menino negro não conseguiu entrar, apesar de
ter competências muito semelhantes às dos colegas. Caíram por terra quando um
aluno (veja só, também negro) desapareceu porque foi trancado E ESQUECIDO numa sala
de aula como método corretivo por não ter copiado a tarefa de matemática. - descobri que o racismo é um fenômeno
estrutural e institucionalizado e que as especificidades da população negra
exigem políticas de ação afirmativa, como as cotas, que tentam diminuir as
desigualdades e restituir direitos negados há seculos.
Caíram
por terra quando eu dei colo pra uma menina que só dormia em sala de aula e com
péssimo rendimento escolar porque ela fazia todo o trabalho doméstico para os
homens da casa, além de ser abusada sexualmente pelo avô todas as noites -
descobri que a violência contra meninas é uma questão de gênero e que o olhar
feminista é imprescindível para entender e enfrentar esse fenômeno.
Caíram
por terra quando eu soube que nenhuma das famílias atendidas havia parado de
trabalhar para receber 90 reais de Bolsa Família, mas que esse valor era muito
importante para complementar a renda no mês - descobri que as exigências
educacionais e as condicionalidades na área da saúde eram cumpridas pelas
famílias - criança na escola, vacinas em dia e acompanhamento do crescimento no
posto de saúde.
Caíram
por terra quando fui no hospital visitar 2 alunos, irmãos, negros, atingidos
por bala perdida, um deles ficou paraplégico - descobri que jovens negros são
exterminados, EXTERMINADOS no Brasil.
Caíram
por terra quando minha aluna mais querida caiu nas garras da exploração sexual
e passou a cometer delitos, na tentativa de fugir dos abusos que sofria de
todos os homens da família dela.
Foram
10 anos de Escola de ser. E foi lá que eu conheci um pouco do mundo como ele é.
É muito fácil defender uma visão política toda trabalhada na meritocracia e bem
estar individual quando você faz três refeições por dia, tem casa própria, um
salário razoável e uma boa perspectiva de futuro. Eu já estive nesse lugar e me
sinto profundamente constrangida por isso.
Não
sou especialista em Sociologia, Economia, Política e Direito, mas hoje meu
posicionamento político é baseado na minha experiência profissional e em todas
as leituras que dedico para entender o cenário político atual, de grandes e renomados
estudiosos, juristas, pensadores, assim como me interessa ouvir o que as
minorias constantemente atingidas pela desigualdade social têm pra falar e
reivindicar. Não me sinto a dona da verdade por isso, mas entendo que esse
esforço me aproxima de uma visão de mundo mais coerente, realista, responsável
e conectada com o coletivo.
O
Brasil tem uma história colonialista, escravocrata, conservadora, militarista
que mostra uma inclinação antiesquerdista predominante, da qual eu quero
distância, nem que isso custe os churrascos de domingo, uma vida mais solitária
(porém mais coerente) e xingamentos inbox.
E
embora eu não santifique Lula nem venere o PT, eu sou de esquerda. ESQUERDA.
Nesse contexto, desde o impeachment de Dilma à prisão de Lula, repudio todo o
processo que culminou num golpe que flerta com a ditadura, num despotismo judicial
concretizado numa condenação sem provas e na constante ameaça ao Estado
democrático de direito.
Eu
reafirmo a minha posição: SOU DE ESQUERDA.
Ninguém
me perguntou mas...
Eu
queria falar sobre Lula e o ódio de classe.
Não
é que ele seja um herói.
É
que pra maioria dos seres humanos que vivem no Brasil nos últimos 50 anos ele
foi o primeiro a dar esperança.
Quando
os trabalhadores desse país construíram uma das maiores experiências de
organização popular do mundo, Lula estava lá.
Ele
também estava a frente de uma das mais importantes greves operárias do nosso
continente.
Na
época em que bastava dar a opinião para ser preso em solo tupiniquim o Lula
teve lá, preso.
Quando
o povo dessa nação tirou os homens fardados do poder, ele estava presente.
Ele
não é um herói, tampouco um santo pronto para subir no altar.
Mas
ele é um de nós.
Um
dos milhões e milhões de pessoas para qual a vida é ardida e que não conhecem aquele Brasil do paraíso
natural de belezas e samba, ele é um igual.
Lula
chegou ao poder do país carregando o sonho do fim da fome e da miséria.
Os
Brasileiros em 2002 sonhavam com o fim da FOME.
Era
um grito de socorro.
Mas
Lula não é um herói. Nem santo.
Ele
é só um de nós.
Você,
compatriota que hoje comemora a prisão desse homem, preste atenção.
Nosso
país está afogado de poderosos corruptos.
O
congresso nacional é um ninho de desonestidade e mesquinhez.
As
maiores empresas privadas, para as quais muitos de vocês trabalham estão
envolvidas em escândalos nunca registrados antes.
Mas
por favor escute, comemorar a prisão de Lula não é celebrar a vitória da
honestidade.
Ter
ódio de Lula não é ter ódio da corrupção.
É
ódio de Classe.
Esse
ódio serve só pra nós lembrar que estamos no Brasil.
E
no Brasil de sempre, metalúrgico tem que se pôr no seu lugar. Anafalbeto não opina. Trabalhador não pode
governar. Filho de empregada não estuda. Negro nao é Juiz. Bandido bom é o que
tá morto. Nordestino se mantém na faxina, ou na obra. Mulher não vira
presidente. LGBT tem que se fuder porque é safado. Direitos humanos é frescura.
Preto é ladrão. Mulher apanha porque alguma coisa fez. Favelado negro e
vagabundo tem que prender.
O
ódio, os memes, as panelas, os rojões são ódio contra a maioria do povo que
habita esse solo.
Ódio
dos que não tem vez. Dos que ousaram falar demais, estudar demais, opinar
demais.
É
ódio da maioria.
É
isso.
Aos
que estão tristes como eu, a estrada da nossa gente foi de brita, pedra e suor,
não vai ser essa lombada que vai nos derrubar.
Adiante.
Caroline
Arcari (de Curitiba)
Compartilhado de mensagem de What'sApp de minha querida Irmã Waded Schabib Hany